Meu nome é Luiza. Quando começo esta história tenho oito ano. Morava com a mãe e o pai na favela do Bueiro em Recife. Nossa casa era um quarto grande,
onde dormia todo mundo e era a cozinha. Era em palafita, cresci
naquele lugar. O Capibaribe era tudo pra nóis. Água, banheiro e divertimento.
Tinha um lugar pra mergulhá onde ia os meninos e as meninas. Tudo de calcinha e
cueca. Era a maior farra. A mãe quando me via chegando só de calcinha dizia pra
eu tomar cuidado, que era pra não deixar ninguém pôr a mão na xoxota. Se alguém
fizer, me avisa. Nem teu pai. Eu falei, o pai fala o mesmo que ocê. Se alguém
mexer é pra fala pra ele.
A gente, nas palafitas, avistava longe a cidade e os prédio. A molecada
brincava que era dono de um ou de outro. Ficava imaginando como devia ser
bunito ver lá de cima a cidade e as palafitas longinhas. De tarde eu ia pra
escola. Oxê, era bom, tinha comida. Tinha os amigo.
O pai trabalhava no porto e a mãe, umas vezes na semana, ia fazê
limpeza. Era uma alegria no domingo, de vez em quando, o pai levava nois tomá
sorvete. Eles parecia namorado. Tinha uns sanfoneiros numa praça perto e os
dois iam dançá. Era um rala buxo bonito. Eles me puxava e levava pro meio,
dançá junto. O pai chamava a mãe de morena linda. Ela era bonitona, não parecia
as destrambelhada que tinha por lá. Seu cabelo era muito bonito. Ela falava que
o meu era igual o dela. Gostava, quando ela ficava um tempão penteando,
ajeitando.
O pai morreu num acidente no trabaio, num sei explicá como.
A mãe ficou desesperada. Eu chorei bastante. Era uma dor no peito que
trancava tudo até saí pelos olhos. Era uma falta danada. As brincadeira, o
beijo quando chegava, o colo, os passeio de domingo. Ele e a mãe rindo. Tudo
vinha na cabeça.
A mãe teve que trabalhá todo dia. Eu comecei ir pra rua e
faze o que os amigos fazia. Pedí esmola. Depois, com algum dinheiro, ia na
mercearia do Paraíba e comprava umas bala e doce pra vendê. Eu só via a mãe
chorar. Ela que era alegre ficou borocoxô. Cantava e gostava de dançar, agora
ficava triste o tempo todo. Num via a mãe ri.
Um tempão depois do pai morrer, a Maria do Lelé convidou a mãe pra ir na
praça dançá. Ela não queria. A Lelé insistiu, insistiu. Ela foi. Eu fiquei
brincando. Escureceu fui pra casa e a mãe num tava. Fui na casa da Maria do
Lelé, mas também não tinha voltado. Eu tava na cama tarde, não sei quanto, ouvi
a mãe conversado com homem na porta. Ouvia risadinha.
Era um tal de Alcindo. Começou a parecer toda hora, até que dormiu em
casa. A mãe falou que agora ele ia ser meu pai. Não do coração, porque aquele
tava guardadinho dentro de mim, mas o que ia vive com nóis. Imagina, ser meu
pai! Oxente, nunca! Era um melô pra todo lado. Amorzinho, coração, meu bem.
Comigo, chamava pelo nome, falava sério, não brincava e pió não ria. A mãe
continuava indo trabalhá todo dia. Perguntei pra mãe por que ela ficava com
ele. Com o pai não precisava trabalhá todo dia, ele levava
nóis passear, fazia carinho em mim. A mãe respondeu, que quando eu
crescê vou sabe porque a mulhé precisa de um homem. É, porque agora eu num
entendo.
Ele resolveu ir pra São Paulo, melhorá a vida e nos chamá. A mãe dando
um duro, eu não indo pra escola e indo pras esquinas vendê alguma coisa. Um
dia, o Sebastião do Quero, voltou de São Paulo, pra vê a família, trouxe recado
e dinheiro que o Alcindo mandou, pra nois ir pra lá. Rapidinho mãe fez a trouxa
e pegamo o ônibus. Foi uma canseira, levamos três dias. Não tinha
mais jeito pra sentá. A bunda tava quadrada. Quando dava vontade de mijá tinha
um lugar, no fundo, que a gente ia, era uma inhaca. Às vezes, quando a perna
formigava, levantava e andava no ônibus. Quando parava, aproveitava os banheiro
pra faze tudo A mãe levou umas mandioca cozinhada, um feijão de corda num pote,
pedaço de pão com mortandela e um garrafão de água. O gostoso era
ficar olhando pela janela. Passava cada lugá bonito. Era rio, era montanha,
tinha boi, tinha cabra e cidade bunita. Ficava sonhando. A gente
devia tá indo prum lugá mior.
Chegamo. Era um lugá grande. Muita gente, muito ônibus. Uma barulheira.
Fiquei zonza. Olhei pra cara da mãe, ela tava com medo. Deu vontade de chorar.
Segurei. A mãe perguntou pro motorista algumas coisas e ele falou pra onde ir.
A gente pegou um metrô. Já tinha ouvido falá mas não tinha andado. Quando a
gente foi entrá um pessoal atrás foi empurrando. Gritei pra mãe. Agarrou minha
mão, a mala e a trouxa pendurada no ombro. Perguntou prum homem de um lugar que
tinha luz. Eu não entendi direito. Depois fiquei sabendo que era onde a gente
tinha que descê. Lá na Luz, a mãe com papel na mão perguntou pra outro home
como chegava no endereço do papel. Tinha que pegá ônibus. A mãe falou que ia a
pé. O homem falou que era longe. Nós fuimos. Oxe, caminhamo, caminhamo. Às
vezes tinha muita gente na calçada, tinha que andá na rua. Carro quase pegava.
Eu com medo. Caminhamo. Aí quando deu de frente prum prédio bonito, que a mãe
falou que era uma escola, nois viramos e continuamo andando. Caminhamo. Coitada
da mãe. A maleta, a trouxa. No meio do caminho deu a trouxa pra eu
carregar. Cansei, suei. Ainda bem que tinha água no garrafão.
Finalmente chegamo. A mãe colocou tudo no chão. Era uma casa cumprida
com um corredorsão. Parecia o da escola. Tinha umas pessoa na porta. Perguntou
do Alcindo. Alguém, entrou gritando, chamando o nome dele. Apareceu. Abraçou a
mãe beijou, levantou no colo, rodou com ela. Virou pra mim e só perguntou se
tava tudo bem e passou a mão no meu cabelo. Pegou a maleta, a mão da mãe e foi
entrando. Eu atrás com a trouxa.
Era um quarto grande, tinha um colchão maió e um menó no chão. Duas
cadeiras com roupa em cima. Parecia que era um fogãozinho de brinquedo num
canto. Perguntou pra mãe se tava com fome. Não sei o que respondeu, pois,
dentei no colchão menó e apaguei.
No dia seguinte, acordei com os dois discutindo. A mãe perguntado, por
que chamou a gente se as coisas tavam ruim pra ele. Pela primeira vez, eu vi
ele dá uns tapa nela. Gritou que estava desempregando agora, mas tinha um
trabalho pra começá logo. E se ela e eu queria comê tinha que nos virá. Pegou
nóis duas, passou num bar, comprou café com leite e pão com manteiga e arrastou
até uma avenida. Este cruzamento é bom, falou, começa a pedi esmola, até que eu
arrume algum lugá pra você trabalhá, falou pra mãe. Ficamo por lá até o fim do
dia. A mãe chorando agoniada, sentando de vez em quando na calçada, e eu que já
havia feito isso no Recife, pedindo nos carro, fui fazendo. Na hora que deu
fome, fumos até um bar na esquina e mãe perguntou o preço do prato. O dinheiro
não dava, pediu café com leite e pão com manteiga e nois comemo. Aproveitamo
pra ir no banheiro. Sujo, fedido. No final do dia o Alcindo chegou,
brigou com a mãe, deu uns tapas e tirou o dinheiro que tava com ela e comigo.
Inda falou que era um miséria. A mãe gritou que tava com o estomago colado nas
costa, ele respondeu que tinha comida esperando a gente em casa. Chegamo lá,
tinha umas coisa, que ele chamou de marmita, com arroz, feijão e uma mistura de
legume. Tinha banheiro no fundo da casa. Um pra homem outro pra mulhé. Fizemos
as necessidades e tomei banho junto com a mãe, que conseguiu um pedaço de sabão
com uma mulhé, que teve pena de nois, e também arrumou uns pedaços de pano e
uma toalha velha e furada pra se enxugá.
Deitei na cama e comecei a dormi, depois de um tempo, meio acordada,
ouvi a mãe e o Alcindo fungando, com risadinha. Virei de lado e dormi.
No dia seguinte a mesma coisa. Eu via a mãe agoniada. Mãe vamo voltá pra
donde viemo. Vamo pra nossa casa. O Alcindo é ruim, bate em ocê e não gosta de
eu. A mãe chorando falô que nóis não tem mais casa e nem dinheiro pra volta.
Ela prometeu que ia arruma um lugá prá trabalha. As coisas ia miorá.
No outro dia, nóis na esquina de novo. No meio da tarde a mãe falou pra
eu ficá por lá, tomando cuidado, que ia na rua de baixo, onde viu uma pensão e
ia sabê se tinha trabalho pra ela. Eu na rua ficava abestalhada olhando
os carrão. Cada um grande e bonito. As pessoa dentro, tudo bonita, arrumada,
parecia que ia pra festa. Tava frio aquele dia, as pessoa dentro parecia toda
quentinha. Tinha até musica dentro. A criançada ia sempre atrás, amarrada.
Tinha gente boa que dava dinheiro, bala, até falava com a gente. Tinha noite,
na cama, que eu pensava que táva dentro de um carro. Grandão, bonitão. O pai e
a mãe na frente e eu atrás, só que não amarrada e a gente escutando um forró.
Começou uma chuvinha pequena e fazendo frio. Tava gelado. Sentia os braço
arrepiá. Tava com uma blusinha fina.
Parou um carrão, bonitão. Dentro tinha um home sorrindo, falou se eu não
táva com frio. Vem cá fala, comigo na janela. Me deu um chocolate. Tava com fome,
foi bom. Gostou, que mais? Entra, senta um pouco aqui, tá quentinho. Entrei.
Falou que ia dá uma volta pra eu conhecê o carro. Ele parecia um anjo,
sorrindo, uns óio bonito. Ele era loiro. Os óio parecia um pedaço de
céu. Me deu mais chocolate e passou a mão na cabeça que nem o pai fazia. Eu ri.
Tava quentinho. Ele parou o carro num lugá. Moço, eu tenho que volta, senão
minha mãe briga com eu. Só um minutinho, pra ocê comê o chocolate. Passou a mão
na minha cabeça e no meus peito. Eu tinha vergonha dos peito. A mãe falava que
ia ficá bonito que nem o dela. Já tinha pedido pra mãe um soutien, pra o pessoá
não fica olhando. A mãe disse que não tinha dinheiro, pra eu usa duas blusa. Eu
tava com duas blusa, mas com o frio e a chuva táva aparecendo. Ele levantou
minha blusa, passou a mão e começou a chupá e mordê. Eu comecei a chorá. O homé
tirou a coisa dele pra fora pegou minha mão e passava nela. Falava pra eu mexe
nela, brinca com ela. Era grande eu assustei, comecei a chorá. Eu chorando
alto. Ele me empurrou, começou mexê na coisa, começou a gemê, gemia
e eu chorava. Até que gritou e ficou parado. Eu táva apavorada e gritava pro
moço, o tempo todo, deixá eu ir embora. Ele abriu a porta e me
empurrou e foi embora. Eu cai numa poça e me molhei toda. Tinha caido um toró.
Tava lascada, não sabia donde táva. O frio tava mais forte e a chuvinha
tava fria. Comecei a andá, chorando. Tava ficando escuro. Cheguei numa rua
movimentada de carro. Ninguém na calçada pra perguntá. Fui andando e chorando.
De repente passou uma poliça. O Alcindo sempre que via uma ficava com
medo e fazia a gente desviá o caminho. Ela parou um pouco mais na frente que
eu. Fiquei com medo. Pensei em me escondê. O zomi desceu e veio falá comigo.
Ele táva com roupa de poliça e tinha um revolve pendurado. Eu comecei a chorá e
senti uma coisa quente na perna, eu tava mijando. Eu tava com medo. O poliça
falou pra não chorá, foi bonzinho, que ia me levá pra casa. Me levou pro carro
e fez eu sentá no banco. Táva mais quente eu não parava de soluçá. O outro do
lado, também foi bonzinho, me deu um pirulito e falou que tinha uma filha
bonita que nem eu. Queria sabê onde eu morava. Não falei do carro, não falei
nada do home, eu queria minha mãe. Não falei que táva pedindo dinheiro. O
Alcindo tinha falado pra nóis, que se eles pegava nois, ia presa. Falei da casa
com o corredorsão. Da rua, de muinta gente que morava na casa. Não sabia donde.
Perguntou se eu conhecia algum lugá perto. Lembrei do bar que a mãe comprava os
pão com manteiga. Falei pra eles. Eles sabia onde era. Me puseram no banco de
trás. Só que me amarraram. Fiquei com medo. Falou que não era pra ter medo, era
só pra eu não cai do banco. Chegou no bar eu desci e agradeci o poliça, comecei
a andá. Ele veio atrás de eu e pegou minha mão e falou que ia junto. Fui com
ele, conversando com eu. Tavá com menos medo, mas táva.
Quando viramo a esquina e a casa tava perto, tava um furdunçu na porta,
tudo em volta da mãe, que tava sentada numa cadeira. O Alcindo deu um tapão
nela e falou que ela era burra, que não servia pra nada. Quando o pessoal viu
eu, falou pra mãe, que veio correndo, se ajoelhou e me abraçou. Eu chorava e
pedia descurpa pra mãe. Ela tava apanhando. Curpa deu. Eu chorava e a mãe
chorava. Me dava uma dor forte no peito de vê mãe chorando, por causa deu. A
mãe levantou e abraçou o poliça. Todo mundo fez rodinha. Só não táva o Alcindo.
O outro poliça táva falando com ele. Parece que pediu documento que ele
mostrou. Pediu o nome da mãe e o meu. Pediu endereço. Falou pro Alcindo que eles
ia voltá e se ele batesse na mãe ou neu, teria que se vê com ele.
Nóis entremos. O Alcindo falou pra mãe recolhê todas nossas coisa, que
ele ia sai e arrumá um outro lugá pra nois ficá. Que por causa das duas os zomi
não ia dá sossego. Ele saiu e ficou de voltá. Só voltou no dia seguinte cedo.
Contei pra mãe tudo que aconteceu. Ela ficou agoniada, perguntou se
homem mexeu comigo. Eu falei que não, mas ela não acreditou. Levantou o
vestido, abaixou a minha calcinha e olhou. Apertou em volta e perguntou se táva
doendo. Falei que não. Fomo pro banheiro e tomamo banho junta. Comemo da
marmita. Aquela noite a mãe dormiu agarradinha deu. Foi tão gostoso.
De manhã cedinho mãe acordou, o Alcindo gritou, se esperta e
mandou me vesti rápido. Nois saímo escondido. A mãe depois, falou
que o Alcindo picou a mula sem pagá o que devia. Largamo os colchão. Pegamo um
ônibus que andou um tempão. Descemo e andamos mais um tempo. Chegamo. Era um
prédio velho. Na entrada tinha uma pessoa numa mesinha olhando todo mundo que entrava
e saia. O Alcindo falou que a mãe era sua muié eu a filha. Que amanhã ele
pagava, que a gente ia trabaiá. A gente subiu uma escada que não terminava
mais, e ai chegamo, num lugá que ele chamou de andar. Falou que era sete, pra
gente não esquece. Entramo numa porta, falou pra não esquecê o número, 72.
Tinha umas pessoá morando lá. Um home mostrou nosso canto. Era um quarto, onde
a mãe colocou nossa roupa no chão. Não tinha colchão. O Alcindo falou que
depois arrumava. O home falou que dava pra usá o banheiro. Tinha um baldão
grande com água, onde dava pra pegá e jogá na privada. Dava pra pegá água
também pra toma banho frio, um balde só. Cada dia uma pessoa de cada quarto
tinha que buscá água, quantas vezes precisava, numa torneira no fim do corredô
e enchê o baldão. A mãe ficou, depois, sabendo que tinha gente, que no dia de
buscá água não tomava banho pra buscá menos. Táva dando uma briga danada.
Falou, que o Alcindo quis se arregá de alguém mas, veio um sujeito, lá debaixo,
e deu uns tranco nele e ele se lascou. O lugá era muito muquifo.
De manhã o Alcindo falou pra mãe que eu ia sozinha pra esquina. Era
perto, não tinha como me perdê. Eu já devia tá mais esperta, depois do que
aconteceu. A mãe brigou com ele, mas levou uns tapa e ficou chorando num canto.
Ele me levou, Era bem perto. Na esquina tinha um prédio lindo, depois eu sube
que era uma escola e do lado uma igreja bunitona. Falou que o
caminho de volta era fácil e depois de ter dinheiro, no final do dia, fussi pra
casa. Acho bom cê ficá esperta.
Na esquina, conheci uma molecada, que também ficava por lá. O Toninho, o
Bugre, o Vira-pau, o Lombriga, a Sara e a Deda que ficou minha amiga. A Deda me
falou que já tava lá um tempão. Morava com a vó ali perto. Não tinha pai nem
mãe. Num sabe onde tão. Avó faz um trabaio bonito nuns pano. Bordadinho,
rendinha e ia vendê perto do Viaduto do Chá. Ela vendia doce. Falou que ia me
apresentá o home dos doce e eu ia pode vende. Gostei dela. Quando os menino,
começava com uma brincadeira besta ela dava um esporro.
Oxente, quando voltei pra casa, de noite, não encontrei a mãe. Como
tinha comido uns salgado, no bar que a Deda me levou, num táva com fome. Deitei
e dormi. Acordei, num sei que hora, com a mãe chorando. Ela tava pelada,
agachada, com uma bacia, lavando as partes, chorando e resmungando. Fui abraçá
ela. Num é nada fia, me machuquei. Ela tava com táio na cabeça. Tinha saído
sangue, que tava grudado no cabelo. Eu caí, ela falou. Por que tava lavando as
parte? Abracei, ela tava com o pescoço todo manchado. Vai dormi fia, não foi
nada. Ela pôs uma roupa e veio deitá abraçadinha neu e chorava baxinho. Uma
hora ela resmungou que ele tinha colocado ela na vida. Num entendi nada. O
gostoso era o calor da mãe juntinho.
Todo dia era igual. Eu olhava a escola e a igreja. Vi que na hora de
entrá na escola, enchia de carro, largando a molecada na porta, fora os que
vinha a pé. Depois era na hora de ir embora. Era menino e menina, tudo de
farda. Os menino com calção azul, as menina com saia azul e meia branca alta e
todo mundo de blusa branca. Vige. como eles brincava, como ria! Tinha
pipoqueiro na porta e sorvete, eles comprava. A gente olhava.
Pipoca, a gente comprava todo dia pra ajuda a matá a fome. Eu pegava metade com
sal e metade doce. Sorvete, de vez em quando. Tinha vez, que ia com a molecada
pegá comida na lata de lixo dos bar por perto.
Na cama eu pensava que um dia eu ia entra naquela escola com a farda da
escola e a mãe me deixando na porta. Contava pra Deda e ela falava que isso não
ia acontecê. Era escola de rico. Mermão, quem nasceu pobre vai morrê pobre.
Esquece. Perguntei se podia entrá na igreja. Ela disse que achava que sim, mas
nunca tinha entrado.
Um dia levantei mal. Tava com dor de barriga, tava toda zoada. Fui no
banheiro, mas nada. A dor continuava. A mãe táva dormindo, não quis acordá. Fui
pra esquina, andando meio de lado com dor. A Deda falou que eu tava com cara de
bosta, mas, não falei nada. Nois tava começando o dia e de repente
começou corrê sangue na minha perna. Eu gritei pra Deda que tava morrendo.
Corri pro jardim do meio da rua , olhei debaixo da saia e tava saindo sangue da
xoxota. Será que o home fez alguma coisa, naquele tempo, e agora tá
acontecendo. Deda eu tô morrendo! Ela veio correndo, quando viu, começou a
manga deu. falou pra eu esperá que já voltava e que não era nada. Voltou e
trouxe uma coisa chamada absorvente. Tó, põe na calcinha. Me ensinou. Vamo pra
tua casa, procê se lavá e troca de calcinha. Eu com medo de assustá a mãe, que
podia tá dormindo, não quis ir. Então, vamo pra minha e te explico tudo.
Me lavei, emprestou uma calcinha. Não se aperreia, falou que eu tinha
virado mulhé. Todo mês ia acontecê. Tem vez que doi a barriga. Já tinha deixado
de ir pra rua por causa da dor. Agora, sabia porque eu tava com cara de bosta.
Falou que a vó dela contou tudo. Contou, que agora, se homem colocá o negócio
dele dentro da xoxota a gente pode pegá barriga. Eu falei, mas o pinto deles é
pequeno. É, falou, mas fica grande. Aí lembrei do home no carro, lembrei de ver
uns moleque maió com as menina nos canto, lá na favela, dava pra ver o dele
grande e colocando no meio das perna dela. Falei pra Deda tenho que te pagá o
absorvente. Respondeu pra esquecê, era presente de amiga, de mulhé. Achei
bacana ela falá que era presente de amiga. Eu tinha uma amiga.
Uma vez que a mãe tava em casa, ficamos conversando. Contei do sangue.
Ela me abraçou e pediu descurpa, já devia ter me avisado, ter explicado. Falei
pra ficar tranquila que a Deda me contou tudo. Conversamos da escola, da
esquina, da igreja. Falei que tinha vontade de entrá na igreja, mas, tinha
medo. A mãe falou que não devia tê. Que lá era a casa de Jesus e da mãe dele, a
Nossa Senhora. Era como a capela que tinha lá nas palafita. Ela pediu pra eu
entrá e pedi pra Nossa Senhora ajuda nóis. Pede pra nossas vida ficá meió.
Promete que a gente leva uma vela pra ela. Reza com força filha, eu tenho
rezado muito. Reza com força.
Eu falei pra Deda que a mãe pediu pra eu reza. Táva com medo de entrá na
igreja, pra ela ir comigo. Ela disse que a vó tinha falado que lá era igreja de
padre e ela era evangélica, tinha que ir onde tinha pastor. Não quis ir de
jeito nenhum.
Um dia eu vi um bando de menino e menina saindo da igreja, formando fila
e entrando na escola. Táva todo mundo contente. Pensei, se eles saíram contente
porque não vou até lá, e fico contente também? Esperei um tempão e resolvi ir.
A Igreja táva escura, tinha umas vela nos lado e uma luz no fundo. Quando fui
chegando, vi que tinha uma cruz pendurada no ar. Fiquei abestalhada de vê ela
no meio da igreja, no ar. Parada no ar! Quando cheguei mais perto, vi que tinha
umas cordinha segurando. A igreja táva escura e uma luza batia só no Jesus,
sofridinho lá na cruz. Tinha sangue nos pé, nas mão e na cabeça. Ele tinha a
mesma cara de dor do Jesus lá de Bueiro, só que o sangue parecia de verdade. Eu
parei na frente e falei que queria falá com a mãe dele. Sentei no banco e aí vi
num altar do lado Nossa Senhora. Táva vestida de azul e tinha um coração
grandão pra fora do peito. A mãe falou, uma vez, que o coração dela era tão
grande, que não cabia dentro do peito. Eu ajoelhei e coloquei o rosto entre as
mão. Eu falava, lá do fundo do coração, pra Nossa Senhora ajudá minha mãe, ela
táva sofrendo muito. Eu sofria de vê minha mãe sofrê. Eu não me importava de
vendê na esquina, só não queria que a mãe fosse fazê o que fazia e ficá triste.
A Deda falou que era sexo. A mãe ia deixá os home brinca com ela. Ela não
gostava, chorava e táva muito triste. O Alcindo batia, não deixava nois ir
embora pra outro lugá e chegou me bate, quando o dinheiro do dia era pouco.
Nossa Senhora ajuda nóis. A mãe falou que trás uma vela se ajudá.
Eu levantei pra ir embora e olhei pro rosto da Nossa Senhora. Juro, ela
táva olhando pra mim, sorrindo. Táva linda. Eu andei pro lado e os olho dela
continuou olhando pra mim. Eu juro, ela não tirava o olho de cima deu e não
parava de sorri. Eu cheguei perto e tinha uma lágrima saindo dos óios. Eu
chorei. Ela táva olhando pra mim e chorando. Juro ela táva chorando. O vestido
era lindo, azul com estrelinha. Eu falei, não chora Nossa Senhora, também não
quero que a senhora fique triste. Ela chorava e sorria.
Quando voltei pra casa, não esperava a hora de encontrá a mãe e contá
que eu falei com Nossa Senhora e que ela sorriu e chorou. Fui dormi cedo,
querendo chegá o dia seguinte, pra contá pra mãe. De manhã acordei a mãe. Eu
falei com Nossa Senhora. Ela sorriu pra mim. Eu juro. Ela chorou e sorriu. Ela
não parava de tirá os olhos de cima deu. A mãe me abraçou e chorou. Falava que
tinha certeza que ela ia me escutá.
Um dia a mãe chegou mais cedo e me acordou. Falou que Nossa Senhora tava
escutando eu. O Alcindo não ia mais atrapaiá nossa vida, porque ele tinha se
metido numa briga, foi pra delegacia e la descobriu que tinha uma ordem pra
prendê ele, lá no norte. Ia ser muito tempo. A mãe falou que a vida ia se miór
pra ela e que ele num ia mais pegá meu dinheiro.
Eu passei na igreja outro dia agradecê Nossa Senhora. Falei pra ela que
agora ia muda tudo. A mãe não ia continuá o trabaio que táva fazendo e a gente
podê voltá pro Recife, pras palafitas. Eu ia encontrá meus amigo de ante. Só
fiquei triste porque não ia mais vê a Deda. Quem sabe a vó dela ia querê ir com
nois?
Só que a mãe continuo indo pro mesmo trabaio. Saía a tarde e voltava de
manhãzinha. Eu ia pra rua. Agora eu comia marmita no armôço, às
vezes pagava pra Deda. Quando miorô, a mãe comprou um colchosão, onde dormia as
dua. O que era gostoso, acordá com o corpo dela quentinho, junto do meu.
Comprou roupa pra nóis. Uma parte do dinheiro do dia da rua eu dava pra ela.
Falou que era bom, comprou um fogãozinho, começô a fazê almoço. Arroz, feijão,
macaxeira e uma mistura. Ela até deixou um dia eu convidá a Deda. Nois tinha
que comê tudo no chão.
Um dia ela contou, que uma mulhé conversô com ela. Que era muito bonita
pra trabaiá na rua. Convidou pra conhecê a casa dela. Diz que tinha uma outras
muiés. Elas falaram que era mior. Ganhava um pouco mais, não tinha sol, não
tinha chuva e nem frio. A mãe foi. No dia a mãe voltou com roupa nova. Táva
pintada e com o cabelo arrumado. Perguntei, se ganhou, ela disse que não, tinha
que pagá a Dona Zulmira. A mãe não trabalhaiava na segunda. Nóis aproveitava
pra passeá.
A mãe falou que eu tinha que voltá estudá. Nois se arrrumamo e fomo na
escola bonita que eu via na esquina. A mãe chegou lá e falou pra uma moça, que
tava num balcão, o que queria. Tinha que esperá o padre pra fala com ele.
Demorou. O padre ouviu a mãe e falou que não tinha mais lugá pra criança que
não podia pagá. Num se mostrô interessado. Falou pra ir numa escola, lá perto,
que era do governo. A escola do padre era muito bonita. Tinha uma escada, com
um lugá pra bota a mão, quando subia e descia, que parecia de ouro. Tinha uns
santo grandão, bonito. Todo mundo lá dentro táva arrumado. Como ficava sempre
em frente, onde eu ficava, eu achava que a escola também era minha. Fiquei
agoniada com um nó na garganta e uma vontade grande de chorá.
Na escola do governo a mãe conseguiu me colocá. Tinha um montão de vaga.
A muié falou que não tinha muita criança por lá, no bairro. Eu tinha que usá a
farda que ganhei. Era uma blusa branca e um calção azul. Eu vi o pessoal
usando. Só que tinha camisa que parecia amarela e calção que o azul tava
apagadinho. Num era bonito como na outra escola.
Eu ia pra escola de tarde. A mãe acordava depois de eu. A gente ficava
junta, conversando. Ela fazia comida eu ajudava. A gente ria muito. Depois eu ia
pra escola e a mãe ia trabaiá, chegando tarde. Comecei aprendê o nome das
letra. Eu encontrava a Deda depois da aula e falava da escola. A
Deda ficava com os óios brilhando. Falava pra ela ir, mas não podia, tinha que
ajudá a avó. Eu mostrava as letras, mostrava meu caderno. A gente brincava que
táva junta no recreio. A gente ria só de pensá. Aprendi escrevê meu
nome. Fui mostrá pra Deda. Ela pediu pra escrevê o dela. Falei que ia pedi pra
professora ensiná e depois mostrava. A professora falou que era “de” de dedo e
“da” de dado. Escrevi, na outra semana fui mostrá. Cheguei lá não encontrei
ela. O Toninho e a Sara vieram conversá. Falaram que uns dias ela chegou
chorando, que tinha acordado e a vó táva morta. Vieram umas pessoa e levaram
ela embora. Aí ela veio pra contá e chorá. Queria te procurá mas, àquela hora
você táva na escola. Chorou muito e não apareceu mais. Corri onde ela morava. O
quarto táva vazio. Contaram que uma muié do governo veio buscá a Deda e levou.
Não voltou mais. Nunca mais vi ela, mas ela ficou sempre no meu coração. Chorei
várias noite pensando e pedi pra Nossa Senhora ajudá ela. Perdi minha amiga.
Na escola tinha uma professora boazinha. Falava pra eu e pra Benedita,
que todo mundo chamava de Bene, que a gente falava muito errado e ia começá a
corrigir nóis. Não era nóis, era nós. A gente ficava treinando. Melhorei, mas
às vezes escapa. Que quando era mais de uma cadeira, a gente tinha que por um
“s” no final. Cadeiras, meninos. Nós ficava treinando. Homens, mulhers, pãos,
frutas, mesas, cors. Tinha o lanche no recreio. Pão com salsicha e o que eu
gostava e pedia sempre, e a mulher ria, pão com mortandelas. Eu ficava toda
contente que ela ria porque eu falava direito. Não era para falar com eu, o
certo era comigo. Mas tinha uns casos que eu ainda não conseguia guardar
direito. Ela corregia quando era pra eu, quando era deu. Nos começamo a
falar melhor graça a Professora Luzinda. Nunca mais vô esquecê dela.
Depois de um tempo, a mãe falou que no domingo nós ia mudá. Falou que
algumas moças que trabalhava com ela, dividia uma casa e ia sobrar um quarto. Ficava
perto da escola e do trabalho. Era uma casa velha, tinha um corredor e no fundo
um quintal. Não era muito grande, mas tinha uma árvore no meio. O corredor
tinha quartos de cada lado. Era seis. Terminava numa cozinha grande, com mesa
pra comer e depois um banheiro, onde ficava o chuveiro. O chão era de azulejo
velho, com uns remendo, mas táva limpo. Nosso quarto era o segundo da esquerda,
com uma janela que dava prum corredor estreitinho. Tinha duas camas que táva
com colchão. Falei pra mãe que tinha medo de dormi na cama, podia cair. Ela
respondeu pra eu não ser jegue, todo mundo aprende dormi na cama. O chuveiro
era quente. A mãe queria que eu tomasse banho todo dia. Tinha que aproveitar o
horário que as mulheres tivesse trabalhando.
Lá moravam a Zefa com o filho, o Buiu, a Dora, uma negra muito bonita e
os filhos a Lua e o Nilton, a Ção que o filho não morava com ela, Carol e o
filho Zito e a Neuzinha e o Cassio. As menina (é assim que se chamavam),
trabalhavam onde a mãe trabalhava. Tinha a Dona Raimundo que limpava o
corredor, o banheiro, a cozinha, a casa por fora e fazia o almoço. A mulherada
fazia uma caixinha e na segunda, duas ia fazer compra. Eu adorava quando tinha
que ser a mãe, pois eu ia junto.
A molecada estudava na mesma escola e no mesmo turno. À tarde. A gente
formava um grupo. A gente falava que nem os mosqueteiros, que nós vimos na
televisão. Um por todos e todo por um. Mexia com um, mexia com todo. Eles
falavam que todos era irmão. Era o bando. Um dia na escola, uns garotos
começaram a mexer comigo e com a Lua. O Zito ouviu, começou a
discutir com eles, chegou o Nilton e o Cassio. Começaram a xingar e chamou nós
de filhos da puta. Os três deram um pau nos outros quatro. Foram parar na
diretoria. Eu e a Lua, fomos contá pra diretora que eles chamaram nós de filho
da puta. Eu vi que a diretora, sorriu, engasgou pra falar, mas, liberou os
meninos. Naquele dia eu tive certeza, que a profissão da mãe era puta, palavra
que dava briga lá no Recife e eu e todos que estava ali, éra filho da puta. Nós
ia levar dentro de nois essa verdade. Outra coisa que comecei a vê, como a
Luz e o Nilton, que eram escurinho, sofriam. As pessoa tratava eles diferente e
mal, só porque não eram branco. Falava comigo de um jeito e com a
Lua de outro. Tinha até professora que fazia isso com eles, e com outros menino
e menina que eram preto. Os dois era gente fina, como falava o Buiu. A Luz,
depois da Deda foi a minha miór amiga.
Um dia, a mãe voltou de tarde e foi pra cama passando mal. A Dona
Raimunda fez chá e deu remédio pra ela. A mãe passou a noite com febre. A mãe
pediu que eu pegasse água fria, molhasse um pano e colocasse na testa. Passei a
noite toda fazendo isso. Não dormi. A mãe botô os bofe pra fora. Quando as
menina chegaram, pedi ajuda. A Zefa e a Ção ficaram com ela e mandaram eu ir
dormir no quarto da Ção. Apaguei, quando acordei corri na mãe. A Ção táva
dormindo na minha cama e agora, quem cuidava da mãe, era a Carol. A Dona
Zulmira, onde a mãe trabalhava, mandou um médico. Examinou a mãe e deixou
remédio para dar de 4 em 4 horas. Não fui pra escola. Chorei várias vezes e
pedi a Nossa Senhora pra ajudá a mãe. Falei que eu sabia que ela não tinha
levado a vela, mas prometi, que logo que ela melhorasse eu levava.
Chorava e pedia pra perdoá a mãe. Nossa Senhora, bota fé que ela leva. A
Dona Raimunda, fez canja de galinha pra ela ficá mais forte e forçava comer. No
quarto dia, começou a conversá comigo e contou que têve um bebê, mas que não
podia ficar com ele. Não tinha como criar. Quando tirou ela ficou ruim. Eu
cuidava mãe, falei. Num dá filha, você é muito nova pra cuidar de uma criança.
Fiquei triste, porque perdi um irmãozinho ou irmãzinha, mas, contente, porque a
mãe não morreu. Teve outras vezes que ela ficou ruim, não como aquela. Dizia
que era do trabalho. Só que cada vez eu achava que ela ficava mais triste,
cansada e mais velha. Um dia ouvi a mãe conversando com a Ção, dizendo que não aguentava
aquela vida, oito dez homens cada noite, a maioria cheirando mal ou cheio de
pinga. Tem uns que quer fazê umas coisas que não gosto ou não tô acostumada.
Pouco deles tratava bem. Tinha vergonha do que fazia, mas precisava sustentá
nós. A Ção, que era a mais velhas delas, respondeu que tinha que tomar cuidado
de não pegá doença, nem criança. Não aceitá homem que fosse ruim. Se que o home
queria, ela achava que não devia fazê, trata de fazê carinho e distrai ele.
Oxe, eu sei que tem hora que não dá, aí não tem jeito. Quando tem alguém muito
ruim, fala pra Dona Zulmira, que ela não deixa mais entrar. Mas tinha que
aguentar por minha causa. Essa a vida de mulher da vida, puta.
A mãe e eu não tínha voltado para Recife, não morava em nossa casa, não
tinha carro, roupa bonita, mas a gente vivia melhor. Preocupada com a promessa
da vela que a mãe fez e não cumpriu, se nossa vida ficasse melhor, resolvi
perguntar. Mãe, nossa vida ficou melhor? Ficou, ela me disse. Por que não
levamo a vela que prometeu pra Nossa Senhora. Me abraçou e falou que eu tinha
razão. Que a gente ia levá.
As meninas, Dona Zulmira, que deu mais e Dona Raimunda ajuntaram
dinheiro e alugaram um ônibus pra todo mundo, inclusive as crianças ir pra
Aparecida do Norte, casa da Nossa Senhora no Brasil. A viagem foi uma farra.
Teve cantoria, sanduiche e refrigerante. A igreja era muito grande e
bonita. A igreja dela é grande, porque o Brasil é grande e a casa
tinha que ser enorme pra caber muita gente, falou a Zefa. A Nossa Senhora de
lá, que eu já tinha visto em foto, era preta. Vige, como era bonita. Táva com
coroa em um lugar dourado fechado com vidro. Nós passamos lá e demos um beijo.
Aí, nós levamos a vela. Era um lugar feio com muita fumaça e muita vela. Depois
fomos ver um lugar que as pessoas colocavam fotos, muleta, perna feita de cera.
A mãe falou que estavam agradecendo milagres que as pessoa receberam. Depois
sentamos nos bancos para rezar. Era muito barulho, muita gente. Falei pra Nossa
Senhora que ia falar com ela lá na igreja perto de casa, era mais sossegado.
Depois, fomos comer hamburguer na lanchonete, lá no estacionamento. Dona
Zulmira pagou e falou que era presente pra todo mundo. A gente aplaudiu,
assobiou e comeu com todo mundo falando ao mesmo tempo, se sujando de ketchup e
mostarda. O Nilton jogou batata frita no Cássio e a Neuzinha deu bronca nos dois.
Ela gritou, que Deus não gostava que jogava comida fora. Pensei é verdade, eu
mesma já peguei comida na lata do lixo.
Um dia fui falar com Nossa Senhora. A vó da Deda, falou que quem nasce
pobre vai morrer pobre. Será que teu filho Jesus, que é Deus, quer que a nossa
vida seja sempre assim. Oxente, ele nasceu num curral, entre boi e vaca. Vocês
eram pobrinhos. Sabem quanto é difícil ser pobre. As pessoas tratam a gente diferente.
Quando eu paro na frente da igreja, todo mundo fica me olhando diferente,
olhando minha roupa, meus sapato. Os meninos com roupa bonita ninguém fica
olhando, falam com eles. Outro dia uma mulher queria me dar uma esmola. Eu não
tinha pedido. Falei que obrigado. Não precisava. A mulher saiu me xingando.
Pobre não é filho de Deus ou será porque eu e meus amigos somos filho da puta?
A mãe trabalha nisso, mas, não gosta. Fica triste. A mãe fala para eu estudar
que não quer que passe o que ela passa e passou. Quer que eu seja alguém na
vida.
Hoje tenho 20 anos. Muita coisa aconteceu nesse tempo.
O bando sempre foi mal visto na escola, mas, nós no protegíamos. Éramos
uma família. Quando eu tinha 14 anos, fomos a uma festa da escola em um
salão perto. Uma banda tocava músicas maravilhosas. Banda era algo que a gente
não via sempre.
Eu e a Lua fomos com nossas roupas mais bonita. Jeans, blusa com
bordados e jaquetinha. Calçávamos botinhas. Estávamos no nível das riquinhas da
outra escola, assim pensávamos. Encontramos lá o Buiu, que adorava dançar e o
Zito. Eles tentando alguma chegada com as menininhas. O Buiu até estava no
enrosco com uma. Toda hora, os garotos vinham dançar conosco. Só que eles
dançavam de um jeito sem vergonha. Quando a dança era lenta, apertavam e
enfiavam as penas no meio das nossas. Parecia, às vezes, que estavam mais nos enconchando
que dançando, até queriam apertar nossas bundas. Tinha uns, que só porque a Luz
era negra, pensava que poder abusar mais. Numa dessa reclamei e o Zito que
estava perto falou pra não fazer aquilo com a irmã dele. O outro gozou,
perguntado se todo filho da puta era irmãos. Deu um pau. O Buiu entrou, alguns
amigos deles entraram. Acabou a festa em pancadaria. Os garotos da escola
passaram a nos respeitar, apesar do cochicho que faziam quando nós passávamos.
Essa era uma realidade constante.
No meio desse tempo, o Cássio se meteu com drogas. Todos falamos para
parar, mas, ele estava gostando do dinheiro que ganhava. Dizia que ia tirar a
mãe da vida. Andava com um pessoal da pesada e longe do bairro, porque
algumas vezes nós o pegamos vendendo e ficou com vergonha da gente. De repente,
desapareceu e depois, soubemos pela Neuzinha, que foi morto, num entrevero com
a polícia. A Neuzinha chorou a morte dele, por muito tempo. Ele era um rapaz
bonito e muito simpático. Sempre achei que se daria bem na vida, mas, a vida,
não se deu com ele.
A Lua que era minha amiga, quando tinha uns dezessete anos, começou a se
meter com um pessoal que conheceu em uma das festas da escola dos riquinhos.
Ela ficou uma negra alta, linda, faceira, tinha um sorriso que ganhava qualquer
um. Sua voz era gostosa e possuía uma conversa agradável. Toda hora, alguém
vinha buscá-la de automóvel, para sair à noite. A Dora, sua mãe e o Nilton,
irmão, brigavam com ela por estar se metendo em um meio que não era o seu.
Devia parar de farra e continuar estudando. Conversei com ela para aproveitar a
beleza que tinha e tentar ser modelo, trabalhar na televisão, sonho de todos
nós. Não deixar ser aproveitada por homem. Dizia que eles só queriam foder,
portanto, era um jeito de ganhar o que queria e ter uma vida melhor. O irmão e
a mãe tanto brigaram com ela, que quando fez 18 anos saiu de casa e foi morar
com umas amigas. Acredito que virou garota de programa. Ela dizia que se a mãe
ganhava a vida assim, estando acabada, ela que era jovem e bonita ia se dar melhor.
Nunca mais soube dela. O Nilton, a última vez que o encontrei, era vendedor em
uma loja de roupa para homens em um shopping. Diz que estava namorando e quando
casasse mudaria de casa e levaria a mãe junto.
O Buiu virou evangélico, conheceu uma menina da igreja. Eu gostava dela.
Era delicada, simpática. Acabara o ginasial. Só falava em casamento. Casaram,
mudaram para uma casa lá para os lados da Zona Leste. Os dois trabalhavam. Ela
de caixa em um supermercado e ele consertava computador e celular. Abriu uma
lojinha, onde depois a mulher foi trabalhar. Apareciam sempre para ver a mãe.
Quando teve o segundo filho, conseguiu tirar a Zefa da vida e levou para viver
com eles.
A Ção que vivia sozinha, ficou muito doente e foi morar com a irmã em
Andradas, a quem ajudou por muito tempo. Era seu sonho, mas, estava com a saúde
abalada e não viveu muito tempo.
A Carol e o Zito voltaram para a Paraíba, onde tinham família. A Carol,
na minha opinião foi a mais inteligente. Sempre direcionou o Zito para ter uma
profissão. Era mecânico de carro. Saiu da vida há tempo, com saúde e dinheiro
no bolso. Pelo que sei, comprou casa em João Pessoa e uns terrenos. Fiquei
muito feliz por eles.
Hoje olho para trás e vejo como foi minha vida, a da mãe, das meninas e
dos filhos. Por empenho da mãe, me formei em contabilidade, apesar do ensino
muito fraco que recebi, e agora estou entrando na Faculdade de Contábeis.
Consegui trabalhar, para pagar o curso, durante o dia e estudar a noite. A mãe
não quis parar de trabalhar na vida, até eu me formar em contabilidade e estar
firme trabalhando na área. A casa que morávamos com a saída das meninas, que se
conheciam, começou a ter meninas mais novas, com outra mentalidade, se
envolvendo com homens e drogas. O ambiente foi ficando cada vez pior. Três anos
atrás, consegui alugar um pequeno apartamento em Carapicuíba. Após um tempo,
quando estava com meu emprego firme, tanto fiz, que a mãe saiu da vida. Sua
saúde estava muito debilitada. Foram dois anos difíceis, de postos médicos,
internação no SUS, até que seis meses atrás faleceu, fruto das doenças que
colheu na vida. Morreu com uma luz apagada nos olhos e triste por não
conseguir mudar de vida. Dizia a ela, que tinha conseguido melhorar nossas
vidas. Saímos das palafitas e agora morávamos em um apartamento, só nós duas.
Consegui estudar, tenho uma profissão. Tudo graças a seu esforço. Sua morte me
estimulou escrever este relato.
Vejo que em nosso país, pobre, na sua maioria, morre pobre. Do
crescimento econômico, das melhorias sociais só recebe esmolas. A máquina não é
feita para o tirar da pobreza, até parece, que existe para mantê-lo. O governo
tira muito e devolve pouco. Usa para manter as suas mordomias, numa
discrepância absurda em relação ao nível que vive o povo. Ele povo, não é
o fim para chegarem ao poder e sim o meio. Quanto pior for a educação, melhor
para os políticos usufruírem da sua ignorância. Só a educação liberta!
O pobre, normalmente, é empurrado para a periferia das cidades e da vida
ou morar em guetos.
Nunca mais voltei as palafitas, que foi por muito tempo meu sonho.
aeedd