O Milagre


Esta história não é de conhecimento de ninguém, portanto, como estou no final dos meus dias, resolvi deixar o seu registro:
O mês é maio de 1960, chego de ônibus, após duas horas e meias de sacolejo em estrada de terra de São João Del Rey a Sant’Anna do Vale em Minas Gerais.
 Estou aqui, pois, é a cidade em que nasci e onde mora minha Tia Doquinha, que me criou como seu filho, junto com Tio Nôno, quando da morte de minha mãe, por desgosto, três anos após a morte de meu pai.
Tio Nonô tinha uma marcenaria, enquanto Tia Doquinha era professora.  Foram maravilhosos como país. Tenho uma grande adoração por eles.
Nesta cidade irei cometer o crime que idealizei.
Quando desço do ônibus minhas pernas tremem e passa por mim uma sensação de medo pelo que irei fazer e penso:
- Terei coragem de por em andamento meu plano? Como reagirá a cidade?
Sant’Anna do Vale é uma cidade de pouco mais de três mil habitantes, tendo surgido como vila no Sec. XVIII e  crescido quando da expansão  da mineração no estado, em virtude da Mina Salto, produtora de estanho, que teve o seu fim em 1948, quando do grande desmoronamento, em que houve inúmeras mortes, inclusive a de meu pai.
É uma aprazível cidade nas encostas do Campo das Vertentes ,  perto da Serra do Lenheiro, cercada de montanhas e que teve o seu início às margens do Rio das Mortes, mas o seu crescimento encosta acima em virtude das esporádicas enchentes do rio.
Desço na parada situada próxima do rio, debaixo de uma árvore frondosa, pois, não há estação e tenho que subir a Ladeira de Sant’Anna que vai do rio até a praça da matriz e onde se situa o principal comércio da cidade. A rua, onde mora titia, é uma travessa da Ladeira, na parte alta.
São 11,30h. O sol é escaldante. Pelo horário, do almoço, não há quase ninguém nas ruas.
Passo em frente da marcenaria do Tonho, que pertenceu ao titio, do Bar do Alfredo, local de bebedeiras, carteado e bilhar e da mercearia do Sr. Augusto. Também na ladeira estão, o Liceu Eduardiano, onde quem tinha um pouco mais de condição estudava, caso contrário tinha que ir ao colégio público, a barbearia, que estava fechada, assim como, a botica.
Ouço o barulho da minha respiração e dos meus sapatos no calçamento secular, feito na sua parte mais antiga, próxima ao rio, de pedra moleque e o restante de pedra bruta irregular.  Ao longe o mugir das vacas nas montanhas, ladrido de cães e mais nada.  Há um silencio especial, embalado pelo vago som do vento. Novamente meus pensamentos são assolados pelo temor:
- Como reagirá a cidade e a minha família com o que irá acontecer?
Chego à casa de Tia Doquinha.  Bato à porta.  Ela abre, está me esperando, graças a carta enviada informando da minha visita.
Está vestida, como sempre. Uma saia simples escura, uma camisa branca bordada, um avental e o cabelo preso em coque.
Corre e me abraça. Aninha sua cabeça em meu ombro.  Sei que o faz para não mostrar as lágrimas que devem estar começando a correr dos seus olhos. Também tenho vontade de chorar.
- “Nossinhora”, como “ocê ta” magro. Mesmo assim, continua bonito. Vem entra, leva tuas coisas pro quarto, lava as mãos e vem almoçar.
O quarto, a sala, a cozinha, tudo continua igual. Móveis antigos, porém, bem conservados. Todos os ambientes limpos, arejados e com flores pelos móveis. Fotos nas paredes, o velho quadro de flores pintado por ela. Sobre a cristaleira, que é o seu xodó, inúmeras fotos da família.
- Tia trouxe um presente para a Senhora e para a tia Francisca. Vidros de perfumes.
- Não carecia meu filho.
Ao sentar-me a mesa me diz:
- Fiz a comida de tua preferência, arroz, tutu, ora-pro-nobis e carne moída.  “Óiquichero”.  Tem, também, salada de alface, tomate e cebola e um suco de limão pego no pé.
Enquanto como, conta-me as novidades da cidade e são muitas. Casamentos, batizados, doenças, mortes, festas, o diz que diz de todos os dias.  Todas ditas com a sua costumeira jovialidade e alegria.  Em tudo, para tia Doquinha tem um ponto positivo a ser observado.
Ela costuma ser a conselheira da cidade. Todos com problemas de amor, de dor, de vida a procuram. Para eles, uma palavra, um estímulo. Tia Doquinha é tida como uma pessoa sábia. Seu conhecimento de professora não é largo, mas, seu conhecimento de vida é amplo.
Do mais pobre e inculto ao mais rico e sábio a visitam, para tomarem um chá, comer dos seus biscoitos e sorver as suas palavras.
- Tia, este “trem tava bom demais da conta”.
- Pra sobremesa a tua preferida: Goiabada cascão com queijo branco.
Nesse momento, entra tia Francisca, irmã de titia. Depois de minha mãe era a mais nova.  Solteirona que junto com Tia Doquinha cuidavam de mim. Mora há duas casas de sua irmã.
- Junqueira, meu “fio”. Nossa como “ocê tá magrim”. Tá com olheiras. Vem cá, me dá um beijo e um abraço. Nossa que alegria. Não pude vir antes, pois tava cuidando de um trem lá na Igreja.  Veja o que “truxe”.
Coloca na mesa um bolo de fubá coberto de chocolate, que é o meu preferido, ainda quente.
Tudo isso dito sem parar e ao contrário de Tia Doquinha em alto e bom tom e gesticulando muito. As pessoas dizem:  Doquinha é uma brisa e Francisca é um vendaval.
- Quando as “mininas” chegarem pro café da tarde e pra te vê,vamos ter este bolo. Doquinha coloca “denduforno”.
O café da tarde é uma costumeira atividade que ocorre em casa de titia, onde suas amigas vêem para bordar, fazer biquinho de crochê, falar da vida dos outros e um cafezinho, com alguém sempre trazendo algo para comer.
- Francisca oia o presente que Junqueira te trouxe.
- Um “vidiperfurm” ! Obrigada meu filho.
Depois do almoço, arrumo minhas coisas no quarto e saio para dar uma volta, sem antes ter que prometer que estarei de volta para o café. Terei que aproveitar esse passeio para verificar como se encontra o acesso que terei de usar para conseguir o meu intento.
Pela rua encontro velhos amigos. Visito o bar, onde tomo algumas cervejas. Passo pela botica, pela venda. Passeio em torno da Igreja.
Em todos os lugares encontro antigos conhecidos e relembramos fatos. Risadas em quantidade pelas estórias vividas.
Vou até a beira do rio, onde se encontra a Fonte dos Amores.  Um velho bebedouro e tanque em desuso, feito em pedra sabão, onde antigamente se colhia a água para beber.  Em frente, no rio, ficava o ponto onde as mulheres lavavam a roupa.
A fonte se chama dos Amores, pois, dizem, que o homem e a mulher que beberem água nela, juntos, se casam.
Andei um trecho do rio, onde nadávamos e visitei o ponto onde as mulheres se banhavam e que sorrateiramente tratávamos de observar, pois, apesar de estarem de roupa, pela transparência dela molhada, podíamos perceber suas formas, quando não, claramente os seus seios. Observei os sagüis nas árvores, os tico-ticos de máscara, as tesourinhas, a vegetação exuberante e o rio formando remansos entre as pedras sabão.
As quatro voltei para casa. Tomei café com as amigas de titias. Respondi inúmeras perguntas. Saciei as curiosidades. Titia aproveitou e me perguntou:
- Quanto tempo cê fica?
- Três a quatro dias. Tenho trabalho em Belo Horizonte, não posso permanecer mais.
Às cinco e meia todas saíram para se prepararem para a missa das dezoito horas. Faço o mesmo. Vou com tia Francisca e Doquinha a Igreja.  Contam-me do Padre Amaro, que está há pouco mais de um ano na paróquia.
A velha igreja continua igual por dentro. Carcomida, pintura apagada, altar principal e dois pequenos altares laterais de madeira pintada e no centro um grande candelabro, também de madeira.  No principal a imagem de Sant’Anna.
Foi esculpida por Aleijadinho e dada pela cidade de Ouro Preto em pagamento a uma grande partida de estanho. É maravilhosa. Já a encontrei em alguns catálogos de peças do artista.  Nos altares laterais, São Roque e São José em imagens sem nenhum valor artístico.
Durante a missa relembro meu tempo de coroinha.  Comendo hóstia e bebendo vinho escondido.  As risadas durante a missa com os peidos do Padre Durval. Observar as meninas nas primeiras filas. Os coques que o padre nos dava na cabeça, quando nos pegava em alguma brincadeira. Subir no campanário. Descobrir os sótãos e acessos escondidos, feitos há muitos anos, e que muitas vezes nem o próprio padre conhecia.
Nesse momento penso:
- Terei coragem?
Voltamos para casa. Tia Francisca janta conosco. A sobra do almoço do dia, como sempre Tia Doquinha fazia, com algumas modificações: abobrinha, pedaços de omelete, quiabo ou o que caísse bem com a comida da manhã, para que parecesse diferente. Sempre tínhamos a impressão de estarmos comendo algo distinto do almoço, pelos incrementos que fazia.
Depois da janta as tias vão para calçada com suas cadeiras.  O mesmo é feito pelos vizinhos.  Irão passar horas conversando.
Alegando cansaço, vou para a cama.
Deitado, relembro quando fui embora. 
Tio Nonô me deu um dinheiro suficiente para os primeiros seis meses em Belo Horizonte.  Endereço de uma pensão, que havia sido recomendada por um amigo seu e que já tinha três meses antecipadamente pagos.
Estava inscrito no curso de Técnico em Contabilidade e possuía um emprego garantido como auxiliar de contabilidade, em uma empresa indicada, também, por seu amigo.
Quando cheguei, tudo transcorreu como previsto.  Iniciei a trabalhar.  O curso estaria começando depois de um mês.
Era maravilhoso estar livre.  A vida toda vivendo com minhas tias beatas que controlavam meu tempo, meus pensamentos, meus atos.  Eu era o sobrinho especial - carinhoso, obediente, aplicado e religioso.
No escritório de contabilidade, logo fiz amizade com dois indivíduos mais velhos, e que me levaram a conhecer a noite em Belo Horizonte.
Passado o mês, quando iniciaria o curso de contabilidade, eu estava enfronhado na boêmia, bebendo, jogando e com mulheres. Não iniciei o curso.
Em três meses, estava desempregado, pois, chegava pela manhã sonolento.  O dinheiro que havia trazido para seis meses, se acabou.
Com a minha boa lábia e aparência comecei a explorar mulheres na prostituição.  Tinha duas.
Quando Tio Nonô e Tia Doquinha escreviam, eu respondia mentindo, que estava bem nos estudos e no trabalho. 
Depois de um ano Tio Nonô morreu.  Quando a notícia chegou já havia se passado um mês.
Aleguei a Tia Doquinha que estava em aula e só poderia aparecer nas férias.  Não apareci nas férias, só retornei agora.  Ela deve ter ficado muito triste, mas não fez nenhuma referência ao fato.
Um mês depois da morte do tio recebi a notícia que Tia Doquinha  vendeu a marcenaria, pois, não tinha como tocar o negócio.
Eu seguia no jogo e na cafetinagem.   As coisas até que iam bem, quando me coloquei a jogar mais pesado, sem perceber, que estava sendo levado a isso por um grupo.
No começo só ganhava, e muito. Até que preparam a arapuca e caí.  Fiquei devendo um bom valor.  Cobraram, não tinha como pagar. Levei uma bela surra.
Continuaram me cobrando a dívida de jogo e eu me escondendo.  Até que pegaram as duas meninas que trabalhavam na zona e me geravam alguma renda.  Com medo fui procurá-los e disseram:
- Ou você paga, em até quinze dias, ou você morre.  Escolhe.
Agora estou aqui na cama pensando no que tenho de fazer.  O relógio bate dez horas.  Titias e os amigos se recolhem como de costume.
É hora de desenvolver o que planejei. 
Quando do bater das onze horas, me levanto e saio sorrateiramente do quarto e da casa.  Vou para o quintal no fundo, sem fazer barulho para não acordar as galinhas.
Pulo o muro e alcanço a rua de trás da casa, que não tem calçamento e nem iluminação. Este lado da cidade não é muito freqüentado a noite, pois, a duas quadras fica o cemitério.
Alguns não vão por ali por medo. Outros para não serem falados, pois, é comum os namorados se dirigirem aos muros do cemitério para namorarem, para os apertos, quando não chegam aos finalmentes.
As meninas da cidade têm medo de ficarem mal afamadas. Dizem que fulana ou beltrana tinha sido encostada. Ou seja, tinha se encostado nos muros do cemitério para seus momentos de amores. Portanto, evitam andar por estes lados.
Aproveito os ermos da Rua do Xavier, paralela a Ladeira de Sant’Anna para depois virar à esquerda, na Rua do Sargento, atrás da Igreja, cortando a Ladeira, no ponto mais deserto.
Aproximo-me da Igreja pelos fundos.  Vou até a um local aonde há várias pedras grandes juntas formando um todo com a parede. Nesse ponto se esconde uma entrada que leva à parte superior da Igreja. Esse acesso não é conhecido por quase ninguém e não é utilizado.  O conheci nos meus tempos de coroinha e usava como esconderijo.  Quando do meu passeio,durante o dia, observei que se mantinha intacto, sem uso.
Com cuidado me esgueiro entre as pedras, forço a pequena porta, que não tem chave e está travada pelo tempo, pela terra que se acumulou em sua base e adentro. Há uma escada, usada nos tempos antigos para acessar o forro e fazer manutenção e limpeza, que obriga, pela sua altura, que se suba curvada.
Ocorre que passa por trás do nicho onde fica a estátua de Sant’Anna, tendo uma pequena peça de madeira que pode ser removida e possibilita se por a mão na imagem.
Este é o meu objetivo. Eu tinha traçado este plano, pois, havia verificado em algumas revistas especializada que a imagem de Sant’Anna tinha um valor alto, por ter sido esculpida por Aleijadinho.
Tratei de retirá-la sem deixar vestígios. Já trazia comigo um saco apropriado para colocá-la.  Do mesmo modo que me dirigi ao local sorrateiramente, retorno. Ouço quando o sino toca as doze horas. O som das badaladas repercute fundo dentro de mim e um grande temor se alastra pelo meu corpo e pensamentos. É arrependimento, mas, não posso mais parar.  Já o fiz, além do mais, se não arrumo o dinheiro, logo serei morto.
O tempo começa a mudar. Uma grande ventania se forma trazendo nuvens carregadas.
Pulo de volta o muro do quintal e coloco a Santa em um vão do muro tapado por tijolos soltos, que eu usava quando moleque para esconder os catecismos (livretos pornográficos) e outras coisas, que eram do meu interesse, e não queria que titia encontrasse.
Mal entro em casa começa uma chuva forte, com trovões e relâmpagos. Trato de ir silenciosamente para o meu quarto. Durmo logo pelo cansaço e a tensão do que havia feito.
Acordo no dia seguinte com Tia Franciscaa entrando em meu quarto e gritando:
- A Santa desapareceu!
- Como tia? A santa não pode desaparecer.
- A Santa desapareceu. Não tem  sinal de alguém ter entrado na Igreja durante a noite. Tudo tava fechado por dentro. “Nossinhora”, a Santa desapareceu.  Levanta, vamos com Doquinha até a Igreja.
Pela rua vamos encontrado pessoas que se dirigem para lá.  Exclamam, gritam, choram.
Há uma multidão na Igreja e do lado de fora.
Dentro, Padre Amaro puxa uma reza, acompanhado pelas mulheres. Muitas do Sagrado Coração outras Filhas de Maria.  Os Vicentinos estão presentes e a associação dos Homens de Fé, que tem como missão carregar o andor do Senhor morto na semana santa, assim como, os Congregados Marianos, aos quais fiz parte quando jóvem.
Os Coronéis Bento, Augusto e Damião, os maiores fazendeiros da região acabam logo chegando.  Todas as pessoas importantes da cidade se dirigem para a Igreja.
Formaram-se grupos para investigarem no recinto, para procurarem em volta da cidade, algum vestígio que possa levar a Santa, apesar das beatas dizerem que ela tinha desaparecido e não roubada.
- “Sô” ela desapareceu. É castigo “promó” dos pecados da cidade. “Vamo paga” nossas penas.
Logo começam os comentários dos castigos da Santa.
Surge alguém dizendo que Nhô Bento estava simplesmente andando em seu sítio e sua perna estalou.  O osso tinha se quebrado, sem mais nem menos.  Era um castigo, pois, todos sabiam que Nhô Bento tinha uma mulher e filhos fora do casamento.
- “Perai”, a tempestade de ontem a noite, deve ter sido a briga de Deus com o Diabo.  Deve ter sido os Anjos protegendo Sant’Anna.  Agora não é época de tempestades.
Alguém logo apareceu gritando que o Coronel Damião quando voltava para o alambique  caiu do cavalo, que deu um pinote, assustando não se sabe com o que (alguns falaram que era o demo) e quebrou o ombro. Coronel Damião tinha fama de ser um homem ruim.  Devia ser castigo.
As notícias de desgraças e castigos se multiplicam.
Logo chega alguém a galope, que apeia espavorido e traz uma notícia assustadora:
- Na fazenda do Coronel Assunção nasceu um bezerro com três pernas.
Começo a ficar assustado, apavorado.
Albertinho, meu amigo de infância, se propõem a pegar dois cavalos do seu pai, se eu quiser ir com ele ver de perto, se era verdade. Aceito, pois, estou com medo se aquilo é castigo pela ausência da Santa ou simples boatos.
Ao chegar ao local observo admirado, que realmente, o bezerro havia nascido com três pernas. Duas traseiras e uma dianteira.
Todos comentam que era castigo da Santa para a cidade. Que começariam a ocorrer desgraças como previra, há algum tempo atrás, Mãe Joana, vidente do local, respeitada por muita gente.
Volto abalado. Minhas pernas tremem, meu coração está disparado. Albertinho resolve ir ao bar tomar uma “pingumel” e contar o que tinha visto. Eu resolvo ir para casa, não tenho nervos com o que tinha visto, fora que, esta próxima a hora do almoço.
Encontro Tia Doquinha mexendo na horta, no fundo de casa. Canta baixinho uma música religiosa. Tem a expressão abatida, entristecida.  Quando me vê, para com o que faz e vem em minha direção.
- Junqueira, tem comida pronta.  Não tive vontade de cozinhar hoje. Aproveitei o arroz e feijão de ontem, mais uma couvezinha refogada e ovo frito. Tudo bem?
- Sim tia. Tudo bem contigo?
- Sim e com ocê?
Diz isso e me olhando nos olhos. Parece que esta lendo meus pensamentos. Seu olhar me queima, é como se soubesse o que eu tinha feito.
- Tudo, por quê?
- Por nada. É que hoje estou triste com o desaparecimento da Santa. Quando ocê vai embora, mesmo?
- Amanhã tia. Tem o ônibus que vai para São João Del Rey.
- Que pena, tão rápido.
Dito isso, coloca a mesa. Vai para o fogão arrastando seus chinelos e começa a fritar alguns ovos.
É duro a comida descer goela abaixo. Parece que eu tenho a garganta fechada, apertada. O almoço é silencioso, pesado.
- Filho, vou deixar a louça “dendapia” e depois eu lavo.  Vou deitar, não tou bem.
Eu resolvo cuidar do assunto. Lavo rapidamente os pratos, talheres e copos e corro para o quintal.  Olho o local em que havia escondido a Santa. Parece estar em ordem, apesar, de não ter certeza se havia deixado os tijolos do jeito que estão.  Sento na sala e fico pensado sobre os acontecimentos.
Tia Francisca aparece, sempre com seu jeito arrebatado.
- “Uaí”, onde tá Doquinha?
Antes que responda me diz:
-Tá sendo montada vigílias na igreja, “promodi” hora em hora, um grupo rezar. Dia e noite, até a Santa “aparece”. Os “homi” ficam de noite e madrugada e as “muié” de dia. Vai lá Junqueira, escolhe um horário. Vou prosear com Doquinha.
Desaparece, se dirigindo para o quarto, do mesmo jeito que apareceu. Como um furacão.
Saio e vou até a Igreja, que continua com muita gente. A maioria rezando, se não, especulando sobre o ocorrido.
Não tenho coragem de me escrever. Saio andando sem destino até que paro no Bar do Alfredo e peço uma cerveja e fico ouvindo as conversas, apreensivo.
- Sabe o Professor Demósteles, que deu aula  na cidade, até se aposentar, e que mora no sítio aqui próximo? Uma cobra o mordeu quando tava vindo pra cidade pra saber das notícias. Não morreu, porque, tinha mais gente com ele, que o levaram correndo pra  farmácia tomar uma injeção. Castigo da Santa. O Professor é comunista.
- Cruz credo! As galinhas da Dna. Gertudre,  não botaram ovo, hoje.
- “Onti” a noite, um grupo de tropeiros chegando lá pros lado do rio, próximo do putero da Lola e da Flores, na hora da tempestade, encontraram uma figura no meio da encruzilhada.  Parecia o demo carregando uma coisa debaixo do braço. Podia ser a Santa. Tiveram que tirar um crucifixo e rezar uma ave-maria “promodi” desembaraçar a estrada.
Os fatos se multiplicam. Muitos vêem da imaginação e do diz que diz do povo. Esse é o espírito  reinante na cidade.
De repente aparece o moleque Malaquias, vizinho de titias. Vem correndo.
- Seu Junqueira, corre que tua tia Francisca tá te chamando.
Meu coração quase sai pela boca. Será que descobriram o que eu fiz?
Quando chego, apressadamente, o Sr. Juvêncio, da Botica, que é chamado nos momentos de necessidade médica, estava saindo de casa.
- Junqueira, Doquinha caiu numa prostração. Num fala, num come, num abre os “oios”. Meu Deus. É desgosto pela Santa. – Disse tia Francisca – O Sr. Juvêncio fez uns “inzaimes” nela e não encontrou nada.
Meio tonto, entro em seu quarto e pegando a sua mão começo a lhe chamar.
Não responde, não se mexe. Parece uma morta. Começo a chorar.
Tia Francisca me faz ir para o quarto, onde chorando me deito. A minha cabeça esta a toda, não para: maldição sobre a cidade, as imagens do bezerro de três patas, os tropeiros se encontrando com o demo, a queda do Coronel Damião do cavalo, a tempestade, a tia prostada. Minha cabeça não para.
Ouço as amigas de titias chegando para o café da tarde. Os comentários cheios de Nossa Senhora, Meu Deus.
- “Sô”, Doquinha é uma pessoa boa. “Promodi” que aconteceu isso com ela?
- A Santa quer mostrar que os bons vão pagar pelos maus.
Vão para o quarto e rezam o terço. 
Depois de um tempo que se foram vou até o quarto da tia. Encontro Tia Francisca com uma colher, como se estivesse dando de comer a irmã.
- Tia ela comeu?
- Não meu filho. Sou eu que “cabei” de tomar sopa. Ela não se mexe.
Angustiado resolvo ir até o Bordel da Lola e da Flores, onde além de mulheres se pode encontrar alguma bebida diferente que cerveja e pinga. A casa fica perto do rio, no meio do mato, para que as boas famílias não a vejam.
A casa esta deserta. Tenho que chamar por alguém. Aparece a Flores.
- Tu por aqui, mi hijo, há quanto tiempo ?
É argentina e está bem acabada. Tem o rosto rebocado de maquiagem. Os seios são opulentos e saem pelo decote.
- Não tem ninguém ? - Pergunto
- “Hijo, las mininas” estão rezando para a Santa.  Todos “quieremos que vuelva” para o bem da cidade e do nosso movimento. “Voi” a te chamar uma.
- Não, não precisa. Quero uma bebida. Quero um uísque.
- Jorge trás uma dose de uísque para o “minino”.
- Não quero uma dose, quero uma garrafa.
Jorge, o atendente do balcão, leão de chácara e quem sabe, amante das duas, trouxe a garrafa.  É um legítimo Cavalo Branco falsificado.
Para aplacar os pensamentos vou bebendo dose por dose. Chegam um ou dois clientes e com eles a chuva.
Ouço o vento, o trovoar e a água caindo aos cântaros.
A bebida vai descendo e eu cada vez mais tonto. Pago com dificuldade e resolvo ir, apesar de tentarem me segurar por causa do tempo.
Vou cambaleando pela estrada. Estou sujo, molhado e misturo nos olhos minhas lágrimas com a água da chuva. Venta e troveja. Os relâmpagos caem longe e perto.
No local em que os tropeiros se encontraram com o demo, um raio cai sobre uma árvore, que começa a queimar.
No meio do fogo vejo uma figura que ri. Seu riso se mistura com o vento. Ri. Mal poso enxergar,pela água escorrendo em meu rosto, mas ouço o seu riso.
Caio de joelhos, chorando e imploro:
- Sant’Anna me ajude. Sant’Anna me perdoe.
Não agüentando e com medo vou ao chão, emborcando o rosto em uma poça de água.
O fogo começa a diminuir.
Retorno correndo, cambaleando para casa. O susto e a chuva afastam de mim um pouco da bebedeira.
Entro em casa e corro para o quarto de titia. Ajoelhado ao lado da cama e todo molhado pego em sua mão e chorando imploro:
- Me perdoa, me perdoa.
Passo um bom tempo desta forma, entorpecido pela bebida e pelo choro. Em determinado momento tenho a sensação que Tia Doquinha passa a mão na minha cabeça e de ouvir ao fundo:
- Meu filho você sabe o que tem que fazer.
Depois de um bom tempo nesse topor me levanto. A cama e o local onde eu estava ficam molhados. A tia continua imóvel.  Decidido, pego no esconderijo a Santa, salto o muro e vou em direção a Igreja. Chove torrencialmente. O sino bate duas horas da manhã.
Chego ao acesso escondido atrás da igreja. Ninguém o havia encontrado. Está intacto. Cuidadosamente entro e subo. Ouço a reza das pessoas. Coloco a Santa em seu nicho.
Pelo caminho, no retorno, começo a me sentir melhor, mais leve.  O tempo começa a mudar. A chuva para, as nuvens se abre e surge uma maravilhosa lua.
Entro silenciosamente em casa. Vou ao banheiro despir a roupa que está em encharcada, sigo para o quarto e durmo.
Tenho a sensação que mal tinha adormecido, quando Tia Francisca entra no quarto gritando:
- Junqueira, acorda meu filho. Acorda, o sino tá tocando sem parar. São seis horas, vai vê o que aconteceu.
Ao sair na rua, já imaginando o que estará acontecendo, ouço as pessoas gritarem:
- A Santa voltou. Milagre, a Santa voltou.
Na Igreja muita gente presente e muita chegando. O falatório é grande.
- A Dona Gertrudes, no final da reza das cinco horas, abriu as cortinas das janelas e a porta que estava entreaberta.  Os primeiros raios de sol entraram e bateram na Santa. Nesse instante todos a viram em seu lugar. Milagre.
- A Santa deve tê vindo na hora da chuva, pois, tava “moiada”.
- A chuva parou. A briga dos anjos “cum” o diabo acabou. Num tem mais trovoada.
Cada vez mais pessoas vão chegando. O sino não para de tocar.
Corro para casa para contar a Tia Francisca e a encontro conversando com Tia Doquinha que está recostada na cama.
- Junqueira, ouvi que a Santa voltou. Veja, Doquinha também voltou pra "nóis".
Abraço a tia e começo a chorar. Ela só me acaricia e não diz nada. Logo se levanta.
 Houve festa o dia inteiro. Os coronéis mataram alguns animais e se fez um grande churrasco para todos. Aparecerem inúmeros violeiros. Vieram pessoas das vilas próximas. A pinga e a cerveja correram soltas.
Muita gente vai à casa de titia ver o milagre da sua recuperação.
A partir daquele dia, todo o 22 de maio passou a ser feriado. O dia da Volta.
Dois dias após, depois de ter certeza que a tia está restabelecida, resolvo voltar para Belo Horizonte. A Tia Doquinha pressentindo que eu não tenho dinheiro, me dá algum.
- Caso seu Tio Nôno tivesse vivo ia quere fazer isso.  Filho vai, mas manda notícias.
Beijos, abraços. Queijos e goiabadas na mala. Choros da Tia Francisca e lá me vou.
- Filho vai que ta “quaisnahora”.

Estes foram os fatos, de uma forma fria e crua, que ocorreram naquele mês de maio, com toda a minha culpa claramente retratada.
Agora quero contar o que ocorreu com a minha vida e as dúvidas que assaltaram minha mente desde então:
Ao descer na rodoviária em Belo Horizonte, na minha volta de Sant’Anna do Vale, tratei de pegar o primeiro ônibus para São Paulo, pois, se ficasse por lá poderia ser morto.
Em São Paulo fui para uma pensão barata, perto da rodoviária. Uma região suja, cheia de prostitutas.
Procurei um emprego e por sorte consegui em um escritório de contabilidade, no centro, perto da pensão.  Tratei de me esforçar. O dono gostava de mim e me passou para auxiliar de contabilidade.
Com o tempo, perguntou se eu gostaria de estudar à noite. Concordei. Ele me pagou os estudos. Acabei me formando.  Trabalhei com ele mais seis anos, como contador e depois voltei para Belo Horizonte onde montei o meu próprio escritório de contabilidade. Acabei me casando e tendo duas filhas.
Dois anos após estar trabalhando em São Paulo, tirei quinze dias de férias. Viajei a Belo Horizonte, procurei os pilantras a quem devia e os paguei. Disse às meninas que estavam presas junto a eles que poderiam fazer o que quisessem da vida, mas, preferiram continuar na prostituição.
Fui para Sant’Anna do Vale visitar titias. Foi uma alegria. Um festival de abraços, comidas, comentários, visitas.
Como era 22 de maio, feriado, Dia da Volta, fomos a missa e a festa que se desenrolou na cidade. Dancei com tia Doquinha, Francisca e várias moças da cidade, as quais, as duas faziam questão de me apresentar.
Em determinado momento, de braço dado com as tias, Tia Doquinha me disse:
- A Santa fez milagre, não foi meu filho ?
Olhou para mim, para tia Francisca, sorriu e piscou um olho.
No ônibus, no caminho de volta, intrigado com aquela piscada, comecei a pensar:
- Não terá Tia Doquinha encontrado a Santa quando cuidava da horta?  Os tijolos, não ocasião, me pareceram mexidos.
- Será que na sua sabedoria, sabendo que se eu ficasse mais um tempo, poderia mudar de idéia, com o que tinha feito e para isso simulou uma doença? Não estaria tia Francisca dando sopa a ela quando entrei no quarto?
- Não teria eu, na minha bebedeira, confundido uma árvore em chama com a imagem do demo e ter imaginado ouvir risos quando nada mais era que o barulho do vento?
- Não terá sido coincidência o raio cair no meu caminho, a chuva iniciar e terminar tão logo peguei e devolvi a santa ?
- Não terá, realmente, a tia me afagado a cabeça, quando chorava, bêbado, em sua cama e me dito que eu sabia o que deveria fazer?
- Será que os fatos e coincidências ocorreram como pensei ou foram realmente em função da Santa?
Anualmente passei a visitar as tias, tratando de coincidir minha ida com a festa da Santa.  As duas viveram muito tempo e morreram em paz e felizes.
Acabei me aposentando e com a idade, vindo a morar em Sant’Anna do Vale, onde tenho uma pequena chácara. Mantenho a casa de titia na cidade.
No final desta estória, novamente, tenho que ressaltar a dúvida que sempre me acompanhou:
- Existiram os milagres ou foram coincidências e imaginação ?
Esta é uma resposta que nunca terei, porem, lembro o ditado popular que diz: “Deus escreve certo por linhas tortas”, ou como dizia tia Francisca:
“Dondi Deus decidi pô a mão o homi não muda não.”