Crack - Está Vencendo a Guerra

Meu nome é Solange, tenho 30 anos, sou aidética e estou em fase terminal. Fui usuária de crack o que acabou com minha vida. Vou contar minha estória.
Fiz faculdade de Administração. Comecei com 22 anos e me formei  com 25 anos. Fui uma aluna média. Durante minha faculdade aproveitei bem a vida.  Não tinha necessidade de trabalhar graças a boa situação de meu pai. Eu era uma típica classe média.
Minha vida era faculdade, bebidas e festas.  A partir da sexta feira somente bares, raves e farras.
No meio dessa vida experimentei extasy, maconha, coca e outras coisas.
Como eu era bonita, sexy e alegre, não me faltavam namorados.  Com nenhum tive uma relação mais intensa. O que me interessava era estar com a turma.
Nessa época, inúmeros baseados, pois, aquilo era só para relaxar. O barato maior eram as carreiras de coca. Não me faltava dinheiro para esses consumos. A minha mesada era boa. Crack era coisa de nóia, coisa de pobre.
Acabei me formando e fui trabalhar em uma multinacional. Graças a faculdade e um bom inglês, adquirido nas várias viagens ao exterior proporcionadas pelo meu pai, além de uma boa recomendação, acabei obtendo o emprego de auxiliar do diretor financeiro de uma grande multinacional.  Eu o representava em algumas reuniões, desenvolvia a sua agenda e cuidava de muitos dos seus assuntos. Era seu braço direito e pessoa da sua confiança. Cuidava, também, dos seus assuntos particulares.
Sexta feira era sagrada. Os amigos, muitos da faculdade e alguns novos. Noitadas, farras, bebidas, drogas e sexo.  Continuava não me amarrando com ninguém. Eu era querida no grupo. 
Em uma determinada época começou a faltar maconha na praça e apareceu uma coisa chamada pitico, que nada mais era que crack com maconha.  Dava um barato rápido e diferente. Não demorava para dar efeito como a cocaína. Era um tóim. O pessoal dizia que era o efeito do crack.
Eu e o Flavinho, velho amigo da faculdade, éramos os mais atirados do grupo e resolvemos conhecer o crack, motivados pelo efeito da droga.  O pessoal nos alertou para não entramos nessa, o barato era rápido, o efeito curto, e a dependência diferente da cocaína. A coca se acreditava que dava para parar quando se quisesse e o crack não. Além do mais, crack era droga de pobre.
O Flavinho sabia onde comprar. Fomos à cracolândia. Já devia ter me tocado no que eu estava me metendo. As pessoas eram magras, tinham os ossos da face salientes, as pernas e braços finos e as costelas aparentes. Pareciam verdadeiros zumbis. Crianças, adultos, mulheres, meninas grávidas. Era a escória da sociedade. Muitas pelo chão, nos cantos, nos vãos dos prédios. Muita sujeira, ratos e fedentina.
Compramos dez pedras. Eram baratas custavam em torno de cinco reais, cada.
Seguimos para o apartamento dele onde morava sozinho.  Flavinho, também, tinha se formado em administração. Seu pai era um fazendeiro, no interior do estado. Ele não trabalhava, fazia pós.
A primeira pedra foi um barato. Meu corpo relaxou, comecei a suar frio e senti uma enorme e rápida sensação de prazer. Só que foi muito rápido. Durou dez minutos. Gostamos. Logo tratamos de fumar a segunda pedra, a terceira, a quarta e a quinta. Nós queríamos mais. A sensação da falta era horrível. Precisávamos de mais.
Saímos como loucos atrás de mais. Compramos uma juremona, que é uma pedra maior e custava cerca de cem reais, fora outras tantas menores. Compramos também alguns baseados.
Já era o raiar do dia. Voltamos ao seu apartamento. Foi uma pedra atrás da outra. Era só tragar que o barato era instantâneo. Ao final de algumas pedras, começamos a ficar fissurados e para acalmar fumávamos alguns baseados. Passamos o dia e a noite do sábado. Com o crack não dormíamos.
Minha mãe me ligou algumas vezes.  Em determinado momento atendi e pelo desespero dela resolvi voltar para casa. Eu não sabia, mas, já tinha sido pega pelo vício. Ao contrário da cocaína, maconha e do extasy  o crack passaria a me cobrar a presença constante.
Ao chegar em casa foi um desespero por parte de minha mãe ao ver o meu estado. Eu deveria estar um trapo. Há dois dias não comia, não tomava banho, não me arrumava. Hoje penso e tenho pena dela.
Não sei como ela me cuidou. Na segunda fui trabalhar, mas, estava fissurada. Necessitava de uma pedra. Não hora do almoço fui atrás. Fumei no meio da rua. Peguei um taxi e voltei para o serviço. Meu estado devia ser tão óbvio, que fui enviada ao RH e mandada para casa.
Em vez disso, fui para o apartamento do Flavinho. O encontrei fumando crack e tomando vodca com energético. Mal sabia que eu iria fazer o mesmo. Era uma forma de amenizar a paranóia que o crack trazia.
Foram várias pedras. No final do dia necessitávamos mais. Não sabíamos, que com o passar do tempo precisaríamos de mais e mais pedras para termos os mesmos efeitos. Ele estava sem dinheiro eu tinha algum. Eu podia passar no banco, mas, estávamos loucos querendo mais.  Pegamos  sua bela máquina fotográfica, deveria valer uns sete mil reais, e fomos para a cracolândia. Lá ficamos sabendo de um hotel na boca do lixo onde eles trocavam produtos por pedras.
Os sete mil reais se transformaram em umas cem pedras e vários baseados.
Apareci em casa tarde da noite. Minha mãe havia ligado para a empresa, falado com algumas colegas de serviço e telefonado para amigos.
Novo desespero em casa. Meu pai, que da primeira vez não estava, falou energicamente comigo. No dia seguinte, cedo, me levaria a um médico.
Saí de madrugada de casa levando o que eu tinha de dinheiro, passando no banco e retirando o que era possível e comprando mais pedras. Fumei várias na cracolândia e me transformei em mais um farrapo humano caído pela calçada. Depois de um tempo, resolvi ir até a casa do Flavinho. Sentia-me deprimida e com medo.
Encontrei-o jogado no chão de um apartamento sujo, desarrumado. Fumei algumas pedras. Entrei em paranóia. Senti que estavam me perseguindo, como se carros entrassem no quarto me procurando, helicópteros descendo do céu tentando me carregar. Fumei alguns baseados, bebi o que encontrei, pois queria acalmar minha fissura.
Flavinho saiu de sua letargia. Começou a me abraçar e a chorar. Em determinado momento começou a me xingar, me deu algumas porradas dizendo que eu queria pega-lo e a gritar que via cobras escorrendo pelas paredes. Só nos acalmamos com mais pedras de crack, baseados e álcool. A vodca tinha acabado, tomamos alguns goles de álcool de limpeza.
Não sei, depois de quanto tempo nessa situação, o pai de Flavinho apareceu no apartamento e nos encontrou prostados pelo chão. Gritou que há dias não conseguia falar com ele e que tinha vindo a São Paulo a negócios e resolvera aparecer. Tocou-me para fora.
Desesperada fui atrás de pedras. Passei em um caixa eletrônico, rapei o que tinha, que não era muito. Dei meu celular e minha bolsa em pagamento.  Fiquei pelas ruas da cracolândia. Com alguns trocados que guardei fui para casa de ônibus, pois, nem me lembrava que tinha carro e nem sabia onde estava. Ante de entrar no prédio resolvi fumar algumas pedras. Creio que vomitei e comecei a me asfixiar com o próprio vômito.  Alguém que me conhecia deve ter avisado meus pais.
Acordei em uma clínica. Remédios, orientação psicológica, fissura, paranóia. Não sei como, fugi.
Não tinha grana. Estava em um bairro afastado do centro. Andei pelas ruas até encontrar um pessoal fumando um baseado. Pedi alguma grana e uma pitada:
- Putz a mina é a maior nóia. – alguém falou.
 Disseram que me daria algum, mas, eu teria que chupar o pau e dar para eles. Apesar do nojo, topei. Eram três.
Ganhei algumas pedras e dinheiro. Fui para casa. Novamente fui levada a uma clínica. Acabei fugindo.
Cada vez que passava em casa roubava algo: liquidificador, roupa, relógio, o que desse. Naturalmente o emprego foi perdido. Fui para a rua.
Em uma das vezes que voltei para casa, meus pais me trancaram no quarto com o objetivo de me levarem a uma clínica. Simplesmente, arrebentei a porta com o criado mudo e agredi minha mãe que tentava me impedir que saísse para a rua. Meus pais passaram a proibir minha entrada em casa. Só entraria se concordasse ir para uma clínica.
Tornei-me mais um farrapo jogado pelas ruas do centro. Várias vezes me prostitui por pequenos valores ou pedras. Participei de alguns roubos. Uma vez encontrei uma velha amiga na rua que ficou horrorizada com meu estado. Enquanto conversávamos arranquei sua bolsa e corri. Foi atrás e tentou me segurar. Ganhou inúmeras porradas e lhe dei uma senhora surra.
Eu tinha surtos de perseguição. Na boca todos diziam: Nóia não é gente. Se morrer ninguém nota. Encontrei vários deles mortos, por não terem honrado o pagamento do consumo ou em confronto com a polícia. Eu vi neguinho se enforcando em meio de uma crise de loucura.
Eu revirava latas de lixo na busca de qualquer coisa que tivesse valor. Pedia esmola. Trabalhei de vapor vendendo crack para ganhar algumas pedras. Fazia qualquer coisa
Queimei a boca e os dedos por causa da lata que usava para fumar. Minha boca tinha uma grande ferida. Perdi alguns dentes. Comecei a tossir. Não dava mais para fazer sexo oral em troca de alguns caraminguás. Tinham nojo de mim.
Por um acaso da vida encontrei o Flavinho na Carcolândia comprando pedras e estava mal. Não me reconheceu de imediato.
- Vem comigo, eu comprei algumas. – Ele me disse.
Contou-me que esteve várias vezes em clínicas e fugiu. Agora, por último, veio para São Paulo e estava morando no apartamento de seu amigo Júlio, que também era craqueiro.
O apartamento era uma pocilga, mas bem melhor que os buracos  em que vivia pela rua. Estava sujo, largado. Parecia um depósito de lixo. Encontramos seu amigo na maior fissura, desesperado por uma pedra.
Foram vários dias de consumo, com o dinheiro que o Flavinho havia conseguido roubar do pai e da venda do seu relógio, celular e lap-top. Até que um dia o Júlio, em um dos acessos de paranóia de perseguição, jogou-se pela janela e morreu. Veio a polícia. Chamaram o pai do Flavinho e o meu.
Foi um susto para meus pais. Eu pesava menos de quarenta quilos, pois, com o crack não tinha vontade de comer. Eu tossia seguidamente. Como eu vi o Júlio se jogando pela janela e o corpo estatelado no chão, sangrando por todos os lados, aquilo me causou um grande pânico. Eu chorava abraçada a minha mãe e pedia para me ajudar.
Perguntaram seu eu concordava ir para uma clínica. No desespero concordei.
Foi uma fase difícil. Tentei fugir, não consegui, estava muito debilitada. Tinha muita tosse. Meus pulmões tinham sido afetados pela fumaça do crack. O pior. Descobriram que eu estava com AIDS. Não sei se pelo consumo de crack no mesmo cachimbo ou pelo sexo que fiz desesperada em troca do vício.
Os fatos que relatei, não sei, se os fiz na devida cronologia, muitos outros ocorreram nesse período,  os omiti para não transformar minha narrativa repetitiva.  Durante esse tempo fui internada quatro vezes. Duas com minha autorização e duas forçadas. Em duas delas cumpri o período de reabilitação.  Nas outras duas fugi.
Em uma delas cumpri o período de quatro meses de tratamento. Depois de um tempo na rua não resisti, voltei ao crack. Como dizem nas clínicas, o final do craqueiro termina em três Cs: clínica, cadeia ou cachão. Hoje sei que menos de dez por cento dos drogados em crack se livram do vício.
Nas clínicas encontrei homens e mulheres das mais diversas idades. O crack não pega só os jovens. Havia engenheiros, advogados, empresários, pais e mães de família. Gente pobre e gente que é ou foi rica. O crack nivela todos por baixo.
Vi muito neguinho morto por overdose ou sufocado pelo próprio vômito, como quase aconteceu comigo. Gente que morria ou se feria em brigas, por qualquer desentendimento. Eu mesma levei uma facada, em briga com outra viciada, por quincalharia que encontramos na lata do lixo.
Presenciei gente levando tiro. Acompanhei noiadas dando a luz em plena rua. Uma estava passando muito mal e por sorte passou uma loira (como chamam os carros da PM; morena os da guarda civil) que a levou para um hospital. Uma vez, encontrei um recém nascido na lata do lixo. Deixei no local e sai correndo de medo.
Hoje estou limpa há mais de um ano. Tenho graves problemas pulmonares, estomacais e dentários.  Tenho AIDS.
Estou com trinta anos. Trabalho como tradutora em casa, serviço que meu pai conseguiu com um amigo. Tento refazer a vida, mas, tenho dificuldades em função dos meus problemas físicos.  Joguei minha vida fora. Acabei com a vida de meus pais. Pior de tudo, estou perdendo o meu futuro, pois o HIV está ganhando a guerra contra meu corpo enfraquecido.
Espero que o meu depoimento sirva para alguém refletir sobre a praga do momento: O CRACK.

INFORMAÇÕES:
O crack é uma mistura de pasta de cocaína com bicarbonato. É uma forma impura de cocaína.
O barato se dá em 10 segundos, mas dura de 3 a 10 minutos. É seis vezes mais potente que a cocaína. Basta de uma a cinco pedras para a pessoa se tornar viciada.
Causa grande euforia, grande depressão (forte sentimento de perseguição) e enorme dependência. O viciado fica agressivo, perde a autocrítica, tem surtos psicóticos e perda dos valores éticos.
As pedras custam em torno de R$.10,00. Parece um vício barato, mas o viciado consome de 15 a 30 pedras por dia.
Provoca lesões cerebrais que aumenta o risco de derrame ou infarto. Afeta os pulmões e os dentes. Quase 20% dos consumidores morrem em cinco anos.
O crack tira a fome e o sono. O que leva o individuo a uma maior debilidade.
60% das mortes se dão por confrontos com a polícia ou por acertos de contas com traficantes, 10% de overdose e 30% de AIDS, por relações sexuais inseguras e uso comum de cachimbos.
O crack está em quase todas as cidades brasileiras.
Hoje surgiu o oxi, a pedra de dois reais. Como o próprio nome diz é mais barata que o crack. É uma composição de pasta de cocaína com querosene ou gasolina ou diesel e cal. É bem mais letal que o crack.
Vicia na primeira pitada.