O Velório


(Uma humilde homenagem a Jorge Amado, inspirador deste conto)

A notícia correu como rastilho de pólvora pela cidade.
Bateu nas Igrejas, correu as ruas, os becos, passou de bar em bar, pela beira do cais e chegou à zona do meretrício, no canto do rio. Tudo bem que a cidade não é grande.
Dr. Adolfo, emérito advogado, com banca bem constituída na cidade, famoso nas farras e na putaria, havia morrido.  
Marido de Dna. Santinha. Apelido ganho de pequena pela sua bondade com as pessoas e os animais.  Beata pertencente à Congregação.
Mulher prestimosa, caridosa, linda e como alguns mal intencionados diziam:
- Gostosa, apesar dos quase 40 anos.
Os dois formavam um lindo casal. Nas visitas ou recepções aos amigos. Nas missas das 18,00 horas do domingo. Nos encontros literários e musicais.
Infelizmente, não tinham filhos. Diziam as futriqueiras por problemas dela, pois, os dois adoravam crianças.
Tinham vários afilhados que quando encontravam enchiam de mimos, carinhos, brincadeiras.
Dna. Santinha com a ajuda das amigas da Congregação e de suas comadres, Teca e Augusta, começaram a preparar a casa para o velório.  Era um sobradão de um andar, com alpendre na frente e um jardim. Tinha uma sala de estar e de jantar grandes.
Os móveis foram retirados, cadeiras foram providenciadas, inclusive com os vizinhos.
A noite seria longa, pois ele falecera à tarde.
Veio a funerária.  Vestiram, o morto com a ajuda do amigo inseparável, Zé do Taco. Renomado professor de filosofia da faculdade e que tinha esse apelido, não se sabe por suas qualidades no bilhar ou no sexo.
Solteiro convicto.  Não lhe faltava mulheres, principalmente alunas.  Era faceiro, cavalheiro e bom de conversa.
Fora um dos primeiros que acorreu Dna. Santinha quando do fato.  Todo o dia visitava o amigo, que ficara no leito por um mês, antes de morrer.
Fora atingido por um câncer no figado.  Diziam as más línguas que era pela vida desregrada que levava.
Dna. Santinha aproximou-se do caixão. Ao vê-lo se pôs a chorar e teve que ser amparada por Augusta.
Adolfo tinha uma faixa passando pela cabeça e por debaixo do queixo, para manter a boca fechada.  Tinha o rosto todo retorcido pelas dores dos últimos momentos.
Enquanto isso, na cozinha, as mulheres se apressavam em fazer café, chá, chocolate, bolos, bolinhos de chuva, cuscuz para os que viriam.
Logo a casa começou a encher.  As amigas, as beatas da Igreja, alguns maridos e finalmente começaram a chegar os amigos do Adolfo.
São muitos, pois, era muito conhecido e querido na cidade. Chegaram primeiro, os mais próximos.
João da Bigorna, o melhor funileiro da cidade, quando estava sóbrio.  Veio com a mulher, que logo foi embora, ficando ele que era amigo de infância e de farra do morto.  Gustavo, compadre, marido de Teca.  Contador.  Amigo de bebedeira, bilhar e putaria do emérito advogado.
Babau, marido de Augusta. Que tem como profissão ser vagabundo, pois, vive à custa da boa herança da mulher e como hobby a farra.
Dr. Marcola, médico. João das Neves, dentista, mais conhecido como Vira Noite, pelas suas qualidades notívagas. Pupunha, Mário, Coronel Bento, Carlinhos e Dário.  Ou seja, como dizia Dna. Santinha:
- A escória com quem andava o seu marido.
Na sala, as beatas, com seus terços e cantorias:
- Os Santos, todos os Santos, louvem a Deus para sempre. Amem....
Próximo da porta e no alpendre os amigos.
Carlinhos foi providenciar junto ao bar do portuga, Sr. Joaquim, que ficava próximo, cerveja, pinga e outras bebida para passarem a noite, pois, à base de cafezinho não iam agüentar.
Sr. Joaquim em respeito ao falecido e ao bom cliente de rodas de bebidas, carteado e bilhar e que muito já havia consumido em seu bar, resolveu ficar aberto a noite toda.  Até uma visitinha de madrugada fez ao morto.
A noite avançava, o entra e sai aumentava, o burburinho também.  Os homens, embalados pela bebida e as lembranças, aumentavam a voz e se sobrepunham aos sons dos terços das beatas.
Santinha aguçava o ouvido para entender o que falavam, sentada ao lado da comadre Teca, que não largava sua mão.  Eram ambas amigas, confidentes e companheiras dos mesmos infortúnios. As noitadas dos maridos.
- Adolfo companheirão de farra.  Não negava uma rodada. 
- No puteiro da Mãe Branca, brincava com as meninas, dançava, pagava bebida, mas não se deitava com nenhuma.  Dizia que xibio bom, gostoso, tinha em casa.  Era o melhor.
Santinha corava, enquanto ouvia e Teca segurava sua mão com mais força.  Trocaram um olhar. O de Santinha tinha uma lágrima e um pouco de vaidade por ser a preferida.
- Só soube que ele dormiu, há muito tempo, com uma polaca.  Dizia que era porque tinha os pentelhos ruivos como os cabelos da cabeça. Ele nunca tinha visto aquilo.
Safado, sem vergonha, por isso me chamava de polaca, minha polaquinha.
- Adolfo, por que me chama assim?
- Meu amor, porque os cabelos da sua xoxota são clarinhos. Adoro a sua perereca. Cheirosa como uma flor e saborosa como um favo de mel.
E seus lábios corriam por seu corpo deixando-a louca.  Seus beijos eram molhados, cheio de desejos.  Ela não conseguia esquecer esses momentos. Seu corpo, mesmo nessa hora de choro, lembrava-se dele.
Os amigos aumentavam, assim como, os casos e os risos. As estórias, as aventuras, as noitadas. Cada um tinha uma para contar.
Ela em casa ficava ardendo de ciúmes, medo de perdê-lo, de dor. E o gaiato com os amigos. Os quais não faltavam. Em cada esquina, cada bar, cada puteiro.
Qualquer conversa era conversa. Havendo música era o deleite.  Não tinha uma boa voz, mas, conhecia as letras.  Declamava bem.
Chegou a ser homenageado no Clube Literário Asdrúbal do Nascimento pelas suas declamações.  Nesse dia se sentiu a mais feliz das mulheres.  Marido bonito, elegante, cavalheiro, culto e na cama um maravilhoso amante.
Eis que entra no velório Soraia.  Vizinha de tempos atrás e que quando engravidou se mudou.  Veio com o filho de quatro anos. 
Era a cara de Adolfo!  Seus olhos, os lábios, o jeito de sorrir!
Quando entrou houve um burburinho.  Carlinhos e Pupunha logo se puseram ao seu lado.  Chorou no ombro do Carlinhos que lhe dizia palavras ao ouvido.  Logo se retirou ou foi retirada.
Santinha chorava pensando como o moleque era lindo. Quanto o Adolfo queria um filho.
Lembrava quando sorrateiramente lhe abraçava enfiando sua mão entre o vestido, brincando com seus seios e por baixo da saia afagando seu sexo e lhe dizia:
- Vamos fazer neném? Vamos fazer um menininho?
- Você quer mesmo fazer um neném ou quer fazer safadeza?
- Por que não os dois juntos, meu amor?
Era um deleite, um prazer maior, pois, o que mais queria era um filho dele.  Mas, não conseguiu lhe dar um.
Visitou o Dr. Arquimedes e não o Dr. Marcola que era o mais reconhecido, mas era muito amigo de seu marido.
Após os exames o Dr. Arquimedes lhe informou que não poderia ter filhos, por má formação uterina. Chorou três dias seguidos escondida dele e consolada pelas comadres Teca e Augusta.
Finalmente tomou coragem e lhe contou.
- Querida não chore o que vale é o nosso amor.  O que tenho de mais importante na vida é você.
Mas, via a alegria que tinha com os filhos dos outros, com a molecada na rua jogando bola.  Ela que era sua mulher não podia ter um filho e aquela vaca tinha um. Ouvira os boatos e não havia acreditado.  Agora a verdade esteve ali na sua frente.
Jô do Cavaquinho apareceu de madrugada, com seu instrumento de baixo do braço. 
- É mais um do bando, pensou Santinha.
Foi cumprimentá-la.  Chorava, tinha os olhos vermelhos e hálito de bebida, pois, já pranteara o amigo em vários copos em diferentes bares.
Colocou-se em um canto com os amigos e começou a lamuriar um chorinho com seu instrumento.  Era uma música que Adolfo gostava.
Muitas pessoas entraram.  Outras mulheres chegaram.  Foram amparadas pelos amigos do Adolfo.  Foram sorrateiramente retiradas.
Vieram coronéis, delegado de polícia, autoridades, bêbados. Gente pobre a quem os dois viviam ajudando.  Vieram os pescadores, para quem, gratuitamente servia de advogado na cooperativa.
Um dos amigos chamado Espiga, pelo seu tamanho, entrou trôpego, chorando.  Beijou o morto, acendeu o cigarro em uma das velas do defunto e se pôs a chorar no ombro da viúva.  Sua mulher que estava por lá, tratou de levá-lo para casa.
Foi uma romaria de pessoas.  As mulheres não venciam de fazer café, chá, bolinhos e outros petiscos.  E o Sr. Joaquim, do boteco, de repor as bebidas.
Dizem que algumas das putas vieram da zona.  Não veio Mãe Branca, pois, sabia que família era sagrada.  O lugar delas e o papel era outro. Mas aquele dia encerrou as funções.  As meninas não trabalharam.
Choraram a morte do Dr. Adolfo, pois muitas vezes, sem nenhum interesse, as tinha ajudado em alguma pendenga judicial.  Para Mãe Branca, atuou numa ação jurídica, impetrada pelo ex-marido, que queria usufruir do trabalho duro da cafetina.
Não se aproveitava disso, pagava suas bebidas.  Não dormia com as meninas, mas, lhes dava algum.  Era alegre, prestativo.   Um bom homem.
A cantoria aumentou no alpendre. Concorria com os terços e os cantos religiosos das beatas. 
De algum lugar surgiu um bandolim e um pandeiro.  As bebidas, repostas pelo Sr. Joaquim Portuga, seguiam noite adentro junto com a algazarra.
Quem passava pela rua e não soubesse que era um velório, pensava que era uma festa.
Lá pelas cinco da manha a cantoria começou a cessar.  Os bêbados foram se retirando ou ajudados na sua retirada, de forma, a voltarem mais tarde para acompanhar o féretro.  Ficaram os maridos de Teca e Augusta, mesmo assim, empastelados em duas cadeiras pelo efeito da noitada.
Santinha permaneceu a noite toda sentada, não querendo ver o falecido com seu rosto todo retorcido.  Sabia que já tinham tirado a faixa que lhe amarrava o queixo.   Só se levantou duas ou três vezes para ir ao banheiro e tomar uma canja na cozinha, por insistência de alguém.
Não olhou o rosto do morto.  Queria se lembrar do Adolfo como era antes da doença.
Padre Arquimedes apareceu, lá pelas seis horas. Faria uma oração antes da missa das sete e voltaria depois, na hora do enterro.  Ele que sempre lhe dizia:
- Dna. Santinha a missa de domingo das dez horas é a missa da família e é a mais bonita.  A senhora sempre vem nas das dezoitos horas.  Venha na da manhã.
Santinha pensava:
- O Padre não sabe que para o Adolfo o final da semana é sagrado. É para a família.

Sábado, saíam. Almoçavam ou jantavam com os amigos, em casa ou fora.  Mas sempre terminavam a noite, na casa de alguém, com um café regado a licores e bebidas e uma boa cantoria.  De vez em quando iam ao cinema ou ficavam vendo TV. Normalmente dormiam tarde.

Domingo de manhã era o momento mais sagrado do final de semana.  Acordavam entre nove e nove e meia da manhã e começavam a brincar. Eram três, quatro horas de safadeza e sexo.  Eram um, dois, três gozos.  Ele realmente gozava e a fazia gozar.

Ouvia as amigas que mal sabiam o que era isso.  Os maridos só as usavam.
Ela era feliz.  Não havia posição, forma, que não tentassem.
- Minha polaca, este quarto é nosso mundo e a tua precheca (a cada momento lhe dava um nome diferente) é o meu céu.

Ela se transformava em uma rampeira.  Nos gritos, gemidos, nas palavras, nos gestos.
Só paravam porque a perseguida estava dolorida e ele exausto.
-Como o padre Arquimedes quer que eu vá à missa das dez?
Levantavam, tomavam banhos juntos e muitas vezes, nesse momento, começavam novamente o interlúdio.
Quando iam ver já eram, duas ou três horas da tarde.
Fazia uma comida ligeira, quando não saíam para comer fora.

Conseguia que fosse a missa à tarde.  Dizia que sendo uma mulher da Congregação, não ficava bem que seu marido não fosse a Igreja.
Iam na das dezoito horas.  Isto quando não havia jogo na TV do seu time.
- Oh mulher não sou de ferro e você sabe que time do coração também é sagrado.

Ele gostava de ir à missa, pois, encontrava alguns casais de amigos e depois da cerimônia iam tomar um sorvete ou beber algumas cervejas.
Gostava de cantar as músicas. Comungava, mas não se confessava.
Padre Arquimedes lhe dizia:
- Dr. Adolfo, comungar sem confessar é pecado.

Ele que tinha intimidade com o Padre, pois, já lhe ajudara em uma ação de herança, a qual fora utilizada para compra de uma casa para abrigar uma creche. O próprio advogado ajudou com dinheiro do seu bolso e de muita gente da cidade para quem solicitou contribuições.  Foi tão proveitosa a empreitada, que além da creche, montaram um asilo. Ambos administrados pela Congregação a que Santinha pertence.

- Padre da mesma forma que o senhor é um confessor eu também o sou.  Muitas pessoas me procuram com os seus segredos, seus problemas.  Nós as ajudamos de formas diferentes, o Senhor com os celestes e eu com os terrenos.  Ambos somos homens.  Sofremos das mesmas tentações e pecados.  Além do mais o Homem lá de cima é tão bom, que a todos perdoa.
Não adiantava discutir. Padre Arquimedes dizia para Santinha:
- Seu marido tem Deus no coração, mas, o diabo no corpo.

Todos se dirigiram para o caixão, acompanhando Padre Arquimedes, para a oração.
Santinha amparada por Teca se aproximou, pela primeira vez, aquela noite.
Qual não foi sua surpresa quando olhou para o rosto de Adolfo.  Tinha um sorriso nos lábios e uma expressão de alegria no rosto.
Santinha exclamou baixinho para Teca e começou a chorar:
- Veja seu rosto de felicidade.  Foi a noite com os amigos, a música, a bebida e as mulheres.
Chorando se recordou que aquela era expressão que fazia, quando dormia, após fazerem sexo ou quando volta de uma noitada.
Finalmente deu-se conta que estava perdendo seu homem.  Com ele, todas as angustias, dores, ciúmes, mas, principalmente a alegria, o prazer, o sexo, a safadeza.
E o choro aumentou.
Ao longe alguém ligou o rádio e a musica que tocava, mais lhe fazia chorar:
“O que será? Que será ?
Que vive na idéia
Desses amantes...
Está no dia a dia
Das meretrizes.....
Será, que será?
O que não tem descência
Nem nunca terá!
O que não tem censura
Nem nunca terá!
O que não faz sentido...."

Publicado originalmente em 24.11.10