Zé do Norte


Fugindo da seca na Paraíba, meu pai, Zé Vigário, mais eu e a mãe Leontina, viemos pra “Sun Paulo”, porque aqui tinha trabalho, o que “comê e bebê”.
Pau de arara e ônibus velho, numa viagem de terminar jamais.
Fomos morar em barraco na beira de riacho, nos fundos da Itaberaba, perto do tio Leocádio.
Aqui o velho fez mais dois gabiraus, João e Geralda.
A molecada, pés descalços, brincava no riacho, que mais era um filete de água suja. Subindo e descendo suas beiradas, atravessando as pinguelas. Brincando de descobrir o mundo.
Bola de meia, guerra de mamona, pipa, bolinha de gude, estilingue acertando os ratos.
O pai queria os homens na escola.
- Tem que sabê escrevê o nome e dos números.
Quando eu tinha doze anos, ele apareceu com uma caixa de engraxate e me mandou trabalhar.
- Precisa ajudar a pôr comida na mesa.
Eu ia para o centro do bairro, alpargata no pé e caçando cliente. Conheci um mundo novo.
Fazia uns caraminguás. Surrupiava alguns pras minhas vontades e o resto dava em casa.
Mãe Leontina era uma mulher alegre.
Lavava roupa pra fora. Trazia umas trouxas grandes, cheias de peças. Lavava na bica junto com as outras mulheres. Era um falatório só.
Estendia a roupa na grama pra corar e mais tarde aquilo tudo tinha que ser passado.
Ligava o ferro, e o radinho, comprado logo nas primeiras facilidades. A energia vinha através de um gato que o pai e o tio fizeram.
Cantando e passando, levava aquele duro trabalho, sentando de vez em quando pra aliviar as cadeiras.
Pai, Zé Vigário, um homem mirrado, baixinho, uma raspa de bigode no rosto. Trabalhava de ajudante de pedreiro, de segunda a sábado.
Nos domingos, ia para o bar jogar dominó e tomar umas branquinhas ou rabo de galo.
Aparecia tarde trocando as pernas.
No passar do tempo, mãe Leontina foi ficando mais gorda, farta nos peitos, enquanto o pai minguava.
Ele parecia diminuir a cada dia que a “Sun Paulo” dos sonhos ficava mais longe.
Na semana, parecia um ninguém, só brigando com as crianças e reclamando com a mãe.
Domingo crescia com os amigos, o dominó e as pingas.
A essa altura, eu já era Zé do Norte.
Não gostava que me chamassem de baiano, pois eu era Paraíba. Do Norte, tudo bem.
Trabalhava na venda do Sr. Joaquim, jogava futebol no time do bairro e agarrava as moças nos forrós da redondeza.
Num domingo, uma gritaria.
- Zé do Norte, corre, que teu pai tá em briga no boteco.
Quando chego o velho está caído no chão e escorrendo sangue.
Por briga de nada no dominó, mas com pinga de mais na cabeça, levou uma peixeirada.
Segurei sua cabeça. A boca balbuciando palavras que não se entendia. Os olhos vivos como se vendo a vida passando, mas que lentamente foram se apagando, se apagando. Até que, morreu.
Tempo passou, casei com Zefa. Tivemos Wellington que está com cinco e Laurinda, minha rosa, com catorze anos. Tem a beleza e alegria da avó quando jovem.
Filho meu tem que estudar, tem que ter uma vida melhor que a minha.
Moramos no barraco que era do meu pai, com um quarto a mais, nos fundos, pra a velha Leontina.
Como sabia dos números, como queria meu pai, arrumei emprego de cobrador de ônibus.
Trabalho duro, 10 a 12 horas por dia, mal tendo domingos e feriados.
Quando em casa, a alegria era brincar com Wellington e conversar com Laurinda. Saber da escola, das amigas. Contava tudo com graça, alegria. Eram só risos.
Mas, começou a mudar. Perdeu o brilho nas conversas, se isolava.
- Zefa, o que está acontecendo com nossa filha?
- É a porcaria de namorado, o tal de Tião. Ele não vale nada, tá metido com que não presta. Não sei o que fazer, tenho falado com ela, mas, não adianta. Fala tu também.
Voltando mais cedo do trabalho, porque teve greve, vejo Laurinda no meio de um grupo, fumando, bebendo e se esfregando com Tião.
- Filha vamos embora, teu lugar não é com esse pessoal.
Meio grogue responde:
- Ô pai, são meus amigos, é meu namorado.
Puxo belo braço.
- Vamos embora!
- Ô sogrão qual é a tua, a mina quer ficá!
- Sogrão o cacete! Vamos embora.
Tenta me segurar, lhe dou um safanão e ele pula com uma peixeira na mão e me espeta.
O sangue começa a jorrar. Caio no chão. Laurinda me segura a cabeça.
Quero falar, não consigo, mas, pelos meus olhos, todas essas estórias vão passando.
Zé Vigário, o barraco, as brincadeiras, minha mãe, os moleque, Zé Vigário morrendo, Zefa, meus filhos, Laurinda chorando, gritando, pai, pai, cada vez mais longe, se apagando, se apagando, ate que......


Publicado originalmente em 12.12.10