11/13/23

QUEM COMEU MAINHA?

 

Está história foi inspirada no conto de Carlos Batista Pereira “A mulher do padeiro”

 

O título parece provocativo, pois o sentido de comer é o popularmente utilizado para uma relação sexual. Pelo título já se sabe qual a grande resposta que se buscará na história. O leitor saberá de prima quem comeu Mainha, aliás nome pelo qual carinhosamente se chama a mãe no nordeste de nosso país. Mas, qual será a reação de alguns personagens ao saberem a resposta?

Nesta história teremos a oportunidade de conhecer, um pouco, como a moral pode variar em sua interpretação.

Busco histórias para colocar no papel, pois vejo como uma forma de perpetuar momentos, sentimentos e a arte de se viver. A realidade está sempre escondida por trás de farsas, pastelões, dramas, mas, sempre como uma faca apontada para o coração dos personagens. Eles se parecem muito, somente mudando os endereços, roupas, dores e alegrias, mas com a insana, maravilhosa, dolorida, triste, empolgante e, às vezes, inexplicável forma de viver.

Esta história me custou vários pratos de torresmo, ovos coloridos e goles de branquinhas. Foi contada por um dos principais personagens. Perdoe-me os leitores, mas em alguns momentos, não resisti e permiti que minha mente voasse por situações, que não foram citadas ou detalhadas, mas que instigaram a minha imaginação de escritor. Carlos Pereira, meu amigo, escritor especialista em romances históricos, me disse: quando temos uma inspiração, surgida seja da onde for, precisamos deixar a imaginação correr, pois o que preenche a vida de um escritor é escrever. É o que vou fazer.

Areia Santa, nos anos de 1960, era uma cidade de 2.000 habitantes na costa norte do Ceará, próximo ao Piauí, a quatro horas de ônibus de Fortaleza, que só ia uma vez por semana para o local, por um bom pedaço de estrada de terra, no meio da Caatinga. Era um paraíso, com suas praias desertas, os coqueirais, dunas e alguns remansos que se formavam junto ao rio que descia da Serra de Ibiapaba, e que de tempo em tempo, secava no seu caminhar, obrigando durante o ano, que os moradores guardassem água.

A cidade se formou de uma vila de pescadores, que teve seu início com pesca de curral e de lagostas por armadilhas, chamadas manzuás. A pesca de curral, era a tradicional, feita através da construção de cercados próximos à praia, para quando a maré baixasse os peixes ficassem presos. Em determinada época, houve uma piora nos currais, afetando os vaqueiros do mar, o que os levou a desenvolverem a pesca de linha. Com isso, havia uma boa quantidade de embarcações, canoas, jangadas, paquetes e botes, que variavam nas suas estruturas conforme o tipo de pesca. A de alto mar era chamada de pesca de fora, e de terra, a próxima à praia. Uma se praticava no mar de fora e a outra no mar de terra, na linguagem dos pescadores. 

Graças aos bons resultados que a pesca trouxe, pouco a pouco, a cidade crescia, inclusive com a vinda de pescadores de outras cidades como Mandau, Sabiaguaba, Baleia e outras. Uma embarcação, três vezes por semana, passava pela cidade e levava os peixes e frutos-do-mar para Fortaleza.

Os que não trabalhavam na pesca, o faziam nas terras do Coronel Cupertino, dono de extensões na região. Possuía cultivos de feijão, milho, mandioca, banana, babaçu, carnaúba, além dos grandes coqueirais. Era, também, proprietário de grandes rebanhos de cabras, necessitando de mão de obra para cuidar dos chiqueiros, ordenhas e aproveitamento do leite, gerando produtos que transportava para a capital.

Era uma cidade pacata, possuindo a Igreja de Bom Jesus, cujo pároco era o Monsenhor Dárcio, extremamente conservador, protegido do Coronel Cupertino, que resolveu viver os últimos anos de vida na região, visto já ter 82 anos. Na praça principal, de frente para o mar, onde se realizavam as festas da cidade, estavam a Igreja e as casas das pessoas mais importantes. O traçado da cidade se compunha da praça, das ruas que dela partem e as paralelas. A maioria dos pescadores, viviam no bairro do Encantado, localizado próximo ao mar em uma vila própria, à direita do centro da cidade.

Na praça, um dos pontos principais é o bar, mercearia, farmácia, material de pesca, ferramentas, agropecuária, ou seja, tudo o que se precisa na cidade em um lugar só. Estabelecimento de propriedade do Deoclécio, que quando não tem o produto, encomenda e traz através dos barcos. Deoclécio, um dos personagens principais de nossa história, tem 72 anos e está na cidade, desde que era um pequeno povoado, tendo começado como pescador e em pouco tempo tendo aberto  uma pequena venda. É extremamente respeitado e querido na cidade, ao ser, praticamente, o médico e veterinário, indicando medicamentos. É casado com Mariana, com 40 anos menos que ele.

Quando ela tinha 15 anos, se engraçaram e abusando da sua inocência, acabou engravidando-a. Só não sabia as consequências. Um dia entra em sua venda Justino, cabra-da-peste, jagunço do Coronel Cupertino, com um trabuco pendurado nas costas e uma peixeira na mão.

- Filho de uma égua, você buliu com minha filha, era moça e você fez mal. Descabaçou a menina e ela não vai virar quenga. Ou casa, ou morre.

Tremendo e com um olhar de medo, pois, não sabia que o jagunço era pai de Mariana, teve que dizer sim. No fundo, ficou contente, pois, gostava dela, além de ser uma menina apetrechada, um pitéu. No futuro iria desabrochar em uma linda mulher. Era sopa no mel.

Casaram, com dezesseis anos ela foi mãe de Washinton. O garoto era cuspido e escarrado a cara do pai. O menino, agora com dezesseis anos, tendo completado os estudos iniciais na cidade, na escola que a comunidade mantém, pagando e dando moradia e comida para dois professores da capital, fora mandado para a capital, à casa de uma prima, para continuar os estudos e se formar advogado. Ser um doutor, como dizia o pai.

Quando criança, Washinton chamava a mãe de Mainha. Era tanto Mainha para cá, Mainha para lá, que até Deoclécio, também, começou a chamar Mariana de Mainha. Como a cidade toda circulava pelo seu estabelecimento e ele se referia a mulher por esse nome, começaram a lhe chamar assim. Pouca gente, hoje, deve se lembrar do seu verdadeiro nome. Duas vezes, por semana, à noite e no domingo pela manhã, Mainha costuma ir à missa, onde participa da Legião do Sagrado Coração de Jesus. A presidente, Dona Joana, por não ter uma filha, tem por ela um amor de mãe. Não é difícil alguém não gostar dela. É uma mulher delicada no falar, com um olhar brilhante e um sorriso cativante. Atende a qualquer um que lhe solicite ajuda, estando sempre disposta, com isso, muito querida na comunidade.

O que ninguém sabe é que tem dentro de si um fogo ardente de desejo. Está com 32 anos, na plenitude como mulher, e tendo o marido com 72 anos. Muito carinhoso, atencioso, mas, negando fogo. Quando se deitava à tarde, depois do marido almoçar e retornar ao trabalho, no escuro do quarto, sentia uma força correndo pelo corpo, levando a pensamentos prazerosos, que lhe tomavam o peito, aguçando o ventre e umedecendo o sexo. Era algo que nunca sentira com o marido. Corria a mão pelo corpo, tendo reações desconhecidas. Todos os poros reagiam ao seu toque e se transformavam em gemidos, até atingir o ápice, prostrando-a na cama. Ficava longos momentos curtindo a sensação de bem-estar e relaxamento.

Dona Joana, presidente do Coração de Jesus, mulher madura e sábia, curtida da vida por uma separação, uma viuvez e três filhos criados, um dia disse a Antônia, sua amiga íntima da Legião:

- Antônia, estou preocupada com Mainha. Mulher bonita, bem formada de corpo, plena de vida e um marido velho, que deve negar fogo na cama. Isso me preocupa, ainda mais que está sozinha, o filho foi para a capital. Como o povo costuma dizer, é uma viúva de marido vivo. A mulher se entristece, fica borocoxô ou acaba corneando o marido. Homem nenhum gosta de ter um chapéu de toro. Pode dar em morte.

Deoclécio era arriado por ela e tinha um grande ciúme da mulher. Temia o assédio dos homens, por isso, pedia que fosse ao estabelecimento, somente quando necessário. Sabia da beleza da mulher, tanto, que quando tomava banho de mar com algumas mulheres de pescadores, como não tinham roupa de banho, entravam de vestido no mar, no momento que saiam, ele sentia o olhar de desejos dos homens em Mainha. Seios rijos, mamilos saltando do vestido, a saia grudando na bunda e marcando as formas bem proporcionais, tanto na frente quanto atrás. Tinha cabelos pretos até os ombros, olhos da mesma cor e uma pele jambo, que pelo sol tornava-se dourada. Sempre que podia, criava um empecilho para que a mulher não fosse para o mar. Mainha ria e brincava como uma criança inocente. Ela não lhe dava nenhuma razão para suspeita. Estava sempre animada e amorosa com ele. Cuidava de tudo que envolvia sua pessoa com muito carinho. Vivia lhe procurando na cama, mas aí estava o perigo, não estava dando pro couro.

Surgiu em Areia Santa uma pessoa nova no pedaço. Normalmente, qualquer um chamaria a atenção, mas no caso em questão, chamou ainda mais. Era um homem pintoso, em torno dos quarenta anos, com barba bem aparada e vestia-se bem. Era alto, 1,74 m, mais ou menos, magro, com um olhar firme e um leve sorriso, e muito atraente. Logo souberam que seu nome era Renato e estava a serviço do Coronel Cupertino, tanto que morava em uma das casas de sua propriedade. Podemos imaginar o festival de comentários que correram o povoado, fora o frenesi entre as mulheres solteiras e algumas casadas. Ele mal parava na cidade, diariamente se dirigia as fazendas do Coronel.

O corre, corre de informações e boatos, logo soube que era advogado, morava na capital, era casado, tinha mulher, um casal de filhos e cuidava dos diversos negócios do Coronel. Permaneceria alguns dias na cidade, tendo que viajar para outros locais, onde o Coronel possuía negócios. Quando na cidade almoçava na casa da Marola, em um acerto que devem ter entabulado, não sendo visto pelas ruas à noite. No bar do Deoclécio, parou uma vez, quando tomou um café com leite e comeu uma broa de milho, trocando alguns dedos de prosa. A impressão que deixou foi boa.

A casa onde Renato se hospedava, ficava no terreno nos fundos da casa de Mainha, tendo frente para a outra rua, e como a dela e poucas da cidade, possuindo um andar superior. Alguns dias após a sua chegada, estava Mainha no quarto superior, se trocando, passando em frente a janela de calcinha e sutiã, quando reparou, que ele estava parado na janela observando. Rapidamente, correu para um dos cantos se escondendo. Ela sabia quem era pelos comentários que escutara, entre as mulheres na igreja, e por vê-lo à distância. Ficou envergonhada, pensando na cena. À noite, na cama, quando Deoclécio pegou no sono, pelo cansaço do dia de trabalho, que normalmente era extenso, ela começou a divagar. A ideia de se imaginar observada em roupas menores lhe aqueceu o corpo, gerando pensamentos úmidos. Teve dificuldade em pegar no sono.

No dia seguinte, no mesmo horário do anterior, um pouquinho depois do almoço, quando Deoclécio voltara para o trabalho, olhou pela janela e não viu ninguém na casa ao lado. Resolveu passar creme no corpo e preferia o quarto do fundo pela luminosidade que entrava pela janela. Lentamente foi cuidando de si. Repentinamente, notou, pelo canto do olho, que ele a estava observando. Teve um estremecimento. Sua primeira reação foi  correr e sair da vista, mas parou, continuo lentamente a passar o creme e usufruir do prazer de estar sendo vista em roupas íntimas. Teve uma sensação de plenitude. Sabia que tinha um corpo perfeito, pois, notava os olhares que se voltavam quando passava pela rua, o quanto o seu marido ficava agitado quando saia do mar com a roupa molhada ao corpo. E o principal de tudo, o espelho lhe dizia a verdade. Era uma mulher na maturidade de ser mulher. Quando terminou, se retirou, se vestiu e se sentiu extremamente estranha e excitada. Depois, adveio um grande sentimento de culpa. Como podia ser tão desavergonhada, como podia fazer aquilo, manchado a hora do seu marido? Ela era uma mulher casada e bem casada e mãe de um filho maior. Foi uma noite de sono dificultoso na fronteira da vergonha e do prazer.

Como escritor, permitam interromper, não querendo interromper, mas, já interrompendo. Quero relembrar, sendo uma linda mulher, abusada aos quinze anos, mãe aos dezesseis, teve que casar com um homem quarenta anos mais velho, que sempre a tratou bem, dando uma boa condição de vida, mas, já por um bom tempo não se apresentando plenamente na cama. Lembro que estamos em uma região impregnada de machismo onde a mulher estava para servir o homem. Na cama, após uma rápida relação, eles se voltavam buscando o sono e deixando as mulheres perdidas, a meio caminho de um prazer mais intenso, fazendo-as se sentirem meras receptoras dos seus gozos. Os desejos, se perdiam no ar.

- Vai continuar a história ou vai ficar na prosopopeia? – grita alguém.

Calma já continuo. Ocorre que isto tudo me foi contado por um homem, que pôde transcrever o que sentia na época. Entretanto, Mainha, sendo a personagem principal da história, com ela não conversei. Portanto, tenho, no meu dever de escritor, relatar o que ela, possivelmente, vivia, valendo-me dos meus parcos conhecimentos sobre as sutilezas e complexidades de ser mulher. Dizem que os autores definem os destinos dos seus personagens. Neste caso, o destino já estava traçado, pois, estou narrando algo já acontecido, mas a personagem agarrou-me pelos sentimentos e intercederei por sua pessoa, tentando mostrar o que lhe acontecia na alma. Continuando.

Passaram-se algumas semanas em que Renato não estava na cidade. Fora para o sul do estado, tratando de negócios para o Coronel. Mainha não precisou perguntar por ele, os comentários brotavam como se fosse água em tempo de chuva. Aquele período acalmou sua dor de consciência, enquanto no corpo desejos tenebrosos se avolumavam, levando a buscar prazeres solitários. Sentia como se estivesse vivendo entre o céu e o inferno. Havia momentos de paz, afastando maus pensamentos e se agarrando nos conceitos morais de ser uma mulher casada, em outros, ardia no fogo do desejo. Não bastava lavar o rosto ou tomar banhos de água fria.

Após algumas semanas, ele retornou à cidade. Por vários dias não havia ninguém na casa à tarde, mas em um deles, lá estava, no quarto, sentado em uma mesa escrevendo, de frente para janela, onde de quando em quando levantava os olhos. Em determinado momento, seus olhares se cruzaram. Foi como se uma faísca tivesse se interposto entre os dois. Ela correu por todo o corpo de Mainha, o coração acelerou, a respiração se tornou ofegante e um calor se espalhou. Tratou de se retirar rapidamente da janela. Desceu, foi a cozinha beber água, abriu mais a janela e sentou para se acalmar.

Bateram na porta. Estremeceu. O normal era baterem palmas. Os pensamentos correram para vários lados. Não sabia bem o que pensar. O coração disparou. Agoniada foi abrir. Era ele. Lindo, sorridente e brilho nos olhos.

- Boa tarde, posso entrar?

Após um ligeiro vacilo:

- Pode, senta, quer algo pra beber?

- Aceito, um copo de água.

Foi buscar, teve dificuldade no andar, sabia que a observava. Reparou estar com uma simples roupa de estar em casa, bem leve, pelo calor, com os seios em um decote generoso.

- Vou colocar um roupão, não estou arrumada.

- Não. Você está linda assim.

-  Não me olhe assim. O Senhor deveria ter tido, outro dia, a decência de não ficar me olhando pela janela.

- O belo sendo mostrado, deve ser visto.

Ela bem próxima, após entregar o copo de água. Os olhares trocando mensagens ardentes. Ele se levantou e delicadamente beijou seus lábios. Não resistindo, ela o abraçou e entregou totalmente a boca, a língua e os gemidos. Corpo com corpo, desejos transpirando pelos poros. As mãos dele correndo pelo tecido, pelo decote, soltando os seios para serem usufruídos pelos lábios, descendo e levantando a saia, entrando pela calcinha, gerando mais desejo.

O pegou pela mão e correu para o quarto. Roupas foram sendo tiradas no anseio de se verem e tocarem. Botões saltaram pelo ambiente. O som forte da fivela do cinto no chão, sapatos, meias, sutiã que se rompe, calcinha alargada no elástico e tirada fora no movimentar das pernas. O contraste dos cabelos negros e do corpo dourado de Mainha, com o branco, quase ruivo de Renato, formavam um quadro de sensualidade e de beleza. A amplitude de seu sexo, o toque, a penetração sôfrega, inicialmente, e aos poucos gradualmente, compassando os desejos de ambos, enquanto as línguas se entrelaçavam e os lábios só espremiam gemidos e desejos. O ápice, teve que ser abafado com a mão, para que não se espalha pela casa. Sentiu-se plena, desejada, satisfeita e de uma forma inusitada, relaxada, como se todos os músculos do corpo estivessem em estado de torpor.

Os dois, quando ele estava na cidade, passaram a se encontrar uma ou duas vezes por semana. Ele vinha no horário da tarde, chegando à casa pelos fundos, passando pela cerca, de forma que não fosse visto.

No dia a dia Mainha sentia-se renascida. Participava na missa e nas atividades do Coração de Maria com um ânimo novo. Estava sempre disposta para tudo e para os que necessitassem de sua ajuda. Atendia tanta gente que começou a ser chamada de Mainha dos pobres.

Dona Joana, presidente da Legião, comentou com a amiga Antônia:

- Reparou com Mainha anda com uma expressão de satisfação, alegre e bastante animada com as nossas atividades? Tem um novo ar no rosto, parece mais jovem, parece ter renascida. Espero que não esteja fazendo bobagem.

Suas suspeitas se aguçaram, quando voltando com Antônia, da casa de uma das famílias assistida, pela rua de Mainha, viu o advogado Renato, sendo recebido e colocado para dentro. Após uma vista pela rua para ver se alguém os viu, o olhar de Mainha se encontrou com o de Dona Joana. No dela, um olhar de apavoramento, no de Dona Joana, de espanto. Renato, excepcionalmente, viera pela frente, pois o Coronel Cupertino ficara na casa, onde resolveu tirar uma soneca, para depois seguir viagem para a fazenda. Não queria ser pego atravessando a cerca.

Mainha, alegando indisposição, pediu a Renato que voltasse outro dia. O medo tomou sua mente. Viu seu nome sendo colocado junto a Legião e ao padre, vazaria pela cidade e a honra de seu marido iria para a lama. Como reagiria Deoclécio? Como poderia andar de cabeça erguida pelos lugares? Quando o marido chegou do trabalho, colocou a janta e alegando mal-estar foi deitar. Uma noite mal dormida, dominada pelo terror do que poderia acontecer. O inferno apresentava-se a sua frente.

No dia seguinte, pela manhã, recebeu um recado de Dona Joana, para ir à sua casa. Teve uma gastura indo ao banheiro, quase botando os bofes pra fora. Precisou deitar um pouco, após tomar algumas gotas de maracujina. Finalmente, não tendo mais como adiar, levantou, tomou um banho, vestiu uma das roupas com que frequentava a igreja e jururu foi para lá.

- Bom dia.

- Bom dia, entre – a recebeu Dona Joana – senta. Quer um café?

Aceitou e tomou, mal comendo um pedaço de bolo que recebeu, e escondendo o tremor que tinha nas mãos segurando o pratinho.

- Mainha, você sabe que vi o Dr. Renato entrando na tua casa. Que diabéisso que você está fazendo? Não sei a relação de vocês, mas pela minha experiência e vendo tua alegria ultimamente, tão animada, imagino o que está acontecendo. Fique tranquila, não estou aqui para reprovar, mas para alertar. Tu sabes que tenho uma estima de mãe para filha contigo. Admiro a força como levou a vida, apesar da pouca idade. Não sei até onde o Deoclécio é uma pessoa violenta. Ele pode ficar abilolado. Você sabe que homem nenhum nesta cidade quer ter sua honra manchada. Já tivemos casos de morte.

- Eu sei.

- Mulher, por aqui, vale tanto quanto uma cabra. Teu marido é velho e você nova, precisando satisfazer o fogo das entranhas. Caso alguma coisa de ruim acontecer, a culpa será tua. Dirão que teu marido estava limpando o nome. Temo pelo que pode acontecer, minha filha. O povo é muito enxerido, parece, que ainda não notaram o que está acontecendo, senão os fuxicos estariam correndo e você estaria na boca do povo. Pare enquanto é tempo.

- Dona Joana, a senhora sabe a estima que lhe tenho. A quero como mãe e confidente. Nisso tudo, fico triste e preocupada pelo Deoclécio, sendo um homem bom, um excelente marido. Não sei se consigo parar. Eu renasci. Com o Renato, não é só a carne. Quando nos deitamos, o desejo, a delicadeza comigo, os carinhos e a vontade de me fazer feliz, me levam a me sentir mais mulher, em todo sentido. Prefiro a morte que viver o inferno que vivia dentro de mim.

Dona Joana, entendendo tudo que se passava dentro de Mainha, mas, receosa do que poderia acontecer, olhou-a com um ar de tristeza e rogou que tomasse muito cuidado e a abençoou.

Deoclécio notava as mudanças em sua mulher. Começou a esquentar a cabeça começando a achar que a mulher estava tendo ou tivera um caso.

- Será que Mainha está coisando com alguém, me corneando?

Aperreado, não conseguia prestar atenção no trabalho.

- Quem comeu Mainha?

Não sai da sua cabeça essa possibilidade. Na venda, ficava assuntando as conversas das pessoas quando estavam bebericando e conversando, tentando ouvir algo. Pegou o revólver que tinha guardando, em um canto escondido do estabelecimento, limpou, engraxou e colocou balas. Temia ter que usá-lo. Andava mal-humorado. A clientela reclamava que ele estava mudado.

Em casa, era recebido por Mainha, com muito carinho, cheia de afagos e beijos. Na cama, ela procurava seus braços, o calor do seu corpo e corria suas mãos por ele. Sempre fora assim, mas agora, tudo parecia querer esconder algo. Mainha, notava a mudança nele e temia o que isso poderia representar. Por sua vez, Deoclécio, decidiu dever descobrir o que estaria acontecendo.

Deu algumas saídas, sob algumas desculpas, deixando, por momentos, o estabelecimento na mão de um dos empregados, e escondido, observou a casa em horários diferentes. Chegou a conclusão, se algo estivesse ocorrendo, seria à tarde, quando voltava do almoço.

Numa das tardes, antes de retornar para o trabalho, depois do almoço, tratou de correr a cortina da janela da sala, por onde poderia ver, de fora, se havia alguém no andar de baixo. Deixou a porta de entrada destrancada e mexeu nas fechaduras dos quartos, de forma que não pudessem ser trancados, a lingueta não funcionando, obrigando a porta ficar, simplesmente, encostada.

Retornou mais tarde, olhou pela janela, não havia ninguém no andar de baixo. Trocou o revólver do bolso do paletó para a cintura. Abriu a porta que estava destrancada, não fazendo barulho, e pé ante pé entrou. Subiu silenciosamente a escada. No andar de cima, ouviu ruídos, risos e palavras que vinham do seu quarto. Foi se aproximando sorrateiramente e com um leve empurrão na porta abriu uma fresta. Lá estavam Mainha e Renato nus na cama.

Os dois enroscados em seus desejos não tinham ideia do que ocorria fora do quarto. Mainha satisfazendo o fogo que tinha dentro de si, e sentindo-se plenamente mulher. Renato, por si, tinha pela mulher e os filhos verdadeira adoração, mas, aqueles momentos serviam para refazer o ânimo, abafar a lembrança e o desejo da esposa, fora que gostava de Mainha. O trabalho o fazia a ficar até dois meses longe de casa. Era muita pressão por parte do Coronel Cupertino e do constante deslocamento por suas diversas propriedade.

Mainha acredita ouvir um ruído. Desconfiada pela mudança de comportamento de Deoclécio e preocupada com as palavras de Dona Joana, fica com respiração suspensa e os ouvidos aguçados. Renato lhe pergunta se ocorreu algo, ao sentir a sua mudança. Respondendo que não o enlaçou em seus braços, calou sua boca com beijos e o sentiu dentro de si. Ficaram em um suave balanço, com ela mantendo os sentidos em alerta. Se tivesse que morrer, que fosse naquele momento.

A tarde avançou alertando a hora de se separarem. Renato saiu pelos fundos, após um longo beijo. Mainha, sabia que algo acontecera, não sabia o que. Na cozinha não havia ninguém e tudo estava igual. Acalmou-se. Quando foi a sala, seu coração disparou.

Bem tarde da noite, Deoclécio retornou à casa. Veio pelo caminho ruminando o que havia acontecido. Tinha receio de encarar o que iria encontrar. Tudo estava apagando, diferente que o normal. Um silêncio tumular cobria o ambiente. O coração disparado. Com a chave na mão, permaneceu indeciso de entrar. A razão dizia dever fazê-lo, mas, os sentimentos diziam que não. Foi um momento difícil, a pulsação a toda, a cabeça doendo, os dedos da mão apertando fortemente a chave e o peito oprimido como por um abraço mortal.

Abriu a porta e acendeu a luz. Lá estava ela!

Na poltrona, com o rosto crispado de preocupação e tendo a sua frente na mesinha de centro o revólver de Deoclécio, lá estava Mainha. Com a voz tentando exprimir calma, mas falhando na ansiedade, perguntou:

- Deoclécio, o que este revólver está fazendo aqui? Sempre ficou no armazém?

Ele, com uma voz que não mostra a sua normal força, responde:

- Faz tempo que ele estava guardado e resolvi limpar e engraxar e acabei esquecendo aí.

Ela se levantou, foi até ele, e olhando em seus olhos, tendo os seus cheios de lágrimas, que principiavam a escorrer, o abraçou. Deoclécio a aninhou nos braços, sentiu o cheiro do seu cabelo, a maciez e o perfume do seu corpo, pensou:

- Como posso matar esta mulher? Ela é a razão da minha vida. Vale mais que minha própria. Não saberia viver sem ela, sem os seus carinhos, as palavras de apoio e estímulo. Como levantar cada manhã e não a ter a meu lado? Eu morreria um pedaço cada dia. Pensei em acabar só com ele. Mas a imagem, que vi pela fresta da porta, deitada de frente para ele, com a cabeça sustentada pelo braço e conversado, mostrou uma mulher alegre, com um olhar de satisfação e de carinho. Se eu o mato, haverá sempre, entre nós, uma nuvem negra. Perderia a mulher que amo, da mesma forma.

Mainha, que costumava, às vezes, preparar algo para o café da tarde e levar para o marido no estabelecimento, passou a fazer com mais frequência, usufruindo não só ele, mas todos os que por lá estavam. Eram cuscuz, bolinhos de chuva, bolo de fubá, curau, pamonha e outras iguarias que deixavam todos com água na boca. Juntos tomavam café e trocavam conversas. À noite o esperava em casa com a comida do seu agrado, cheia de carinhos e beijos.

Me desculpem interromper novamente. Como escritor, tenho que me defender. Tem gente me criticando pelo final, em uma época, em que o machismo era exacerbado, principalmente no interior do nordeste. Quero lembrar que narrei o que me foi contando e assim terminou o relato. O confidente destes fatos foi o Renato, que após três anos em que viveram uma relação maravilhosa, teve que se mudar para o Sul do país. Sem dúvida, tive muita simpatia pela personagem. Graças à licença, que me é dada, como escritor, posso supor a intimidade dos fatos, o torvelinho dos sentimentos que envolvem os personagens. Caso alguém não gostou, paciência. Eu do meu lado darei mais uma pitada final.

O amor e o carinho, entre eles aumentaram, a busca por ela na cama, nem que fosse só por carinhos, se intensificou. Ela entendia, o quanto ele, queria lhe fazer feliz. Para maior estímulo, fazia comidas afrodisíacas, principalmente caldos de frutos-do-mar, que apresentavam melhores resultados. A vida, entre eles, adquiriu novas cores.

Um dia a colocou no colo e olhando nos olhos, com muito carinho, disse:

- Um filho, que um dia você possa ter, eu irei querer com muito amor.

Ela sabia o quanto ele sempre quis ter mais um filho, mas, mais que isso, entendeu o que quis dizer e com lágrima nos olhos, lhe deu um beijo.


mmhad