5/04/24

PRÁ FRENTE BRASIL 1960/70

 

 

Estava aguardando o bonde, 35-LAPA-PRAÇA DO CORREIO, como faço diariamente, às 7:15 h na Praça Marechal Deodoro, para ir ao trabalho. O bonde vem da Lapa, passando pela Av. Francisco Matarazzo, General Olímpio da Silveira e depois,  pela Av. São João até chegar a Praça dos Correios. Dali ao escritório, na Libero Badaró, são cinco minutos de caminhada.

Parou junto ao meio-fio, um veículo da polícia, desceram dois indivíduos, que perguntaram se eu era Clóvis Barros dos Santos, com minha concordância, convidaram-me para uma ida a delegacia próxima, atordoado e meio que empurrado entrei no veículo.

Ao chegar à delegacia, informaram que o Dr. Delegado saíra para uma averiguação e não deveria demorar e eu teria que aguardar. Só que me colocaram em uma cela para esperar.

- Estou preso por quê? O que aconteceu?

- Você não está preso. Só por segurança. O Dr. Delegado vai te explicar.

- Posso dar um telefonema para o escritório, estão aguardando que eu apareça para trabalhar?

- Isso você pede ao Dr. Delegado.

Na cela, lembrei da minha chegada em São Paulo, há 6 meses, em fevereiro de 1962 vindo de Franca, onde morava com meus tios Abelardo e Dina. Fiquei impressionado com as cidades, que avistávamos à medida que chegávamos pela Via Anhanguera. O tamanho e a quantidade de prédios. As cidades próximas, impressionavam, como Campinas e Jundiaí. A época, São Paulo é a segunda cidade em população, no Brasil, perdendo por pouco para o Rio de Janeiro, situação essa que está prestes a se alterar.

Meus tios assumiram minha criação, desde os catorze anos, pela morte dos meus pais, em um acidente de automóvel. Tio Abelardo é irmão de mamãe. Não tinham filhos e me criaram como se fosse. Tenho grande respeito, admiração e carinho por eles. Os considero como meus segundos pais.

Quando acabei de me formar bacharel em direito, na primeira turma da Faculdade de Direito de Franca, titio considerou ser conveniente que viesse estagiar em um grande escritório de advocacia em São Paulo, o que me daria experiência e currículo.

Cheguei de ônibus na Rodoviária Júlio Prestes, que fica na Av. Duque de Caxias. A rodoviária havia sido recém-inaugurada. Possuía cobertura de acrílicos coloridos o que dava um aspecto moderno. Depois, com o tempo, soube o quanto a sua localização, levou a acelerar a deterioração dos bairros próximos, pelo trânsito, a presença de meliantes, pequenos comércios e hotéis.

Cheguei com a indicação, de meu tio, de uma pensão para homens, na R. Vitorino Carmilo, de propriedade de uma amiga conterrânea, com quem já havia se correspondido e havia me guardando uma vaga. Fui de táxi, conforme orientação. A dona da pensão, Dona Ana, me recebeu com muito carinho. Era um casarão assobradado, tendo inúmeros quartos. O meu, era no andar de cima, tinha dois beliches, portanto dividiria com mais três rapazes.

Era um imóvel da época em que o Bairro de Campos Elíseos e um pedaço da Barra Funda, foram bairros de moradia dos Barões do Café.  Campos Elíseos foi o primeiro bairro planejado de São Paulo, para ser um pedacinho de Paris, basta ver o nome aportuguesado da famosa avenida Champs-Élyseés, pelos arquitetos Nothmann e Glete, que hoje são nomes de ruas na região. Outra vantagem, é que ficava razoavelmente próximo da Estação da Luz, por onde muitos dos cafeicultores se dirigiam a suas fazendas no interior.

- Temos café da manhã, das 6:30 h até as 9:00 h. O café da manhã está incluso na diária: almoço e janta você decide se quer, naturalmente pagando uma taxa extra. Informou-me os horários do almoço e do jantar, caso fosse do meu interesse.

- Obrigado, Dona Ana. Tenho uma entrevista amanhã e conforme for o esquema de trabalho decido.

Os colegas de quarto, também vieram do interior, e trabalhavam em atividades distintas. Com o Januário, o mais, expansivos dos três, entabulei uma conversa, onde foi me deu dicas da cidade.

No dia seguinte, pela manhã, peguei o bonde, conforme orientação dos colegas de quarto, que me deixaria próximo à Rua Líbero Badaró. O endereço era o Edifício Conde Prates, uma das belezas arquitetônicas de São Paulo, de frente para o Vale do Anhangabaú e o Theatro Municipal, com 33 andares.

Os elevadores eram automáticos. Quando abriam a porta, um alto-falante informava estar subindo ou descendo. Não havia ninguém cuidando dentro. Você apertava o botão e lá ia ele.

Eu tinha que ir no 16º andar. Fiquei apavorado, imaginando-me fechado no elevador, caso parasse. E se eu estivesse só? Por sorte entraram mais pessoas. Fui com medo. Durante a subida, ouvi a conversa de dois rapazes, dizendo que no dia anterior, houvera problema em um dos elevadores, ficando parado dez minutos. Eu estava me borrando. Basta dizer que, quando terminei a entrevista, desci os 16 andares pela escada. Mal sabia que teria que me acostumar, pois, seria meu martírio diário.

Era um escritório de advocacia grande. Impressionava pela sua suntuosidade. Uma ampla sala de espera, móveis e alguns painéis de cerejeira, poltronas de couro marrom com encostos altos, garçom oferecendo água e cafezinho. Minha entrevista era com o Dr. Abílio Monteiro Junior, um dos sócios e amigo de juventude de meu tio. Primeiro tive que passar por sua secretária Dona Margarida, que me recebeu com simpatia, perguntando do meu tio, pois, já havia falado com ele inúmeras vezes por telefone. A entrevista com Dr. Abílio foi rápida e formal. Disse que eu poderia começar como estagiário no dia seguinte, me encaminhando de volta para Dona Margarida, que indicou a documentação a trazer. Já estou por lá há 6 meses.

 

- Vamos, o Dr. Delegado chegou – disse o investigador abrindo a porta da cela.

O delegado estava sem paletó, com a gravata frouxa, as mangas da camisa enroladas, um revólver na cintura, fumando cigarro, tendo um cinzeiro na mesa cheio de bitucas. Possuía uma pasta na mão que devia conter informações a meu respeito. Foi direto para o assunto.

- Houve um roubo, anteontem à noite, na casa do Comendador Nagib Almeida Fuad e as provas apontam o senhor como culpado.

- Impossível ser eu Doutor. Moro numa pensão na R. Vitorino Carmilo, jantei no local e fui para cama, em quarto que divido com mais três rapazes, que podem atestar que dormi lá.

- Já estivemos verificando. Você pode muito bem ter saído de mansinho de madrugada, sem que eles vissem, tendo feito uma cópia da chave da frente.

- Isso é um absurdo doutor. Como as provas apontam para mim?

- Você foi visto, saindo com a filha do Dr. Nagib, possivelmente levantando informações para o crime.

- Filha do Dr. Nagib, quem?

- Não se faça de tonto, Maria Alice.

- Ah, sim, sai algumas vezes com ela. Não havia ligado o nome, pois, só se referia como pai. Somos somente amigos.

- Não foi o que disse o irmão.

- Ele nos viu uma vez voltando do cinema, isso não prova nada.

- Estamos investigando, enquanto isso você permanece detido.

- Sou advogado, trabalho em um escritório de advocacia, posso ligar para meu chefe e expor o que está acontecendo e por qual razão não apareci para trabalhar?

- Pode.

Ligue para Dona Margarida. Expus o que estava acontecendo e que estava na Delegacia dos Campos Elíseos.

- Falei com o Dr. Abílio, que está ao meu lado. Está saindo para uma audiência e logo a seguir seguirá para aí.

Na volta para a cela, pude relembrar como conheci Maria Alice.

 

No primeiro dia de trabalho Dona Margarida informou que o escritório tem como horário de trabalho da 8:00 h às 18:00 com duas horas de almoço e meio-dia no sábado; ou caso o funcionário queira, uma hora de almoço e fica dispensado de vir aos sábados. Optei por essa possibilidade.

No início, comia lanche nos vários bares que havia na região. Linguiça de Atibaia, na rua São Bento, cachorro-quente com dupla salsicha, no molho de mostarda e uma Caçulinha, no Largo do Café, sanduíche de almôndega com molho de tomate, no começo da avenida São João e outros mais. 

Depois, pouco a pouco, fui conhecendo, por indicações, pequenos restaurantes, onde podia comer o prato do dia a um preço não muito elevado. É um esquema que não temos no interior. Os pratos variam conforme o dia da semana: segunda-feira, virado à paulista, terça, bife à rolê, quarta, feijoada, quinta, macarrão com frango, sexta, peixe frito, sábado feijoada, novamente.

Tendo o sábado livre, eu aproveitava e saía no mesmo horário da semana, indo para o centro. Só que a pé, levando em torno de meia hora. No caminho, parava no Rei do Mate, na Avenida São João, quase esquina com a Ipiranga e tomava um mate com leite. Delícia espumosa.

A parte da cidade em que fica o escritório é chamado de centro velho. Compreende a Praça João Mendes, da Sé, Pátio do Colégio (onde foi fundada a cidade), as Ruas Direita, São Bento e Praça Patriarca. O centro bancário, fica nesse miolo, assim como, o Largo de São Francisco com a Faculdade de Direito. Aliás, a região aonde se deu o início da cidade.

A separação do centro velho para o novo é o Vale do Anhangabaú, que se atravessa pelos Viadutos do Chá e o Santa Efigênia. O Viaduto Santa Efigênia, sai do Largo São Bento, no final da rua do mesmo nome e o Viaduto do Chá, da Praça Patriarca, praticamente na metade da Rua São Bento. Também se pode atravessar pela Avenida São João, que principia na Rua São Bento, desce o vale, passa ao lado dos Correios, sobe em direção ao Largo Paissandú,  Avenida Ipiranga, seguindo em direção a zona oeste da cidade, onde fica o bairro em que moro.

O triângulo formado pelo Largo São Bento, ligado ao São Francisco, pela rua São Bento, tendo na sua ponta superior a praça da Sé, durante anos, foi onde se deu o desenvolvimento econômico e cultural da cidade. Nesse miolo, encontra-se a Bolsa de Valores, o Edifício Martinelli, o primeiro arranha-céu construído na cidade e o Edifício do Banco do Estado de São Paulo um símbolo da cidade. No meio desse triângulo fica a rua Direita, junto com a São Bento contêm o grande comércio de rua

Pelo Viaduto do Chá, atravessando o vale do Anhangabaú, chegamos ao Teatro Municipal, tendo em frente o Mappin, anteriormente instalado no centro velho, na Praça Patriarca, sendo a maior loja de departamentos de São Paulo e a Mesbla, na rua 24 de Maio, sua grande concorrente. 

O quadrilátero de ruas que está entre o Teatro Municipal e a Praça da República, acolhe, novos e finos comércios, como a rua Barão de Itapetininga, onde, se situam os mais renomados alfaiates e as melhores lojas de calçados e camisarias para homens. Dava gosto andar por ali, apreciando as suas vitrines.

 As ruas paralelas, 7 de Abril, 24 de Maio, assim como a Barão de Itapetininga, que iniciam do lado do Teatro Municipal, terminam na Praça da República, um pulmão verde, com lago no meio do concreto da cidade, contendo lojas finas, joalherias, edifícios requintados, cinemas e o tradicional colégio Caetano de Campo. No domingo, abriga uma feira com filatelistas, numismáticos (colecionadores de moedas), pintores e o início de um movimento hippie.

 Do outro lado da praça está a Rua do Arouche, onde estão as lojas de calçados femininos. Há inúmeros cinemas nessa região. É a Cinelândia paulistana. Alguns bem conhecidos como Metro, República, Marabá, Ipiranga, Marrocos e Paissandu.

Todo final de semana fui para esta região, desbravando, chegando aos bairros próximos como Liberdade, Vila Buarque, Santa Cecília. À tarde, assistia a um filme e depois comia algo barato na região, como um quibe no "Kiberama" ou um brotinho nas inúmeras pastelarias existentes, a maioria em mãos de japoneses. 

Era muito comum ir ao "Salada Paulista", que fica na Avenida Ipiranga, ao lado do cinema com o mesmo nome. O prato vem com duas salsichas e uma porção de salada de batata no meio. Pedia um refrigerante, para economizar em relação ao chope. Come-se de pé no balcão. Há poucas mesas, mas, vive cheio.

Campos Elíseos, bairro em que estou morando, possuí inúmeros casarões da época dos barões do café, mas está no momento em franca deterioração. Houve forte influência, para isso ocorrer, da Estação Ferroviária Júlio Prestes, construída em 1930, (em desuso no momento), e agora, também, da nova estação rodoviária, que trouxeram para a região diversos pequenos comércios e hotéis. Encontram-se casarões, alugados, em alguns casos, transformando-se em cortiços, ou como o nosso, em pensões.

O que retém a aceleração da deterioração, é estarem a sede e a residência do Governo do Estado no Palácio Campos Elíseos, na Av. Rio Branco, além de ter próximo, o tradicional Liceu Sagrado Coração de Jesus, onde filhos da elite e da burguesia que se forma em São Paulo estudam.

O Palácio de Campos Elíseos é lindo e pomposo, foi construído em finais do sec. XIX, no estilo que dominava a Belle Époque, vindo o material para sua construção do exterior. No bairro ao lado do nosso, a Barra Funda, também encontramos residências em deterioração, vindas do período áureo.

Foi nas caminhadas, tentando conhecer a região e os entornos, que acabei conhecendo Maria Alice. Ocorreu no magnífico Parque da Água Branca, localizado na Avenida Francisco Matarazzo, um verdadeiro oásis de 150.000 m2, arborizado em quase toda a sua totalidade, com tanques de peixes e viveiros de aves, onde se realizam as exposições e feiras agropecuárias da cidade.

No dia que a conheci, estava havendo uma exposição de cavalos Quarto de Milha. Na arena existente no meio do parque, houve provas envolvendo as habilidades da raça. Fiquei um bom tempo assistindo, depois, fui apreciar os animais nas diversas baias dispersas pelo parque.

Notei, em uma delas uma família, pai, mãe, filha e filho conversando com a pessoa que devia cuidar do animal. O filho estava com roupa de montaria. Provavelmente, havia se apresentado com o cavalo e pelo visto não estava muito satisfeito. O que me chamou a atenção foi a sua irmã. Sim, era irmã, pois escutei chamá-la dessa forma, como o casal mais velho eram os pais. Ela apaziguava a discussão. A família tinha características libanesas. Discutiam o que parecia ser o resultado da apresentação do animal. Maria Alice, como se chamava a filha, era a que acalmava a todos, principalmente o pai, que discutia com o filho de uma forma enérgica. Não era uma família de pessoas altas. O rapaz era o mais alto, quem sabe com 1,70 m, os outros menores e atarracados. O evento deve ter sido de gala, pois as mulheres estavam muito bem vestidas e o pai de terno e gravata.

Segui minha caminhada, usufruindo da beleza do parque e dos seus inúmeros recantos. As construções tinham a pompa do início do século XX. Soube que o parque fora inaugurado em 1929.

Estava observando os pássaros nos viveiros, quando percebi Maria Alice, quase ao meu lado, embevecida com eles.

- São lindos, mas deveriam estar soltos – disse eu puxando conversa.

- Sim, mas muitos não estariam vivos nesta cidade onde a quantidade de árvores diminui. São poucos oásis verde como este na cidade.

A profusão de cores e cantos era empolgante. Como na minha cidade havia muitos pássaros, passei a nomear alguns e a chamar atenção para a beleza de outros.

- Veja aquele casal com bicos vermelhos e uma faixa da mesma cor nos olhos: é o bico-de-lacre. Na minha terra, muita gente chama de bico de lata. Veja, a fêmea voou para o ninho, feito de palha, naquele canto.

Ela se encantava e eu ia lhe chamando a atenção, para os que conhecia e apresentava seus nomes. Era empolgante observar sua alegria com as cores e os cantos. Seus olhos reluziam, seu rosto resplandecia alegria. Ela tinha uma beleza sóbria, mas um olhar que dava brilho ao rosto. O cabelo era castanho-escuro, comprido, preso em um rabo de cavalo. Algumas mechas se soltavam e ela tinha um jeito gracioso de empurrá-las para trás da orelha. Sua voz era baixa e suave, mas firme, dando força as palavras com o olhar e uma leve movimentação das mãos.

Caminhamos por alguns recantos do parque, nos encantando com as flores e as árvores. Nas conversas, acabei informando que morava próximo, nos Campos Elíseos e ela retorquiu que morava no mesmo bairro.

Olhou o relógio e, apressada:

- Tenho que ir. Não sei se você gosta, mas domingo às 16:00 h, no Theatro Municipal, que eu não sei se você conhece, haverá apresentação de um quarteto de cordas. Tenho uma amiga que se apresentará e estou com entradas gratuitas. Podemos nos encontrar por lá.

No domingo seguinte, lá estava eu na porta do Theatro Municipal. Uma magnífica construção do início do século XX, inaugurado em 1911 e inspirado na Ópera de Paris, construído na época para atender às elites paulistanas que queriam rivalizar com os grandes centros culturais.

Ela desceu de um automóvel com motorista, acompanhada de outra moça com mais ou menos a sua idade. Estava linda em um vestido amarelo florido, e sua amiga não ficava por menos em um azul-claro, ambos fazendo jus à tarde ensolarada de primavera.

- Esta é minha prima Elisa, este é o Clóvis de quem lhe falei.

Ao entrar no teatro, fiquei embasbacado com a magnífica escadaria na sua entrada, a beleza da sua construção e o apuro das poltronas e dos camarotes. Soube que tem mais de 1.500 lugares. Nunca estive em algo igual. Pisar onde grandes bailarinos, companhias de ópera estiveram e a famosa Semana Modernista de 1922 ocorreu, deu-me uma sensação de satisfação.

Pude observar como ambas se deliciavam com a apresentação, trocando cochichos e pequenos risos. Ela só teve uma pequena frase durante o espetáculo comigo:

- Está gostando?

Após o concerto, Maria Alice propôs tomarmos o bonde na Praça Patriarca, que fica próximo, descermos na Praça Marechal Deodoro, há uns 20 minutos de sua casa, e irmos a uma pizzaria que conhece na região.

A conversa entre os três foi muito agradável, cheia de risos sobre a lembranças de momentos que ambas viveram juntas e de fatos da minha juventude. Fiquei sabendo que ela havia terminado, no ano anterior, o ginasial no Colégio Boni Consillii, localizado em um lindíssimo prédio, construído no início do século e que conheci nas minhas caminhadas, localizado na Alameda Barão de Limeira. 

Quando estávamos na sobremesa, saboreando deliciosos pudins, Elisa perguntou:

- Como ficou a situação com o seu pai em relação aos teus estudos?

- Péssima. Estou participando em um cursinho preparatório, administrado pelo Centro XI de Agosto, para prestar exames no final do ano. Quero fazer Direito no Largo de São Francisco. Meu pai, quer que eu faça um curso de normalista, pois, segundo ele, é o mais adequado para uma mulher. Ele quer minha vida determinada por ele, como o fazem os pais com todas as mulheres da família. Ele me obriga que participe nos eventos sociais da comunidade, para encontrar um marido e casar. Eu não quero. Primeiro, tenho que me formar em Direito, onde possa trabalhar por nós, mulheres.

- Fico admirada com sua coragem. Não tenho conseguido enfrentar meus pais. Ultimamente, vivem convidando o Farid, que você conhece bem, para aparecer em casa. Ele aproveita e tenta me cortejar. Gosto dele, mas não gosto dessa imposição. Isso acaba inibindo meus sentimentos, que até poderiam crescer em relação a sua pessoa. Estou conseguindo sair sozinha, porque estou com você.

- Temos que batalhar por nossos direitos como mulheres. Não somos objetos de negociação entre famílias. Meu pai me ameaça deserdar. Tenho um dinheiro que minha vó me deixou, para quando necessário, na busca dos meus caminhos e não os que os meus pais quiserem. Ela era uma visionária. Faço dezoito daqui a alguns meses e posso tomar posse desse dinheiro e ter alguma independência. Naturalmente, terei que trabalhar para complementar o meu sustento.

Fiquei chocado com aquela conversa. Sei muito bem, como as moças são tolhidas nos seus desejos pelos planos dos pais. Lá na minha cidade, isso também acontece. Muitos casamentos arranjados. Maria Alice deixou claro a prima, que o clima com seu pai e seu irmão era péssimo. O irmão seguia a mesma mentalidade machista do pai. A única que lhe apoiava, e mesmo assim, com muito receio era a mãe.

No caminho de volta para casa, perguntei:

- Topam ir ao cinema a semana que vem?

- Clóvis, eu tenho que voltar para casa, não poderei ir – retorquiu Elisa.

- Quando você vai? – perguntou Maria Alice.

-  Quarta que vem.

- Que tal virmos na terça aqui na praça e tomamos um sorvete e curtimos um pouco os jardins? Tem uma sorveteria ótima do lado de lá da praça.

- Eu trabalho. Pode ser a sete da noite?

- Tudo bem.

Na quarta à noite, nos deliciamos com os sorvetes. Nessa noite a conversa girou mais entre Maria Alice e eu, como se elas tivessem um acordo, para poderem me conhecer melhor. Nossos olhares, viviam se encontrando e algumas vezes em nossa conversa havia pequenos toques no braço. Era como uma corrente elétrica descarregada em mim.

- Já são oito horas, precisamos ir.

- Posso acompanhá-las?

- Sim, mas até uns quarteirões antes de casa.

Para ela, assim como para mim, o desejo que o caminho não chegasse ao fim era evidente. Ao final me despedi de Elisa e perguntei a Maria Alice:

- Vamos ao cinema sábado.

- Eu topo, podemos nos encontrar no ponto do bonde.

- Que tal às 3:00 h?

- Combinado.

Passei os dias ansiosamente esperando pelo fim de semana. Lembrei de cada riso que demos, dos olhares que se cruzaram, dos pequenos toques nos braços, nas mãos. Será que eu estava apaixonado? Ideia que eu tirava da cabeça, pois, havia um mundo nos separando. 

Minha condição financeira, os costumes da família na busca de um marido dentro da sua classe social. Eu dizia para mim, não seja tonto. Ela é só uma pessoa educada que deseja um pouco de espaço fora dos grilhões familiares.

No dia, cheguei antes da hora e fiquei esperando. Ela finalmente apareceu no horário combinado. Usava uma calça jeans, com a boca da barra um pouco mais larga. Era raro se ver mulheres usando calças compridas, mas ela estava linda, com uma blusa xadrez, por dentro da calça e uma jaqueta de couro.

- Você está linda!

- Obrigado, mas esta roupa já deu pano para manga. Meu pai não acha adequada uma moça de família usar uma calça deste tipo, para sair socialmente. Por ele, as mulheres ainda deveriam andar a cavalo com aquelas ultrapassadas selas em que é necessário sentar de lado. Quando estava saindo me questionou. Por um lado, a discussão foi boa, pois, acabou não me cobrando aonde iria e com quem.

Pegamos o bonde e fomos para o centro. Ela falava com empolgação do filme e contou detalhes do cinema que iríamos. O centro de São Paulo, era a grande Cinelândia. Havia dezenas de cinemas, como Metro, Marabá, Ipiranga, República, Art-Palácio, Marrocos, Olido, Coral e outros mais.

Ela continuou no bonde:

- Veja o absurdo, uma advogada não pode ir aos tribunais de calça comprida, mesmo que seja um terninho, elegantemente costurada para ela. Nós mulheres temos muitos direitos a conquistar. Não pleiteio direitos iguais aos homens, mas sim, direitos para as mulheres com justiça, quando adequados, iguais ou superiores aos homens.

Resolvemos assistir "Bonequinha de Luxo" com a Audrey Hepburn no cine Ipiranga. Inclusive ficamos impressionados, pois havia uma foto em tamanho original dela segurando a piteira, como no filme, colada em uma estrutura de madeira, dando a impressão de estar presente. 

O cinema era imponente, tinha um enorme saguão com uma grande escadaria com os corrimões e luminárias metálicas que levava à plateia superior. As paredes eram sinuosas, revestidas de mármore. Ele fora construído em inícios de 1940 e tinha capacidade para 2.000 pessoas, divididas em plateia, balcão e pullmann. Soube desses setores, porque Maria Alice nos levou para tomarmos o elevador para o setor pullman.

Ir ao cinema é um programa social, se reveste de formalismo, comum as classes mais abastadas. Muitos homens de paletó e gravata e as mulheres arrumadas para um evento. Maria Alice chamava atenção, pois sua roupa demonstrava informalidade, mas ela não se importava com os olhares, agindo com total espontaneidade e segurança.

O setor onde ficamos, acabou sendo agradável e adequado, pois, as poltronas eram largas e confortáveis e por muitas pessoas não conhecerem aquela área, havia poucos assistentes no local.

Antes do início do filme, tivemos que assistir a dois trailers de futuras apresentações e um aborrecido e malfeito documentário do Primo Carbonari, em preto e branco.

Quando o filme começou, ela se aninhou perto de mim e colocou sua mão sobre a minha. Eu na hora, como se uma campainha tivesse tocado, olhei para ela, que olhou para mim e a beijei. Fui as nuvens, seu perfume, a maciez dos lábios e da língua. Delícia passar a mão em seu rosto, entre os cabelos. Mal assistimos ao filme, foi uma sessão de beijos e carinhos. Não sabíamos que aqueles seriam os primeiros e os últimos beijos que daríamos, por muito tempo.

Ao sair do cinema, a convidei para tomarmos um chá na Confeitaria Vienense, que fica na R. Barão de Itapetininga. Um elevador de portas pantográficas, com detalhes em latão polido, fez o percurso lentamente em meio a rangidos, nos levou até o magnífico salão do início do século. Pedimos chá, alguns salgados e bolos, que Maria Alice escolheu, pois, tinha experiência das vezes que fora com a mãe. Havia um piano e violinos, que passavam de mesa em mesa, encantando os clientes. O lugar era lindo, as pessoas estavam elegantemente vestidas e é claro, Maria Alice se destacava por sua vestimenta. Nem por isso deixamos de usufruir, com os toques das mãos sobre a mesa, os violinos à nossa volta e nossos olhares de carinho. Custou-me um bom pedaço do meu salário, mas, valeu a pena, me senti nas nuvens e Maria Alice me disse, que das vezes que esteve na Confeitaria, esta ficará marcada no seu coração. Sentia-se feliz.

Não pudemos ficar o tempo que gostaríamos, pois, ela não poderia chegar tarde em casa. Voltamos de bonde. No caminho manifestou, novamente, o descontentamento com o espaço que as mulheres têm na sociedade. Ganham bem menos que os homens e ainda ao chegar em casa, tem mais um árduo período de trabalho. Precisam de período maior de licença-maternidade, ou seja, há muita coisa para batalhar.

Descemos um ponto antes, para podermos caminhar até sua casa por ruas menos usuais, mas não adiantou. Estávamos a dois quarteirões de sua casa, no ponto em que nos despediríamos, quando um Aero Willys vermelho com capota branca, encostou no meio-fio, próximo de nós.

- É o meu irmão – me disse Maria Alice.

- O que você está fazendo, com um Zé Mané, andando na rua a esta hora.

- Estou vindo do cinema, encontrei com Clóvis, meu amigo, e estamos voltando juntos. Ele está fazendo o obséquio de me acompanhar.

- Você deveria ir ao cinema com amigas ou pessoas do nosso relacionamento e não só, e voltando a esta hora.

- É primavera e o dia continua claro e já estou chegando em casa.

- Sobe que acabo de te levar.

- Não, obrigada. Vou a pé, estamos próximos.

Maria Alice, ficou bem contrariada de encontrar o irmão, pois, iria fazer a caveira dela junto ao pai. Ao nos despedir, dei o telefone do escritório, para que pudesse ligar marcando um novo encontro.

Fui embora para casa pisando nas nuvens, relembrando os beijos e um pouco contrariado, pelo encontro com seu irmão, que demonstrou má vontade ao nos ver juntos.

Na segunda-feira, ao esperar o bonde para o trabalho, fui preso.

 

Finalmente o Dr. Abílio chegou. Contei sobre a acusação do delegado e qual era meu envolvimento com Maria Alice, só não falei dos beijos. A par de minhas informações, conversou com o delegado.

Depois de quase uma hora retornou.

- Vou embora?

- Não.

- Mas como?

- Vou te explicar. A polícia já sabe que não foi você que roubou a casa do comendador Fuad. Tanto que estão te tratando diferente dos presos comuns. Cela separada, almoço, lanche. Mas, não é essa a questão. Eles sabem que o assaltante foi o famoso Gino Meneghetti. Ocorre que os jornais anunciaram que o assaltante já foi preso, e se encontra nesta delegacia, tanto que tem vários repórteres na porta querendo notícias. O Delegado não tem permitido; não quer te expor. Espera que o tal Meneghetti se sinta tranquilo, relaxe e com isso eles possam pegá-lo.

- Quem é esse sujeito?

. Ele foi um assaltante muito famoso nas décadas de 1930 e 1940, tendo sido inúmeras vezes preso e fugido. Chegou no Brasil em 1913, com 35 anos, já fichado na Interpol, pela sua vida de crimes na França e na Itália. Em 1914 foi preso e condenado a 8 anos de prisão na Cadeia da Luz. Pela sua índole, sofreu vários castigos. Foi colocado em uma solitária, que era um poço redondo e profundo. Galgou o poço, tirou a tampa, atravessou o pátio e dizem que tirou a roupa e atravessou o Tamanduateí a nado, andou pelas ruas nu, até chegar à casa de um parente.

É tido como o grande ladrão, o gato dos telhados, pois se locomove por eles com grande facilidade. Assalta casas comerciais e mansões luxuosas na região da Paulista e Jardins, arrombando cofres e roubando joias. Nunca roubou um pobre, um operário. Ele diz que só gosta de tirar dos ricos, e tirar joias que são bens supérfluos.

- Como o Senhor sabe tanto dele?

- A imprensa, o meio jurídico, o povo, não há quem não tenha lido sobre as suas peripécias. Adquiriu a imagem de Robin Hood do asfalto. A imprensa o adora. Chegou a afrontar a polícia, em um cerco de 200 homens composto do corpo de bombeiros, polícia militar e guarda civil, nas ruas dos Andradas e dos Gusmões, centro da cidade. Do telhado, por onde tentou escapar, ele gritava para a multidão: Io sono Meneghetti. Il Cesare. Il Nero de San Paolo (Eu sou Meneghtti! O Cesar! O Nero de São Paulo). Foi preso e condenado a 45 anos, depois diminuído para 25 anos. 

Ficou 18 anos em uma cela blindada no Carandiru. Era famoso, recebia muitas visitas. Gritava da cela: "Io sono un uomo!" ("eu sou um homem!"). Quando saiu, foi preso em 60 dias. Passou, a viver de prisões e fugas. Contam, não sei se é verdade, ter ido a uma coletiva de imprensa do chefe de polícia, sem bigode, sentou-se ao lado do delegado que prometia prendê-lo em dois dias. Ao sair entregou um bilhete a um repórter – “Porque não me prendeu? Eu era a pessoa ao lado de chapéu e roupa clara à esquerda”



- Pelo visto o cara é fogo. Querem me deixar aqui, como, um tipo de isca?

- Isso mesmo. Ele está com idade, 74 anos, mas, continua assaltando. Informaram-me que já sabem onde ele se esconde e estão de campana para pegá-lo. É questão de horas.

Creio que esta noite você sai. Chegando ao escritório, lembre-se, a desculpa é que um parente seu passou mal e você teve que viajar ao interior e eu autorizei a viagem. Só Dona Margarida sabe de tudo.

- Meu nome apareceu devido ao irmão da Maria Alice?

- Sim. Ele quis prejudicar o possível namoro da irmã com alguém que não é do meio social deles. O delegado já percebeu isso.

Depois de cerca de três horas, fui solto com um pedido de desculpa.

Ao chegar na pensão, com os amigos de quarto, precisei contar que fui confundido em um roubo com o famoso bandido Meneghetti, simplesmente por ser amigo da filha do Comendador. Quando viram que estavam errados me soltaram.

No dia seguinte fui para o escritório como, normalmente, fazia. Dona Margarida recebeu-me com um sorriso agradável e um olhar maternal. Perguntou sobre meu tio, e passou-me o trabalho do dia.

Nas duas semanas seguintes aguardei que Maria Alice telefonasse, mas isto não aconteceu. Por dentro me senti machucado, ela fora o meu primeiro amor. Tivera inúmeros namoricos em Franca. Nenhum envolvido de carinho, como eu sentia por ela naquele momento. Creio que seus sentimentos por mim, também, eram verdadeiros. Era uma dor que não parava, podia estar trabalhando, no bonde, na cama, onde fosse.

Resolvi no final de semana passar em frente de sua casa e quem sabe vê-la. Qual não foi minha surpresa ao ver a casa vazia. Havia uma moça lavando a calçada.

- Aqui não é a casa do Comendador Fuad?

- É, sim, mas eles mudaram, esta semana.

- Sabe para onde foram?

- Foram para um bairro chamado Jardins.

Aquele mesmo final de semana, resolvi conhecer os Jardins, para onde o pessoal de posses estava se mudando. Eles ficam na encosta da Avenida Paulista em direção oeste, para as margens do rio Pinheiros, ou seja, em sentido contrário ao centro da cidade.

 Encontrei os bairros Jardim Paulista, Jardim Paulistano, Jardim Europa e Jardim América, sendo todos generalizadamente chamados de Jardins. Ruas arborizadas, grandes terrenos e enormes mansões. Muitas ruas curvilíneas, para desestimular o trânsito de veículos. Foi impossível encontrar a residência dos Fuad.

Conclui que estava apaixonado. Entretanto, no meio da tristeza, pensei, se ela não me procurou, foi por não ser possível. Recordo, que seu pai até a ameaçou mandar para a casa de uma tia na França, onde poderia terminar os estudos. Coloquei na cabeça que deveria guardar os sentimentos que senti quando juntos e os atuais, em um canto do coração, como uma experiência magnífica, mas com um final de dor. Fora como um “Sonho de uma noite de verão”.

Só restou me lançar com empenho no trabalho. No tempo livre, resolvi fazer curso de Inglês e de Francês. Era mais uma forma de ocupar o tempo e os pensamentos.

O clima político, estava muito tumultuado no país, isto gerava um ambiente de apreensão e tensão no escritório. Importantes empresas e clientes, requeriam constantemente, junto a diretoria, reuniões para melhor entender o que poderia ocorrer e tomar medidas.

Em 1961 o presidente eleito, Jânio Quadros, renunciou a um governo de 5 anos, que só durou 7 meses. Dizem que esperava ser aclamado de volta pelo povo, pelo congresso e pelas forças armadas e conseguir retornar com poderes maiores. Não foi o que ocorreu. O normal seria o vice-presidente Jango Goulart assumir, porém havia fortes pressões contra ele, por ter relações com sindicatos trabalhistas, muitos deles em mão de comunistas. Ele estava fora do país em uma missão oficial na China. Propagava-se o medo que o país se tornasse comunista. 

No fim permitiram a sua posse, mas não mais, em um governo presidencialista e sim parlamentar, o que tolhia a sua liberdade, pois, a força estava junto ao primeiro-ministro. Em 1963 há um plebiscito para o povo votar a favor ou contra o parlamentarismo. Graças a uma forte campanha, o povo vota a favor do presidencialismo, dando plenos poderes, novamente, ao presidente Jango.

Durante esse período em que o caldeirão político estava quente, fui gradualmente crescendo no escritório. O Dr. Abílio foi me dando espaço nas ações envolvendo fusões, compra e venda de empresas. Havia dois clientes antigos, amigos dos sócios, e que ainda atendíamos a área trabalhista. Essa área ficou comigo e outro colega. Era uma demanda pequena que desenvolvíamos com facilidade, fora que era mais um aprendizado.

É um período de muitas greves e passeatas. Em uma ocasião, estava a caminho da Av. Rio Branco, para uma audiência trabalhista, quando no cruzamento da Av. Ipiranga com a Av. São João, havia uma grande balbúrdia, pois, os estudantes, estavam em frente ao City Bank, que fica em uma das esquinas, pichando e quebrando os vidros. De repente, subindo a Av. São João, vindo do Vale do Anhangabaú, chegou a cavalaria. Os estudantes começam a jogar bolinhas de gude, para os cavalos escorregarem e caírem, entretanto, uma boa carga desses animais, vencem essa tentativa dos estudantes e os policiais começam a descer o cassetete em quem encontram pelo caminho. Houve correria de estudantes e de transeuntes, buscando lugares para se abrigarem ou fugir. Sou um deles, entrei em uma loja de produtos esportivos, que havia na Av. São João, quase no cruzamento com a Ipiranga, em frente ao City Bank, assim como outras pessoas. Rapidamente, descem as portas de aço e permanecemos até que o barulho da movimentação terminasse. Esse era o clima comum de ocorrer na cidade.

Em 31 de março de 1964, alegando conter o avanço do comunismo, há um golpe e os militares assumem o poder, prometendo eleições para 1966. Termina o pluripartidarismo e cassa direitos políticos, assim como do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Sanções atingem intelectuais, lideranças sindicais, estudantis e de funcionários públicos. O clima no escritório ficou de cabeça para baixo, pois o novo governo apresenta atos institucionais, normas, exceções. Tivemos que nos debruçar sobre cada documento que saía e estudar como agir, nas áreas judiciais, criminal, trabalhista e empresarial. Prisões ocorriam.

O escritório, passou a ser enormemente demandado pelos clientes. Nessa ocasião, deixamos de atender causas trabalhistas. Fiquei inteiramente na parte de empresas, no tocante a fusões, ampliações, compra e vendas. Meus conhecimentos de inglês e francês em muito me ajudaram, pois, lidávamos com algumas multinacionais. Com isso, tive uma significativa melhora salarial. Aluguei um pequeno apartamento, no bairro de Higienópolis, próximo da Praça Marechal Deodoro, onde costumeiramente pego a condução. Nas férias, por duas vezes, aluguei um apartamento em Santos, na praia do José Menino, e fui com o tio e a tia passar quinze dias. Depois foram mais uma quinzena em Franca.

Nesse tempo todo, Maria Alice não me saía da cabeça. Tive dois namoros, mas não evoluíram, pois eu me deixava levar por sua lembrança. Dois anos se passaram, mas, ela permanecia presente. Precisava esquecê-la e seguir a vida em frente. Fiz várias especializações na área do direito.

Formamos um grupo de amigos, homens, mulheres, casais, sendo alguns deles homossexuais. Começamos com o pessoal do escritório e posteriormente, agregando o amigo do amigo. Íamos ao cinema e ao teatro, depois, uma pizza, muita cerveja, e nessas discussões, consertávamos o país, depúnhamos e colocávamos pessoas no governo.

Nos anos a seguir de 1964, houve inúmeras manifestações, o teatro passou a levar peças de contestação, denunciando o momento, às vezes não diretamente, mas, nas suas entrelinhas. Ocorreram atos terroristas. A situação política estava tensa. O Ato Institucional num. 1 combateu fortemente os movimentos sociais que se manifestavam através dos estudantes e das ligas camponesas. Os opositores eram julgados em IPMs (Inquérito Policial Militar). Muitas pessoas foram arroladas. Diziam serem cerca de 10.000. 

A esperança, estava nas eleições esperadas para outubro de 1965. O que não ocorreu, pois, novos atos surgiram, até que o num. 3, definiu a criação do bipartidarismo, (ARENA e MDB) e eleições indiretas para presidente, governadores e prefeitos. Muita insatisfação na classe política, principalmente, nos que esperavam poder concorrer. Veio o governo do Marechal Costa e Silva.

A minha vida profissional estava bastante puxada. O escritório vivia uma demanda grande de serviço. Pouco tempo sobrando para o lazer, trabalhando até tarde e muitas vezes aos sábados. Como o clima não era propício para as conversas que tecíamos nos encontros entre amigos no passado, elas rarearam e acabaram.

Era final de 1967, em um final de tarde, quando ia pela Rua São Bento em direção ao Largo de São Francisco, ou melhor, a Rua Riachuelo, que fica logo atrás da Faculdade de Direito, onde há um grande sebo, onde periodicamente garimpo livros, quando observei uma grande balbúrdia na praça. 

Logo entendo o que está se passando. Os estudantes da faculdade estão fazendo um protesto e a polícia apareceu. Alguns fugiram para a Rua São Bento com policiais no encalço. Vejo Maria Alice na frente do bloco em fuga. Na rua São Bento, que sempre está cheia, há um princípio de pânico, as pessoas correm de um lado para o outro.

Quando Maria Alice está próxima, correndo, olhando para trás, a seguro com força. Sua primeira reação é querer se soltar. Olha assustada para mim e relaxa. A puxo pelo braço e entramos em uma loja de roupas femininas. Pego uma saia que estava na arara, passo a ela e faço que a levante à altura de seu rosto. Eu, com outra saia na mão, me coloco entre ela e a porta. Os policiais notaram que alguém entrou no estabelecimento, deram uma vista de olhos, somente algumas mulheres e um homem de terno analisando peças de roupa. Voltam para a rua.

Passado algum tempo, nos olhamos, rimos, aguardamos, e saímos para a rua onde não havia mais presença de policiais e seguimos em direção ao Largo São Bento, sentido oposto ao Largo São Francisco.

Ela estava linda, com o rosto ainda afogueado, os cabelos se soltando do rabo de cavalo, vestindo jeans, camiseta e uma camisa por cima amarrada na cintura. Nesse momento, tinha uma vontade enorme de abraçá-la e beijar, mas tenho que me conter. Ela me conta que o grêmio da faculdade, onde participa, estava promovendo um protesto, com a presença de alguns artistas e políticos, que fariam discursos.

- São quase sete horas, aceita jantar comigo?

Concordou e seguimos para o Guanabara, no Vale do Anhangabaú, descendo pelas escadas rolantes da Galeria Prestes Maia, que liga a Praça Patriarca ao vale. Na caminhada, para não chamar a atenção de alguns policiais que por ali continuavam, disse:

- Pegue no meu braço, como se fossemos um casal.

Pedimos dois chopes e uns petiscos. Contei que fora preso como isca para facilitar a prisão do Meneghetti, sendo solto dois dias depois e fiquei, ansiosamente no aguardo do seu telefonema, até que duas semanas depois, resolvi passar em frente à sua casa, mas haviam se mudado. Cheguei a tentar encontrar a casa nos Jardins.

- Fiquei sabendo pela Dora, a empregada com que você conversou, da sua visita. Ocorre, que papai, ameaçou me mandar para a França, na casa de uma tia, caso não parasse de te encontrar, ou até o que era pior, intervir junto a um dos sócios do escritório de advocacia em que você trabalhava. Não queria te prejudicar, me afastei.

Nossas mãos se encontraram, assim como nossos olhares.

- Eu não consegui te esquecer, eu te amo.

- Eu também – ela respondeu.

Jantamos um pintado na brasa, com arroz à grega e molho tártaro, mais alguns chopes e muitas lembranças. Ela contou que começou a faculdade de letras na PUC, por pressão do pai, que queria mandá-la para o exterior. Fez dois meses, saiu, pois, não era o que queria, e voltou ao preparatório para o vestibular de direito e entrou.

Apresentou ao pai o que fizera, após sua inscrição na USP na Faculdade do Largo de São Francisco. Seu pai ficou possesso com ela, pois o havia desrespeitado, fazendo algo que não era aprovado por ele e por passar um ano o enganando. Por sorte, teve o apoio da mãe, pois, pelo pai, ela deveria estar pensando em encontrar um marido na comunidade, e casar. Houve muita discussão. 

Como ela passou no vestibular com ótimas notas, isto ajudou e o pai acabou cedendo. Agora, estava no último ano, participando do Departamento Jurídico XI de Agosto, atendendo pessoas carentes. Ela e uns amigos estavam pensando em abrir um escritório, no próximo ano. Diz que saiu de casa há dois anos, o que gerou outra polêmica, e divide um apartamento na Alameda Santos, nos Jardins, com a Elisa, sua prima, que conheci, no passado, que também, contrariou os pais quanto ao casamento e hoje estuda medicina.

Não resistindo mais, mudei para uma cadeira ao lado da sua e a beijei. Ela retribuiu e com isso matei a saudade daqueles lábios macios, do correr da sua mão pelo meu rosto, a maciez dos cabelos.

- Clóvis, sonhei com este momento. Vamos até o meu apartamento. Seremos só nós, minha prima foi até a casa dos pais no interior, até o final de semana.

Foi uma noite maravilhosa, de carinhos, amor, sussurros, gemidos e prazeres. Naquela noite só havia espaço para a ânsia de abraçar, amar, viver. Foi uma noite em que deixamos de estar na terra com suas realidades e nos abrigamos no paraíso do amor.

Começamos a nos ver com periodicidade, saindo para o cinema ou teatro, botecos com amigos. Muitos deles tinham posições radicais em relação ao governo e as medidas sociais necessárias a serem tomadas. Havia alguns que sabíamos à boca pequena, que pensavam se lançar na luta armada, medida em que a maioria era contra.

Maria Alice e mais três colegas, finalmente resolveram abrir o escritório de advocacia. Como eram muito conhecidos entre os alunos, o centro acadêmico e os professores, somado aos relacionamentos que possuíam, teriam em pouco tempo uma clientela. O escritório foi aberto na Avenida da Liberdade, estando próximo, portanto, da faculdade e do fórum, com a facilidade de transporte.

Foram dias maravilhosos. No escritório aumentaram os clientes que passei a atender pessoalmente, o que me levava a sair todas as noites entre 20:00 e 21:00 h. Nos encontrávamos em algum lugar para jantar, no centro. Como o escritório dela era na Liberdade, inúmeras vezes, comemos nos restaurantes japoneses que haviam em quantidade no bairro. Preferíamos os que tinham uma pequena saleta somente com um tatame, para sentar. 

Ouvia seus relatos empolgados, da estruturação do escritório, alguns casos que apareciam, as dificuldades iniciais, mas o grande prazer que os quatro estavam tendo no trabalho. Isso tudo no meio de beijos e abraços.

Havia noites, que dizia ter compromissos advindos da época da faculdade, do atendimento que faziam gratuitamente. Eu temia que estivessem confabulando assuntos políticos. Mal sabia que esses encontros, muito em breve impactariam em nosso relacionamento.

Nos finais de semana, ela vinha para o meu apartamento, sendo alternado com o dela, quando sua prima não estava na cidade. Aproveitávamos para ir ao teatro, que na época vivia uma explosão de criatividade, principalmente com peças que tinham forte cunho político ou social. Vimos o Rei da Vela, Galileu Galilei no Teatro Oficina, no Arena a Primeira Feira Paulista de Opiniões, que chegou a ser censurada, gerando manifestos nos diversos teatros de Rio e São Paulo. 

Roda Viva de Chico Buarque e direção de José Celso, que virou um símbolo de resistência, tendo sofrido invasão do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) com agressões ao elenco, na sua apresentação no Teatro Ruth Escobar em São Paulo, que tinha a Marília Pera, fazendo o papel, que no Rio, era da Marieta Severo. Voltaram a se apresentar em Porto Alegre, mas houve um novo incidente, gerado pelo mesmo grupo, e a peça deixou de continuar a sua apresentação. 

Também, assistimos espetáculos que não tinham cunho de protesto, mas nas quais, a magia do teatro, nos transportava para histórias e encenações incríveis. A cena teatral fervia de lançamentos. A delícia estava no retorno à casa, onde havia muita conversa, sonhos, paixões e desejos.

Em outubro de 1966, tivemos a eleição indireta do General Costa e Silva, que assumiu em março de 1967, tratando de implementar uma série de medidas econômicas, pois passávamos por um mal momento. O clima político agravava-se, havendo em junho de 1968 um atentado a bomba no QG do 2º exército, situado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, levando à morte de uma sentinela e o ferimento a outros seis soldados.

Os movimentos estudantis, tiveram um forte incremento a partir de março de 1968, como reflexo da morte de um estudante no Rio de Janeiro, tendo repercussão também em São Paulo. Protestos ocorriam, e eu notava que Maria Alice devia estar atuando ativamente neles, visto que aumentava as noites que não podíamos nos encontrar, por estar ocupada. 

Em junho, no Rio, aconteceu a Passeata dos Cem Mil, com a participação de estudantes, artistas e intelectuais. O governo reagiu com força, proibindo passeatas, invadindo faculdade. Pelos comentários de Maria Alice, soube de vários conhecidos seus que se lançaram na clandestinidade na busca de uma ação armada. O clima estava feio, muita tensão no ar, muito medo. Ela vivia tensa, preocupada, irrequieta.

- Esta tua atuação está te fazendo mal, e ainda pode haver medidas de repressão que te atinjam. Amplie o escritório advocatício e lute juridicamente pelos que necessitarem de apoio nos momentos de prisão.

- É o que tenciono. Alguns professores nos alertaram ser esse o melhor caminho, por temerem uma forte repressão por parte do governo.

Após esta conversa, nossos encontros foram diminuindo. Um dia, chego em casa e vejo que ela passara por lá retirado tudo que era seu, até escova de dente e trouxera tudo que era meu, que estava no seu apartamento. Demonstrava querer desaparecer com qualquer coisa que podia nos ligar.

Fiquei um tempo sem saber dela, extremamente preocupado. Sua prima também não tinha notícias. Em um final de tarde, a caminho da condução, uma mulher se emparelha ao meu lado, olho, era ela, com uma boina encobrindo os cabelos. Chego a levar um susto.

- Finalmente você apareceu.

- Olhe para frente, posso estar sendo seguida. Por favor, me escute. Não fale nada. Estamos temendo que o governo tome medidas drásticas querendo calar a opinião pública. Já estiveram no escritório nos chamando para depor, porém, em depoimentos nada agradáveis, com ameaça física. Sabemos de alguns amigos presos, ou desaparecidos, pois, não se consegue saber onde estão. Pensando em você, prefiro me separar, romper qualquer elo que tenhamos. Esperemos a situação acalmar e voltamos a nos ver. Diga que só tivemos encontros fortuitos, não havendo afetividade entre nós. Era só sexo. Saiba que eu te amo.

- Também te amo – nem sei se ela ouviu, pois desapareceu na multidão.

O trabalho no escritório seguia a toda, no mesmo ritmo que a tensão que corria na sociedade. Meus nervos estavam à flor da pele, pensando o que ela poderia estar passando.

Em 13 de dezembro de 1968 é promulgado o Ato Institucional num. 5, autorizando o fechamento do Congresso e das Assembleias. Podiam, a título de segurança nacional, intervir nos estados e municípios. Censura prévia a todos os meios de comunicação, incluindo música, teatro e cinema, suspender funcionários públicos, políticos e juízes, mesmo que eleitos legalmente, caso tivessem características subversivas. Suspender os direitos políticos por dez anos.

Pessoas foram presas, cassadas, procuradas. Uma cortina de medo caiu sobre a sociedade. Os comentários eram diversos. Pessoas desaparecidas, não se sabendo onde estavam. Falava-se à boca pequena em tortura. Pensei que Maria Alice, com a preocupação que manifestou, há tempo, estivesse fora do país, àquela altura. Pensei em procurar algum dos seus amigos ou até sócios do escritório, mas desisti, quando em uma manhã, saindo de casa para trabalhar, dois sujeitos me retiveram dizendo serem da polícia. Fui encapuzado e colocado em uma perua Veraneio, que ficou famosas pelo uso intensivo pelo pessoal da repressão.

Cheguei ao local, fizeram subir escadas e quando em uma sala, na frente de um delegado, tiraram meu capuz, consegui vislumbrar por um pedaço de janela, que estava no Largo General Osório, portanto, estava no DOI-CODI (Departamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna), local que tinha fama que a todos fazia tremer. Quem entrava, não sabia quando sairia, ou se sairia.

O objetivo deles eram informações de Maria Alice. Informei:

- Tivemos alguns encontros esporádicos, não havendo nenhum relacionamento afetivo entre nós. Há mais de seis meses não a vejo e nada sei dela.

- Era só sexo?

- Sim.

- Essas esquerdistas gostam de dar – riu um deles.

- O que o senhor faz?

- Sou advogado no escritório Pervenire & Associados, onde trabalho das nove da manhã às nove da noite, não tendo tempo para mais nada. Ela era uma comodidade, marcávamos um horário e nos encontrávamos e fazíamos sexo.

- Onde?

- No meu apartamento.

O interrogatório seguiu nessa linha, com eles repetindo perguntas visando me confundir e de repente escapar algo. Foram pelo menos duas horas. Então fui retirado da sala e levado para uma cela, sem nenhuma explicação. Ouvia pessoas falando, gritando e até chorando. Como estava no final do corredor, ninguém passava por lá. Após duas horas, me levaram de volta a sala em que estive, onde um novo delegado me interrogou, fazendo as mesmas perguntas, buscando algum possível deslize.

Fui solto, eram quase sete horas da noite. Saí do prédio, agradecendo o ar que estava respirando, andando meio tonto, pela tensão que passei e a adrenalina que estava baixando. Segui em direção a Estação da Luz. No caminho encontrei um telefone público e liguei para Dr. Abílio, após passar pela Dona Margarida. Ao contar o que me aconteceu, ele disse:

- Eu esperava que isso ocorresse, pela tua relação com ela. Ainda bem que só foi isso. Vai para casa, descansa e chega amanhã a hora que achar conveniente.

Ao chegar em casa, tive uma grande surpresa. A porta estava arrombada e o apartamento todo remexido. Enquanto estava preso, reviraram o imóvel na busca de algum rastro dela. Ainda bem que Maria Alice fora esperta para isso.

Politicamente muita coisa aconteceu naquela época. Costa e Silva teve um AVC, tivemos três militares governando o país, até que, em eleição indireta, elegeram o General Médici.

Não tive outro remédio a não ser seguir minha vida. Trabalho, estudo e lazer, quando dava. Muita lembrança de Maria Alice, muita incerteza de como estaria, poderia ter sido presa, torturada e até morta.

Um dia andando na rua São Bento, para buscar meu carro no estacionamento que ficava por trás da Faculdade do Largo de São Francisco (nesta época era o feliz proprietário de um fusca), alguém esbarrou em mim, entregou um envelope e disse, muito baixo:

- Para você, mais tarde leia. Não deixe que percebam.

Imaginei de quem poderia ser, pela forma que recebi. A repressão estava a toda. Havia batidas, pela polícia e pelo exército, inclusive nas ruas, principalmente à noite.

O bilhete estava datilografado e dizia:

“Estou bem em Santiago do Chile, dando aulas de inglês e francês. Aqui também somos monitorados. Siga tua vida, pois mereces amor e tranquilidade. M”

Apesar do nosso amor, uma grande separação física se interpôs entre nós. Seu rosto, olhar, o tom de voz, o brilho dos olhos, não me saíam do pensamento, mas, iam se esvaindo. Precisava esquecer e continuar vivendo. Assim foi.

Dois anos depois conheci Gabriela, que também era advogada, mas de outro escritório e, após um ano, casamos. O primeiro ano foi maravilhoso, porém no começo do segundo, começamos a nos desentender, quando, resolvi abrir um escritório de advocacia com um colega, e não quis tê-la como sócia, pois, se o entendimento em casa estava ruim, não queria levar esse clima para o trabalho. Inaugurei o escritório em outubro de 1972 e me desquitei em novembro; ainda não havia o divórcio.

Inúmeras vezes tive vontade de viajar a Santiago do Chile para vê-la, mas, tínhamos claras informações, que havia por parte do nosso governo, um acompanhamento dos refugiados brasileiros e seus contatos no país. Santiago era a capital do exílio brasileiro. Havia em torno de 4.000 refugiados, entre estudantes, professores, políticos e profissionais liberais. Em 1970, Eduardo Frei, perdeu as eleições para Salvador Allende. Dizem que a anterior, ele ganhou, graças a um grande apoio da CIA. Para os refugiados, que saíram em grande leva após o AI 5, em dezembro de 1968, o clima de aceitação para estudo e trabalho no Chile era favorável, tanto no governo de Frei quanto no de Allende.

Allende, foi o primeiro socialista marxista eleito como presidente da república, na América Latina e tenta socializar a economia do país, com fortes medidas nas áreas social, agrícola, industrial e mineral. Interesses de grandes empresas foram afetados, gerando reações, via medidas e bloqueios econômicos pelos Estados Unidos. Um clima político tumultuado propicia conflitos na sociedade que culminam, com apoio da CIA, em setembro de 1973 em um golpe de estado, no qual Allende morreu, defendendo o Palácio de La Moneda, sede do governo.

Começa uma forte repressão, com muitas prisões, torturas e mortes. Exilados brasileiros se veem no meio dessa situação, tendo que buscar exílio em embaixadas ou fugas do país. Embaixadas, são cercadas pelas forças do governo, para dificultar a busca de exílio.

Maria Alice não me saía da cabeça. Como estaria, conseguira exílio em alguma embaixada, saíra do país? As notícias que chegavam só relatavam a repressão das autoridades, informações de centenas de pessoas presas, e inúmeras torturas. Era difícil encontrar notícias, mesmo de estrangeiros, que trabalhavam e estudavam no país.

Aqui no Brasil, o trabalho estava a toda. Vivíamos um boom econômico e uma euforia nacional com a copa do Mundo ganha em 1970. O governo propagava esse bom momento pelos meios de comunicação. Era a hora do “Pra Frente Brasil” e “Ame-o ou Deixe-o”. Entretanto, as informações que chegavam sigilosamente dos porões da repressão, das delegacias e dos presídios eram horríveis.

Paralelamente, havia a luta contra a guerrilha. Informações claras eram difíceis. A imprensa estava censurada. O jornal “O Estado de São Paulo” publicava trechos dos Lusíadas, nos espaços das notícias censuradas e o “Jornal da Tarde” receitas culinárias. Era uma forma irônica de demonstrar a censura e de solucionar os vetos que ocorriam em cima da hora de se publicar os jornais.

Eu e meu sócio, trabalhávamos intensamente, numa carga horária insana, pois, tínhamos que firmar o escritório. Estávamos em franco crescimento, tendo que contratar uma secretária para cada um de nós. Foram contratados dois “boys” para buscar, levar processos e garimpar informações nos fóruns. O escritório era na rua 7 de Abril, no chamado centro novo.

Era novembro de 1973, o Dr. Abílio Monteiro Junior, meu chefe, quando iniciei minha carreira tendo muito me ensinado e ajudado, me ligou convidando para almoçarmos. Fomos no Itamarati, na R. José Bonifácio, em frente da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, local muito frequentado por professores da faculdade e advogados da região.

O encontro foi extremamente agradável e cheio de recordações, de situações, clientes e das conversas, principalmente no fim do expediente. Muitos de nós tomávamos uma saideira, antes de ir para casa. No meio da conversa  disse-me:

- Como sei do seu interesse pela Maria Alice Fuad.

Na hora gelei, esperava uma notícia nada agradável, por ser o que mais ouvia nessa época dos que lutavam, dentro ou fora do país, contra o estado nada democrático que se vivia.

- Sim, tenho interesse. Como o senhor sabe, pelo que me ocorreu, ela foi meu primeiro amor.

- Por isso mesmo quis conversar contigo.

- Diga.

- Ela conseguiu se refugiar na Embaixada da França em Santiago e com isso, agora está vivendo em Paris.

- Como soube dessa informação.

- O pai dela, conversou com um dos nossos sócios, que tinha conhecidos na França e conseguiu agilizar a sua saída do Chile.

- Ufa, que alívio.

Esta é a notícia que tive dela em 1973.

A minha vida profissional continuou intensa. O escritório continuou crescendo. Engatei novo namoro, mas, durou somente 14 meses. Outros ocorreram, mas também de períodos curtos. Ela não me saía da cabeça e quando as relações tomavam caminhos mais sérios, eu desistia.

De tempo em tempo, tirava, dez ou quinze dias de férias. Às vezes, meus tios viajavam comigo. Uma boa parte dos feriados eu ia visitá-los. Acabou me ocorrendo fazer uma viagem à França para encontrá-la, estávamos em 1975. Procurei Elisa, sua prima, e expus minha ideia. Fiquei sabendo, que estava dando aulas de inglês, francês para estrangeiros e português. Estava envolvida em uma ONG atendendo brasileiros exilados e ampliando o leque para exilados no geral. Acabou me desaconselhando ir, pois, ela começara, há seis meses, um relacionamento com um dos colegas da ONG. Esta informação me desanimou, além de me jogar para baixo. Para tirá-la da cabeça resolvi fazer a viagem para a Espanha.

Já estava com 33 anos, minha vida amorosa não engatava. Eram casos fortuitos de mero sexo e namoros que não se prolongavam. Os amigos diziam que eu estava bichado. Acabei, comprando um bom apartamento na Vila Romana. Ocasionalmente, chamava os amigos e as esposas para um churrasco. Sentia a vida vazia, faltando um pedaço. O pedaço que sentia faltar era Maria Alice. Estava ficando com obsessão por ela. Algumas vezes, fazendo sexo com alguém e fantasiando ser ela.

Em 1974 o presidente foi o Geisel, e começou a se falar em um encaminhamento, lento e gradual, do país para a democracia. Vivíamos um período inflacionário com crescimento da dívida externa. O governo até 1979 viveu intensamente esses problemas. Medidas heterodoxas foram tomadas, após o avanço significativo da oposição, MDB na época contra a ARENA, nas eleições de 1974. Para conter a oposição surgiu o senador biônico, aumento do mandato do presidente, manutenção da eleição indireta para governadores, aumento das bancadas de deputados, onde o governo tinha maioria. O governo teve, inclusive, que lidar com a linha dura do governo, após a morte do jornalista Vlademir Herzog e do metalúrgico Manuel Fiel Filho, nas dependências do DOI-CODI, levando a substituição do ministro do Exército.

Vivíamos o final do “Milagre Brasileiro”. Mundialmente, houve uma grande crise petrolífera em 1973. Geisel assumiu com inflação de 15,5% e saiu com 40,8%. Em dezembro de 1977 foi sancionada a lei do divórcio, quando aproveitei para solicitaro meu. Com a inflação em alta surgiram fortemente os movimentos sindicais, principalmente no ABCD (Santo André, São Bernardo, São Caetano do Sul e Diadema) e a projeção do sindicalista Lula.

Respirava-se na sociedade ares de abertura política, de novos tempos, de retorno dos exilados. Figueiredo assumiu em março de 1979 e em agosto promulgou a lei de anistia de forma geral, ampla e irrestrita. Políticos e personalidades principiaram a retornar como Luiz Carlos Prestes, Fernando Gabeira, Betinho, Leonel Brizola, Miguel Arraes e outros. O país vivia uma inflação galopante e um aumento significativo da dívida externa, com negociações junto ao FMI.

Este era o grande momento em que Maria Alice, se não estivesse presa em compromissos, sejam profissionais ou amorosos, poderia retornar. Resolvi procurar sua prima Elisa, para saber qual era a sua ideia em relação ao retorno. Informou, que há tempo terminara sua relação com o francês, e que vivia constantemente perguntado por mim. Elisa dizia que eu era o seu grande amor. Esta informação abriu uma grande esperança no meu coração.

- Não quis te contatar este tempo todo, pois, dizia ter te propiciado muitos dissabores e como sua vida ainda é incerta, tem receio de se aproximar e te causar mais dor.

Alguns dias depois Elisa me ligou:

- Ela está voltando! Quando tiver notícias do retorno te informo.

Ansiava por sua volta, pensava nela constantemente. Tinha insônias pelo tumultuo dos meus pensamentos e sentimentos. Solicitei a Elisa que me desse seu endereço, queria escrever.

- Aguarde, no máximo em duas semanas estará de volta e no momento não sei seu endereço, pois, estava se mudando.

Como eu reagiria ao vê-la, e ela? Será que a chama que permaneceu acessa durante a nossa separação, quando estivermos juntos terá o mesmo brilho, a mesma intensidade? Elisa dizia que sim, pois, em todos os contatos entre elas, Maria Alice sempre queria saber de mim.

-Clóvis, ela chega quinta-feira no voo da Air France 4650, em Guarulhos.

- Posso ir contigo esperá-la?

- Claro, vamos juntos.

Já pode imaginar. Não dormi direito aquela noite. Mal almocei. Seguimos para o Aeroporto de Guarulhos, logo depois do almoço, pois o voo estava previsto para as 16:00 h. Precaução, pois quem conhece o trânsito de São Paulo, sabe que pode levar 45 minutos, ou duas horas.

A ala de desembarque estava lotada de pessoas, imprensa, curiosos, apoiadores políticos. Avistamos à distância os pais de Maria Alice, seu irmão e alguns parentes. Fiquei receoso de me aproximar. Não queria ser um mal-estar, no momento de reencontro de pais e filha.

Principiou o rebuliço, quando saíram primeiro políticos e intelectuais conhecidos que estavam no exílio. A grande multidão e a imprensa se lançaram sobre eles. Tinha bandinha tocando, faixas, camisetas, balbúrdia de alegria. A área foi ficando mais livre.

Eis que surge Maria Alice. Um pouco mais magra, um rosto mais marcado pela vida, mas o mesmo olhar e sorriso. O cabelo está curto, com mecha que caía sobre os olhos e que ela graciosamente afasta. Veste jeans, com uma camiseta azul clara e uma blusa, presa a cintura.

Viu os pais e correu para eles. Abraçou, chorou, riu, os familiares a acolheram com alegria. Seu irmão, com a filhinha de poucos anos no colo abraçou-a. Ela feliz pegou a sobrinha, beijou a cunhada, que já conhecia do passado. Elisa se aproximou dela e abraçou no meio daquela balburdia. Quando tudo se acalmou, ela parou e olhou em volta e me viu a distância, correu em minha direção e caímos em um abraço envolvido de choro, riso e muitos beijos.

Elisa depois me contou: os pais de Maria Alice ficaram olhando para o nosso encontro. Ela se aproximou deles e disse que após de 17 anos estávamos finalmente juntos. Ele é o Clóvis da malfadada noite do roubo em sua casa nos Campos Elíseos.

- Tio e tia, ele é seu futuro genro.

Elisa me levou até eles e me apresentou.

O pai Fuad olhou em meus olhos, com um olhar que perscrutava o fundo do meu ser. Permaneci com a mão estendida. Pensava em recolhê-la, quando ele a segurou, me puxou e me abraçou, sem dizer nada. Tão logo soltou de minha mão, a esposa me abraçou, deu um beijo em cada lado do meu rosto e com lágrimas nos olhos me disse:

- Seja bem-vindo a família, meu filho!

 

Aerai

3/02/24

BATALHA DOS ORIXÁS

 





1 - O DESCONHECIDO

Esta história, transcorre em meados da década de 1970, em Areia Santa, cidade que serviu de cenário para o conto “Quem Comeu Mainha?”. Nesse conto, o meu colega escritor, ao escrevê-lo, não se manteve, simplesmente, na transcrição dos fatos, mas tomou partido da personagem. Comportamento com o qual não concordo. Mas, isso, são águas passadas.

Areia Santa, cidade de menos de 3.000 almas, como costumavam dizer na região, situada na costa norte do Ceará, próxima do Piauí, há quatro horas de ônibus de Fortaleza, por um bom pedaço de estrada de terra. O ônibus, que pouco tempo atrás, só fazia esse percurso uma vez por semana, atualmente o faz duas.

A cidade cresceu de uma vila de pescadores, sendo um lugar paradisíaco, com suas praias, dunas, coqueirais e remansos de águas, que se formam no deságue do rio Itapioca, que desce da Serra de Ibiapaba, junto ao mar.

A população, na sua grande maioria, vive da pesca, enquanto outros nas fazendas de cabras ou nas plantações de milho, mandioca, banana, babaçu, carnaúba ou nos grandes coqueirais. Quase a totalidade dessas atividades, está nas mãos do Coronel Cupertino.

Esporadicamente, em suas praias surgem alguns turistas, inclusive grupos de hippies. Acampam na areia, pegam água no rio e muito pouco aparecem pela cidade. Fazem suas festas, seus banhos de mar, muitas vezes pelados, gerando comentários na cidade e assanhamento nos mais jovens, que se escondem atrás das dunas para observá-los e fantasiar suas vidas.

Raramente algo de novo acontece na cidade, porém, em breve será cenário de forte conflito entre orixás, abalando a mesmice do dia a dia.

Repentinamente, no meio da manhã, debaixo de um sol escaldante, quando a cidade mais parece um fantasma, uma caminhonete cinza, toda suja de terra, com uma boa parte da caçamba com carga, deu uma volta na praça. Seguiu em direção ao bairro do Encantado, vila onde a maioria dos pescadores mora, passou por ela, pegou um pedaço de praia, seguiu um bom trecho e depois retornou. Na praça parou em frente ao principal estabelecimento.

Era um indivíduo de olhos azuis, 1,70 m, aparentando uns 40 anos, cabelos castanhos, necessitando corte, assim como a barba. Bermuda suja, óculos escuros, boné, camiseta sem manga e botina desgastada nos pés. Um sujeito apetrechado, como dizem na região.

- Bom dia, seu Moço, meu nome é Mainha, no que posso te ajudar? Está perdido por estas bandas?

O Moço encostou no balcão, tirou o chapéu e os óculos e ficou admirado pela beleza da Dona Mainha.

Devia ter, aproximadamente, a sua idade. Era um pouco mais baixa que ele, cabelos pretos, lisos até os ombros, pele jambo, olhos negros com o brilho de um dia ensolarado. Os lábios, possuíam um sorriso encantador, com a medida indicada para um beijo. Vestido ajustado, mostrando o ondeado do corpo, um pequeno decote transmitindo sensualidade.

Mainha, observou, que ele era um pouco mais alto que ela, pele morena queimada do sol, olhos azuis roubados do mar e nos lábios, constantemente pendurado, um sorriso. Parecia um anjo.

Mainha era uma mulher vivida. Tivera uma tórrida paixão durante um tempo de sua vida, apesar de um amor profundo por Deoclécio, seu marido. Para quem tiver a curiosidade de saber mais, basta a leitura do conto “Quem Comeu Mainha?”

Seu marido falecera há cinco anos, deixando o estabelecimento, onde de tudo se vende, mantimentos, bebidas, medicamentos, defensivos, veterinária, ferramentas, o que se fizesse necessário. É o ponto principal da cidade onde Mainha reina. É a viúva mais desejada.

Os olhares se cruzaram e simpatizaram, um com o outro.

Mainha avaliou: Esses olhos azuis guardam no fundo uma dor escondida.

O moço pensou: Mainha tem pequenos sulcos no rosto, marcas de momentos sofridos, que imprimem, como em ferro, sinais da sua passagem. O que a faz mais lindas, é, eles estarem cobertos com camadas de alegria e simpatia, maquiando o passado e a fazendo mais linda. Seus olhos transmitem bondade.

Voltou a perguntar no que podia lhe atender. Ele contou estar viajando, sem compromisso, pelas praias do nordeste. Gostaria de saber de um bom lugar, para encostar sua caminhonete e usufruir da natureza e do sossego, não incomodando ninguém.

Indicou que passasse pelo lado da vila dos pescadores, alcançasse a praia e seguisse à direita, por uns dez minutos. Estaria na desembocadura do Rio Itapioca, com isso teria água fresca e limpa, para beber e tomar banho.

Ela lhe ofereceu café e uma broa de milho. Ficaram em um bate-papo de amenidades. De ambos os lados sorrisos e gracejos. E um sentimento de empatia.

Todos esses detalhes correram a cidade. Tão logo ele parou no estabelecimento de Mainha, ajuntou molecada e várias pessoas foram até o estabelecimento comprar um nada, só para assuntar, e os comentários acabaram correndo.

Não se falou outra coisa, no colo quente do fuxico, no diz que diz, de quem nada tem a dizer e muito pouco sabe do que diz. Na cidade e na Legião do Sagrado Coração de Jesus, onde Mainha participava, partidos foram tomados. A grande maioria a defendia, mas as despeitadas, as secas de amor, aproveitavam para a desmerecer.

Diziam, no passado, ter tido caso com um advogado, sendo do conhecimento do marido, coisa de pouca-vergonha. Mas, ninguém viu e ninguém, conhece alguém que viu. Dizem, que é conversa de mal comidas.

O assunto diminuiu de ritmo, pois o Moço ficou um bom tempo longe da cidade. Algumas solteiras, a contra mando das mães, se juntaram, e atrás das dunas foram observar o querubim (era por algumas assim chamado). Viram, ele ficar um bom tempo sentado em uma esteira com as pernas cruzadas, olhos fechados, como que pensando. Mesmo quando sua cachorra latia ele não se mexia. A alegria delas era quando tomava banho nu, no mar ou no rio.

Sim, tinha uma cachorra. Conforme quem contava, variava de tamanho. Falaram, que quando chegaram perto, ela rosnou e mostrou os dentes pontiagudos, protegendo-o. Era branca com manchas marrões, uma pele, por baixo da pelagem, avermelhada, e tinha em volta dos olhos, linhas negras como maquiagem. Diziam ter cara do demo. Seu nome era Rubi.

 

“É Zun, zun, zun, zun, zun, zun capoeira mata um,

Zun, zun, zun, zun, zun, zun, capoeira mata um

Zun, zun, zun, zun zun, zun, diz, que diz mata um”

 

2 - ORIXÁS

Em um dos dias, o Moço parou na Vila do Encantado, bairro dos pescadores, querendo comprar peixe. Os homens, estavam na lida, no mar. Algumas das mulheres, atraídas pelos comentários ouvidos e com certo assanhamento, se aproximaram, dando informações desencontradas na venda dos peixes. Tia Délia, por ser uma das mais antigas e respeitadas da vila, tratou de atendê-lo. Perguntou, o que o Moço queria e apresentou os peixes que poderiam lhe satisfazer.

Feita a venda, pela simpatia e educação do Moço, o convidou para almoçar com ela mais e Demécio, seu marido. O Moço aceitou e se mostrou bastante simpático. Contou morar em São Paulo mas, resolveu largar tudo o que fazia e sair de automóvel pelo litoral do país. Já havia passado por vários estados e praias até chegar ali. 

Demécio contou como a vila começara com a pesca de curral, em que se faz um cercado, esperar baixar a maré e coletam-se os peixes presos. Falou que esse tipo de pesca teve uma forte queda e aí se desenvolveu a pesca de linha, por isso, hoje há tantos barcos no porto, variando conforme o tipo de pesca que se faça. Tem os que só trabalham com a pesca de alto mar e outros próximos à praia. Na linguagem dos pescadores, pesca no mar de fora e pesca no mar de terra.

Depois da deliciosa pescada, acompanhada de uma branquinha e doces de caju, jaca, e de um cafezinho, o Moço se foi agradecendo a acolhida. Tia Délia ficou impressionada pela beleza, o azul dos olhos, as boas maneiras e a sensação que ele não era o que aparentava, e que por trás daquela tranquilidade havia sentimentos em convulsão. Havia algo de estranho.

No dia seguinte, Tia Délia solicitou à sua comadre Dada que a acompanhasse até a Mãe Cida, respeitada Iyalorixa do Terreiro do Encantado.

Feito os cumprimentos e as pequenas ofertas, tia Délia, pediu para Mãe Cida jogar os búzios, pois queria esclarecer a impressão pesada, que ficou, do Moço.

Depois da reza e de saudar os orixás, jogou os búzios. Na leitura, soube que ele veio encaminhado por Iemanjá. Correra várias beira-mares, não encontrando, em nenhuma, local que aplacasse as angústias do coração. Era protegido por Obaluaiê, orixá das doenças, das pragas, cultuado na figura de São Lázaro.

- Oxente, das doenças e pragas?

- Apois, é o que diz os búzios. Vai tê uma batalha entre Logun Edé, Orixá da Caça e da Pesca, filho de Oxóssi e Oxum, contra o Obaluaiê, orixá do Moço. Vai sê em noite clara, que vai se transformá em escuridão com vento, tempestade, raios e trovões. Dessa briga, um dos dois vai ganhá.

Tia Cida voltou para casa preocupada, sabia que havia pescadores que eram protegidos de Logun Edé, inclusive seu filho Mereciano, só não entendia o porquê do conflito.

O Moço, de vez em quando, aparecia em Mainha, ela oferecia um café e algum dos salgados ou doces, que por ali tivesse: cocada, pamonha, cuscuz, bolinho de chuva. Passavam um bom tempo conversando e rindo, e as pessoas dizendo: olhos nos olhos.

Na Vila do Encantando, de tempo em tempo, há um almoço comunitário, com peixes e frutos-do-mar e convidam amigos. Tia Délia resolveu convidar o Moço, seria um bom dia para ele conhecer os pescadores, pois, não estariam trabalhando. Mandou recado.

O Moço, ao chegar, cumprimentou seu marido Demécio, que o apresentou aos outros. Tia Délia observava de longe, esperando para dar uma atenção. Quando seu marido apresentou o Moço ao filho Mereciano, se abraçaram, se cumprimentaram e riram, mas, como uma faca espetando o estômago, adveio uma gastura, e Tia Délia sentiu uma nuvem negra sobre ambos. Não soube o porquê, pois estavam lá se abraçando, cumprimentando e brincando um com o outro. Mas como sempre dizia: felicidade é um pontilhado de momentos, em uma colcha de paz, corroída por invejas, medos e angustias, podendo se desmanchar numa volta da vida.

Tratou de se desfazer do mal-estar e voltar para alegria da festa. Pensou: "Cuida do momento, que o futuro por si se cuida"Pegou uma bandeja e saiu a servir, aproveitou cumprimentando o Moço. 

Nisso, como um rodamoinho de alegria, chegou Janaína. Morena faceira, cabelos negros sobre os ombros, risonha, em vestido branco, ressaltando o jambo da pele e o castanho-claro dos olhos. Entrou cumprimentando cada um com uma palavra, um sorriso, quando não um abraço e um beijo. Em Mereciano, um beijo de "querer" nos lábios, que a puxou para sentarem juntos. 

ela negou, iria com as amigas, deixando os homens mais à vontade. Mereciano a apresentou ao Moço e quando seus olhares se cruzaram, algo aconteceu. Janaína ficou presa no olhar, deixando toda a vivacidade com que chegou, se prostrar. O Moço ficou encantado pela faceirice, a beleza, mas, notou o mal-estar da apresentação, desviou o olhar e parabenizou Mereciano pela simpatia da noiva. Este notou o choque que houve, ficou aperreado, com sua face se transformando, acabou, depois, se escondendo na conversa com outras pessoas.

Tia Délia, que tudo observava, entendeu onde poderia ocorrer o conflito entre os orixás. Janaina, guardou sua alegria e passou o almoço todo, em pequenas conversas com as amigas.

 

Ei ei ei eh eh ah

Ei ei ei ah

Venho para abrir as portas

O amor é quem me traz

O que há de ódio nessa casa

Meia volta e nem olhe para trás

Ei ei ei eh eh ah

Ei ei ei ah”

 

3 - O SEGREDO

O Moço, em uma das visitas solicitou para ter uma conversa em particular com Mainha. Foram para o escritório, no fundo. Mainha passou pela geladeira, pegou uma jarra de limonada e uns salgadinhos.

- Preciso te contar um segredo. Promete guardar?

- Eita, seu Moço, quando conhecer a minha vida, vai saber que guardar segredo é o que melhor sei fazer.

- Vou te contar minha história

Os curiosos de fora, olhando pelo vidro a sala de Mainha, viram se aproximarem, como se falasse em voz baixa. Por um bom tempo, notaram que Mainha só o escutava, alterando a expressão conforme o que ouvia.

Ele parou de falar e lágrimas correram pelas faces. A voz embargada não conseguia sair. Mainha, levantou, foi por trás da cadeira e o acarinhou nos cabelos. Depois, o olhou de frente e viu um homem derrubado pela vida. Ela o abraçou junto ao ventre e o deixou chorar em seu colo, sem dizer uma palavra. O coração de Mainha, que guardara dentro de si inúmeras dores passadas, com mais aquela, transbordou pelos olhos, numa emoção incontida e chorou junto.

Passado longos momentos, Mainha, voltou à sentar frente a ele. Sentiu o grande buraco em que estava. Naquele momento, era alguém que estendia a mão e pedia socorro. Na vida, ela já se sentira assim, inúmeras vezes. Tratou de segurar as mãos dele entre as suas, pois sabia o quanto, a simples presença de um ombro amigo, vale mais que palavras.

Os dois começaram lentamente a controlar os sentimentos.

- As acusações e eu mesmo me sentindo culpado, apesar de todos dizerem que fora uma fatalidade, batiam fortemente em mim. O sentimento de culpa era muito grande, e eu me considerava o principal responsável. Passei a não querer viver, só pensava em encontrar onde errei. Mal comia, mal dormia, era um verdadeiro zumbi. Não queria sair de casa.

Pouco a pouco, com a ajuda de meu irmão e de amigos médicos e psiquiatras, fui saindo do buraco em que me meti. No início, por meio de medicamentos para controlar a depressão, vitaminas para repor o que perdia, e injeções para recompor minha condição física, fui gradualmente saindo da letargia, do desânimo que me dominava. Foram oito meses para deixar o inferno e retornar a vida.

O medo de sair de casa foi sendo suplantado, a vontade de morrer, foi sendo substituída por pequenas alegrias que a vida me apresentava, no carinho das pessoas, na vida que se mostrava à minha volta, na natureza que sempre adorei.

Resolvi, após longas conversas com meu psicólogo, meu irmão e minha cunhada, que tinham receio das minhas reações, sair de viagem. Decidi correr o país, pelo lado do litoral, pois, sempre fui amarrado no mar e me deixar levar. Ser o que a vida viesse a me oferecer.

Por sorte, no Espírito Santo, encontrei uma comunidade budista, onde passei um bom tempo. Aprendi a me reequilibrar, a meditar, o que tem me ajudado muito.

Assim, após dez meses, cheguei por aqui. Encontrei, neste local, uma paz reconfortante, e em você uma amiga sincera, que em nossas conversas, parece me entender, pois noto que a vida também lhe fez sofrer.

Ela levantou, pegou em suas mãos, olhou nos olhos e disse:

- Seu Moço, quero ajudar no que puder. Conte com meu ombro, para desafogar as mágoas, nos momentos de dor, de incerteza e quero te ajudar, na busca de um novo caminho.

Desde a primeira vez que o viu, sentiu por ele um querer especial, parecia amor materno, um pouco estranho, pois, os dois têm a mesma idade. Sempre lhe pareceu que já o conhecia de longa vida.

 

O amor é a memória

Que o tempo não mata,

A canção bem-amada

Feliz e absurda...

É música inaudível...”

 

4 - AJUDA

- Vou te falar do meu plano. Conto com o teu segredo e a tua ajuda. No começo muita gente estranhará o que faremos e conhecendo a cidade, irão te criticar. Como não quero que saibam até o dia conveniente, muita pressão você sofrerá. Muitos comentários desabonadores a teu e ao meu respeito aparecerão.

Explicou a sua ideia. Ao final:

- Conta comigo, essa peleja é de dar o gosto – respondeu Mainha, sentindo-se feliz e tomada pelo desejo de ajudar, pouco importando as consequências que traria. Ela já havia enfrentado a cidade, no passado, quando era mais nova e insegura, não seria agora que iria esmorecer.

- Para meu plano preciso encontrar uma casa. O ideal que seja na cidade, próxima da praça, para facilitar o movimento que acontecerá. Quero que a fama se espalhe por toda a região.

- Apois, se esse é um problema, considere resolvido. Deoclécio tinha uma casa alugada para o pessoal do Coronel Cupertino. Foram embora e com a morte de meu marido nunca mais mexi nela. Deve precisar de reparos, mas a gente cuida. Bora ver? Corisco. Corisco vem mais eu. Escuta aqui Corisco: 

- Tudo o que vai acontecer e o que ouvir, não comenta com ninguém, nem em casa. Boca de siri.

- Pode contar patroa. É Deus no céu e vosmecê na terra.

Algumas casas abaixo da venda de Mainha, havia uma casa feita de pau a pique, com telhado de zinco que estava fechada. Tiveram quase que arrombar a porta, pelo tempo que estava fechada. Abriram as janelas e o sol entrou, ressaltando o mofo e o empoeirado que se levantou. Havia três cadeiras largadas, uma mesa manca, pedaços de madeira pelos cantos e pelo chão. Muita sujeira entulhada.

A casa tinha um recuo em relação à rua, uma pequena varanda. Entrando, era uma sala grande, com uma janela para a rua. Depois vinha um corredor, tendo ao lado, esquerdo dois quartos em petição de miséria, com janelas para o corredor lateral. Do lado direito, um projeto de banheiro de tamanho bom, e a seguir mais um quarto com janela para outra lateral. O final do corredor terminava em uma área coberta, que servia de cozinha. Um chão, todo esburacado e em um dos cantos um fogão a lenha. O teto era composto de buracos, porque telha inteira não havia. No fundo, um quintal, com uns 8 metros de profundidade, cheio de mato.

- Que te parece, seu Moço?

- Os cômodos estão ótimos. Um dos quartos posso aproveitar para meu uso. O quarto da direita pode ser usado para guardar material, inclusive quero que tenha uma geladeira nele.

- Geladeira, deixa comigo; sei como conseguir uma de graça. Corisco, pega um pessoal, começa a limpar a casa para depois ver o que precisamos fazer. Leva as cadeiras e a mesa para o Lázaro consertar. Avisa que precisaremos de mais cadeiras. Depois falo com ele. E não esquece Corisco, ninguém deve saber o que estamos fazendo e para que será, nem o pessoal que vier te ajudar. Não vai bestar e acabar falando, nem em casa.

- Mainha, vou colocar no papel o que vamos precisar. Vou a Fortaleza, ver o que consigo doado e faço uma lista do que comprar. Tenho amigos por lá.

Assim começaram os trabalhos.

- Juro, vi Mainha abraçando seu Moço no fundo da venda.

- Eu também vi.

- Mandaram, o Lázaro fazê uma cama alta, precisa de escadinha pra subi. Imagina a putaria.

- Que pouca vergonha, tá botando casa pro amante – falou Zelina, vulga Boca Maldita, caiu na dela, nem o Diabo se salva - Tá se amancebando, depois de velha vai virá rapariga.

Com tanta fofoca, em uma das vezes que estava só com ela, o Padre Inácio resolveu perguntar:

- Mainha, ouço muitos comentários a teu respeito. Algum problema que possa ajudar? Mulher conte comigo.

- Seu Padre, não se apoquente, logo, logo o senhor vai saber o que estamos fazendo. Não dê ouvidos para o que os outros falam. Esta cidade sempre foi assim. É tudo 

boca de tramela.

 

“É Zun, zun, zun, zun, zun, zun capoeira mata um,

Zun, zun, zun, zun, zun, zun, capoeira mata um

Zun, zun, zun, zun zun, zun, diz, que diz mata um”

 

5 - ALÍVIO

Ouvindo os fuxicos que chegavam, Tia Délia começou a se sentir mais tranquila. O seu Moço estava envolvido com Mainha. Ela estava botando casa pra ele. E fazia tempo que não aparecia por ali.

Tinha uma coisa que a estava deixando preocupada, era Janaina e Mereciano, viviam brigando a todo momento. Antes, era constante a alegria de Janaina no pedaço, era o sol que iluminava por onde passava, agora mal aparecia.

- Mereciano o que tá havendo com tu e Janaina?

- Estou aperreado, antes só falava de casamento, agora num qué sabê. Implica com tudo, briga por qualqué coisa. Antigamente vivia de beijinhos e abraços mais eu, agora parece que tá fugindo.

- Vou fala com ela. Deve está bestando.

Janaina sentia um grande peso no coração. Antes só pensava em Mereciano, quando acordava, durante o dia, vivia esperando a noite, para se encontrarem. Não via a hora de casar. Depois que viu seu Moço e mergulhou naqueles olhos azuis, não conseguia tirar ele da cabeça. Não tem propósito. Ele é um forasteiro do Sul, ela filha de pescador, pronta para casar com o melhor partido da cidade. Como pode ficar tão embaralhada. Quando está com Mereciano, sente um peso, um mal-estar. Não sente a paixão, o fogo que sentia por dentro, quando estava, ou mesmo quando pensava nele. Resolveu visitar Mãe Cida buscar conselho e ajuda dos orixás.

Mae Cida a recebeu esperando a costumeira alegria, mas notou suspiros de dor. Seu olhar, que antes, sempre fora de animação, agora, era de desalento. Daqueles que não conseguem ver as alegrias em volta, por estarem mergulhados nas tristezas da alma, encobrindo a visão da vida.

Ouviu suas dúvidas, se entristeceu, por ver a certeza do amor por Mereciano ser abalada devido a uma fantasia que o coração cria, enganando a cabeça, um sonho que se desfará como arco-íris, no final de chuva. Pegou sua mão, a levou até o peji para rezarem juntas. Pediu, com a força do seu axé, aos orixás que viessem em socorro, principalmente Iemanjá, madrinha de Janaína, e iluminarem os caminhos.

Seu Moço, durante a solidão da noite, tinha os pensamentos tomados pelo riso, a beleza e o olhar de Janaina. Sonhava com ela amenizando a tristeza de estar só, e o desejo de ter alguém para amar, viver junto, lutar lado a lado e criar futuro. Aqueles pensamentos, mesmo não a conhecendo, e sendo uma ilusão, amenizavam a solidão. Não sabia ele como os mesmos pensamentos geravam em Janaína, sofrimento e tristeza.

A tormenta do confronto dos orixás de Mereciano e do Moço estava se formando no tempo, senhor da vida, onde pouco se pode fazer para conter.

Tia Délia, perguntou a Janaina o que estava acontecendo.

- Benção, tia, não quero homem, só por marido, como todas desejam, quero homem por amor, que esquenta o corpo e o coração. Quero beijos, que deixem gosto nos lábios. Hoje, os meus para Mereciano estão secos. Falta vida e não há desejo. Não perco o folego a cada um deles, nem sinto prazer, nos seus carinhos. Meus dedos querem correr um rosto que não é o dele. Me sinto morta, sem vida correndo nas veias.

Tia Délia pensou, na disgrama que estava acontecendo, como era triste a situação. Uma mulher perdida em sentimentos que a razão não justifica. Meu pai ajuda, podem ser razões, que vieram de tempos passados.

Acendeu uma vela ao Pai Oxalá, na figura do Senhor do Bonfim, se ajoelhou e com o rosto entre as mãos orou:

- Êpa, êpa, babá...

 

 

Se acaso lhe faltar a fé

E triste estiver

Corra até seu Congá

Faça uma oração irmão

E peça proteção

A Pai Oxalá

 

6 - A PREPARAÇÃO

Mainha, com Corisco corriam com o preparo da casa. Precisaram trocar ripas do telhado, cimentar a cozinha que estava esburacada, arrumar o fogão, reparar as lajotas dos pisos dos quartos e da sala que estavam quebradas, arrumar janelas e trazer vidros de Fortaleza para os consertos. Encomendou cama de casal, mais um criado-mudo e outra cama de solteiro;

-Pra que todas essas camas? – comentavam.

O banheiro teve que ser todo refeito e seu Moço solicitou que tivesse uma banheira com chuveiro e chuveirinho. A cidade tinha energia elétrica, o que permitiria uma boa ducha. O povo escutou que seria um lugar muito usado.

- Não qué só uma latrina, qué uma banheira. É putaria, sem dúvida.

-  Seu padre, uma casa de perdição no meio da cidade. Vosmecê não pode deixá acontece!

Para não caírem ciscos pela casa, o teto foi forrado com palha trançada de folha de babaçu. Várias mulheres da cidade foram contratadas para o entrelaçamento. Duas mesas e cadeiras em quantidade, foram encomendadas. Mainha colocou vasos no terraço de entrada e na cozinha, no fundo, com plantas e trepadeiras resistentes ao calor e protetoras, como jiboia, espada de São Jorge e arruda.

 No final, viria a pintura: azul-claro, no cômodo maior, rosa-claro no menor e no outro verde-claro. A casa por fora, seria toda branca, com o madeirame em azul-celeste.

Durante esse tempo Seu Moço seguiu de barco para Fortaleza, permanecendo por lá.

Na cidade, os comentários continuavam. As pessoas diariamente passavam pela obra, assuntando os ajudantes, pois com Corisco, só encontravam o silêncio. Este, interiormente, estava extremamente orgulhoso de ser o responsável pela reforma.

- Será uma pensão, casa de mulher dama, moradia para o bem amado, boate?

Começaram a chegar caixas de madeira fechadas, endereçadas ao comércio de Mainha: objetos envolvidos em papel, com formatos diferentes, abajur, cabideiro, secador de cabelo, espingarda, sabe se lá o que.

Chegou uma geladeira com marca de cerveja que Mainha vende, foi mandada para a casa.

- Vixe, vai tê bebida. Se tem bebida, tem sacanagem!

 

“É Zun, zun, zun, zun, zun, zun capoeira mata um,

Zun, zun, zun, zun, zun, zun, capoeira mata um

Zun, zun, zun, zun zun, zun, diz, que diz mata um”

 

7 - O PADROEIRO

No dia do padroeiro Bom Jesus, em 06 de agosto terá festa em homenagem. Várias missas serão rezadas durante a semana e, na sexta, sábado e domingo a esperada festa. Tudo estava sendo montado com a orientação do Padre Inácio, e o apoio da comissão de festa, que tinha como participantes a Tia Délia, Dada, Mainha, a presidente e vice-presidente da Legião Coração de Jesus, Antônia e Jussara.

Na praça serão montadas barracas, sob diversas responsabilidades: salgados e doces ficarão com a Legião do Coração de Jesus; carne de sol com macaxeira e bebidas com alguns pescadores; peixes, frutos-do-mar, caldeiradas e sarapatel com as mulheres dos pescadores; broas, cocada de amendoim, mugunzá, pamonha, beiju, cuscuz ficarão com Mainha e ajudantes.

O Padre Inácio contratou três grupos de forró, para tocarem alternadamente nos três dias de festa. Das 11:00 h da manhã até meia-noite. Fora alguns artistas da cidade e dos arredores, que se apresentaram para tocarem em troca de umas biritas, comida e mulher para paquerar. A organização dos músicos era com o Lázaro, que vivia com o rádio ligado na marcenaria o dia todo e conhecia os cantores e as músicas da temporada.

A festa era famosa na região. O pessoal vinha a pé, de burro, barco, ônibus, carroça, carro e caminhão. Do que fosse possível. Tinha gente que vinha lá dos cafundós do Judas, levando dias na viagem. Durante a semana foi chegando gente que acampava em torno da cidade, outros aproveitavam amigos para se acomodarem. Era um festival de barracas de lona, amarradas nos caminhões, nos ônibus, nas carroças, e nos poucos tocos de árvores. Era um rebuliço, uma beleza. Na praia aumentava o número de embarcações. Eram canoas, jangadas, tototó, paquetes trazendo o povaréu das cidades, vilas, lugarejos e currutelas da costa próxima.

Os pescadores e o pessoal dos barcos, no dia do padroeiro, fazem uma procissão, tiram a imagem do Bom Jesus da igreja, colocando em um barco todo enfeitado, distanciam um pouco da praia e ofertando flores. O pessoal da Umbanda, aproveita a procissão e também agradece a Iemanjá na figura de Nossa Senhora da Conceição, que vai em outro barco coberto de flores.

- Odociaba minha Mãe.

É uma procissão linda com todos de branco. O Padre Inácio abençoa esse sincretismo com o respeito merecido.

A cidade é enfeitada de bandeirolas, que famílias passam meses produzindo. No centro da praça, onde há um local apropriado, é levantado um mastro, (guardado pelos pescadores durante o ano), com as cores azul-celeste e vermelha, tendo no alto a imagem de Bom Jesus, como em festa junina, dentro uma lâmpada, que se mantém acessa durante as noites do evento.

Pedidos de saúde, pesca, dinheiro, namorado, marido, casamento, namorada, barco e trabalho, são presos com um preguinho no mastro. No último dia da festa, são retirados e queimados, como oferta na missa de encerramento. É a esperança do povo que busca no elevado ajuda para as dificuldades aqui da terra.

Que o perdão seja sagrado

Que a fé seja infinita

Que o homem seja livre

Que a justiça sobreviva, ai, ai

Que o perdão seja sagrado

Que a fé seja infinita

Que o homem seja livre

Que a justiça sobreviva, ai, ai

 

 

8 - O RETORNO

Uma semana antes da festa, o Moço retornou da viagem de Fortaleza.

Encontrou algumas pessoas acampadas, próxima à sua barraca, aguardando o dia da festa. A maioria era famílias, que trocaram com ele gentilezas: numa bebida, numa prosa e até em uma comida. Ele alegremente aceitou. Aquilo tudo era maravilhoso. Era a vida, as pessoas, manifestando sua fé, sua alegria e o congraçamento, pois muitos esperavam encontrar amigos, parentes das festas anteriores. Era o povo na sua mais pura essência, numa festa feita pelo povo. Passaram o ano colocando-se nas mãos do Bom Jesus, orando, para que sua intercessão auxiliasse no diário, acima do que o temporal possibilita e agora estão presentes para agradecer o que tiveram.

No dia seguinte, passou na obra, ficou impressionado com o que viu e com o andamento, que iria ocorrer, conforme Corisco. Ficou emocionado, com a empolgação daquele homem simples, que se mostrava um dos principais responsáveis pelos resultados que iriam obter. Deu um forte abraço de agradecimento. Corisco ficou sem jeito. Homem não abraça homem, mas até uma pequena lágrima quis sair no canto dos seus olhos, que rapidamente tratou de reter. O peito se encheu.

Mainha foi só alegria com seu retorno. O abraçou e até um beijo lhe deu na bochecha.

- Chega! Chega! Quero saber tudinho.

Levou-o para o escritório e parecia uma matraca despejando as informações do tempo em que esteve fora. Falava com alegria e empolgação, levando o Moço a rir.

- Que foi, que eu disse, que tu tá rindo?

- Nada. Dá gosto ver a tua empolgação. Você agora e o Corisco há pouco, foram a melhor acolhida que eu poderia ter. Estão dando vida às minhas ideias. Há muito tempo não me sinto tão animado. Só tenho a agradecer.

Passaram um bom tempo contando o que cada um fez.

- De hoje a quinze, acredito que podemos inaugurar – informou Mainha.

- Ótimo! Temos que programar, no maior segredo, como será a inauguração. Quem convidaremos? Bom, vou ajudar a pendurar bandeirinhas e lampadinhas e ver no que posso mais auxiliar na festa.

O Moço, após um bom tempo desaparecido, aparece auxiliando na arrumação da festa, o que criou um frisson entre as solteiras, as casadoiras e algumas bem casadas da cidade. Fora as curiosas do pedaço.

As pessoas chuchavam perguntas, para tirarem alguma resposta sobre a casa. Quando seria a inauguração? Ele só respondia:

- Logo, logo.

A semana foi atribulada de preparatórios, do aumento no número de pessoas que circulavam pela cidade. Com mais movimento, Mainha e seu pessoal tinham dificuldade para atender. De vez em quando o Moço ia ajudar. Na Vila Encantado a venda de peixes e frutos-do-mar estava a toda. A cidade estava um salseiro, extremamente ocupada e preocupada, mas, feliz.

 

Com ele fiz uma promessa

E este ano tenho que pagar

Vou rezar uma novena

Ao meu bom Jesus pra ele me ajudar

 

9 - A FESTA

Na sexta-feira, primeiro dia da festa, o Moço ficou a manhã toda com Corisco na casa avaliando o serviço, sugerindo reparos ou ajustes. Lá pela hora do almoço notou que Corisco estava aperreado. Claro, como todo mundo, queria estar na festa, ajudando, assuntando, bebendo, conversando. Levando os filhos para se divertirem nos balanços construídos na praia. Foram montados, também, dois gira-giras e dois escorregadores. Lázaro, com a ajuda de alguns homens, construiu tudo, e queria deixar os equipamentos montados para depois da festa.

No resto do dia ele se fechou em um dos cômodos da venda de Mainha, abriu as caixas que tinha chegado e conferiu o material. Aquela verificação estava sendo um bálsamo para sua cabeça, pois a cada conferência ela cabeça voava, se enrolava nos sonhos e fazia do amanhã um dia de perspectivas. O tempo passou.

Saiu quando já era noite, ficou encantado, havia fogueiras dispersas, principalmente na praia. Encontrou Mainha, pediu um peixe, um caldo e uma cerveja, comeu em companhia dela e foi para a caminhonete dormir. Ocorreu, que a alegria em volta estava grande, e as pessoas o envolveram nas cantorias, nas danças, nas conversas, nas comidas, nas bebidas até que foi, literalmente, carregado, às quatro da manhã para a caminhonete.

Acordou com o sol no horário da tarde e a Rubi lambendo sua cara. Esses dias todos que esteve fora, ela deve ter andado entre as barracas e forrado o estômago. Quando esteve em Fortaleza ela dormiu em casa de Mainha. Agora, vivia atrás dele.

Tratando de se recompor, tomou um banho de mar, depois foi a um dos remansos do rio e se lavou. Procurou um ponto mais distante da muvuca, debaixo de uns coqueirais e, embalado pelo namoro do vento com os coqueiros, meditou.

Com uma fome brava, passou na barraca de Tia Délia, que o recebeu com sorrisos, mas com olhos preocupados, comeu uma moqueca e tomou um caldo, com uma cerveja gelada.

A noite principiava. O céu estava límpido com lua cheia, iluminando os areais mostrando suas entranhas e fazendo um jogo de claro-escuro, revelando o côncavo e o convexo de suas formas, parecendo uma mulher estendida ao luar.

Encontrou Mainha em sua barraca e a convidou para tomarem uma cerveja juntos. Sentaram em uma das mesas, em volta do grande círculo que formava o espaço de dança. Conversaram e observaram o agito. Satisfizeram os olhos com o movimento das pessoas e o coração com o burburinho e a música da festa. Casais começaram a levantar a poeira do chão, com suas danças.

Nisso passou por eles Janaína, que parou, cumprimentou Mainha e o Moço. Este, por educação, a convidou para sentar, o que aceitou. Mainha na hora apresentou cara de contrariedade, por saber do término do namoro dela com Mereciano, do ciúme doentio dele, e das conversas que ouvira envolvendo a possível participação do Moço, no desfecho. Tia Délia, do outro lado da festa, a viu sentar na mesa deles, se apoquentou e se aprofundou nos temores.

O Moço que nunca havia conversado com ela, ficou encantado, pela desenvoltura, a facilidade da conversa, a simpatia e acima de tudo a beleza. Era estonteante, levando, a que em momentos, não percebesse o que ela dizia e simplesmente se fixasse nos olhos, no movimentar dos lábios, nos trejeitos, no cabelo que o vento rebeldemente fazia cair sobre o rosto e ela com um jeito próprio o colocava de lado. Estava hipnotizado. Mainha notou tudo isso e para romper o momento, a convidou a chegar até sua barraca, onde sua prima estava ajudando.

Começaram as danças. Aproximou-se da mesa Caetano, sua mulher Rosário, Estácio, seu irmão, com a esposa Jussara. Ele os conhecera das idas na Vila do Encantado.

- Olá, seu Moço, sozinho? Podemos sentá junto? – perguntou Caetano.

- Claro, será uma satisfação. Sentem, vou buscar mais cervejas. As mulheres, também tomam?

A conversa estava do jeito que o Moço gostava. Causos das festas que houveram, das pescas, brincadeiras, risadas. Eram jovens curtidos nas dificuldades do mar aproveitando aquele momento feliz da vida.

- Pessoal, vamos dançar? Caetano posso tirar a Rosário para dançar.

- Seu Moço, descurpa, mas não vou dança. Tô prenha e no forró me mexo demais – respondeu Rosário.

- Está grávida, que maravilha, meus parabéns. Para quando?

- Daqui uns seis meses, mas tive alguns avisos e é mior eu me resguardá.

O Moço ficou olhando um tempo para o rosto dela, como se o passado ou alguma verdade, dentro de si, estivesse vindo à tona.

- Que dança comigo?  - perguntou Jussara.

- Cuidado Seu Moço - falou o marido – ela tem um remelexo que vai lhe dar uns nó nas pernas.

Tiro e queda, Jussara era boa na dança, várias vezes o deixou parado no meio do arraial, sem saber o que fazer. Ela ria e todo mundo que conhecia suas habilidades riam.

- Seu Moço vai levá uma surra da Jussara na dança. Eta mulhé porreta.

Voltaram para a mesa, ele desmilinguido, pedindo cerveja. Todos riram.

- Mais tarde, vou querer dançar de novo, mas vai me explicar alguns passos. Você não é fácil.

O Moço, notou no outro lado da pista Janaina, acabando de dançar com alguém. Foi até lá e a convidou. Aceitou.

Ainda bem que ela dançava de um jeito e numa cadência que ele conseguia levar. Era mais lento, e podia sentir o perfume que subia do seu corpo, o suor que escorria do rosto, a faixa clara segurando o cabelo, o vestido branco que volteava a cada rodada da dança e o riso, quando achava graça de algum dos passos.

Muita gente parou para observar e até foram avisar Tia Délia, que saiu da barraca e ficou observando, agarrada às suas figas e patuás rezando para Mereciano não aparecer. Porém, fora em vão, ele apareceu, viu ambos dançando e seus olhos se encheram de sangue, seu rosto crispou, estava aperreado.

No final da dança, o Moço perguntou a Janaina se dançaria mais uma. Ainda estava segurando o braço dela, aguardando resposta, quando Mereciano, de supetão, agarrou o outro e disse:

- Posso dança com a moça, agora?

Repentinamente, o vento começou a correr pela festa, derrubando lonas, bandeirolas, saracoteando os vestidos das moças, levantando o pó do chão. No céu, formaram-se nuvens negras que encobriram a lua. Ao longe, em alto mar, formaram-se relâmpagos e trovões que rapidamente vinham em direção à terra.  A música parou, todas as atenções se voltaram para eles, havia eletricidade no ar. Tensão.

Tia Délia, sentiu a natureza se alterando, agarrou-se ainda mais a reza, rogando com mais fervor aos seus Santos e em especial ao Pai Oxalá. Seu coração estava disparado, suor corria pelo corpo. Demécio, seu marido, se aproximou e abraçou o corpo trêmulo da esposa. E juntos rogaram aos seus protetores.

 Ela sabia, o quanto Mereciano tinha o comportamento igual ao seu Orixa, Logun Ede,  filho de Oxossi e Ogum, um dos mais belos e vaidosos Orixá masculino, podendo ser doce e astuto, mas, também, com a força e o espírito de caçador. É o deus das contradições, nele os opostos se alternam é o deus da surpresa e do inesperado. São arrogantes e prepotentes, mas, quando têm consciência e controlam seus defeitos se tornam agradáveis.

O Moço respondeu:

- Sem dúvida. A moça dança muito bem.

Ao largá-la, Janaina puxou Mereciano rapidamente para o meio da pista. As nuvens se dissiparam, permitindo a lua embranquecer o entorno e por um encanto o vento parou. Os raios e trovões cessaram em alto mar.

O Moço quando se dirigia para a mesa, uma jovem das famílias que conhecera na praia perguntou:

- Vamos dançá?

Lá foi ele, tendo depois que dançar com mais duas do grupo.

Ao seguir para a mesa, encontrou os casais animados na conversa e riram, pois devia estar cansado das danças e ainda ficara de dançar com a Jussara.

- Jussara, hoje não consigo mais. Prometo que amanhã dançamos, estou morto. Vou dormir.

 

Quando a flor tava dormindo,

Vento veio me levar

Prum terreiro iluminado, entre terra céu e mar

Já que o mundo ta girando, eu também quero girar

Gira negra dançadeira, olha a chuva de ganzá

O truvão ficando rouco, também já relampiou

 

10 – ÚLTIMO DIA

No último dia de festa, o Moço acordou tarde. O alarido em volta estava alto. Eram algumas famílias levantando acampamento e se despedindo. Outras se preparando, para mais tarde, ou quem sabe no dia seguinte pegar a estrada de volta.

As saudades foram amenizadas, as amizades reforçadas, alguns namoros, quem sabe casamentos, e a fé entranhada com mais profundidade na alma e nos corações. Alguns casos ficaram no folclore e na maledicência das mentes e bocas soltas.

O Moço tomou um banho demorado no remanso do rio e aproveitou, para brincar um bom tempo com sua cachorra, Rubi. Ela estava carente do tempo que esteve viajando, e como ela por muito tempo, fora sua única companheira, sentia falta de tê-la próxima. Com o que viria acontecer nos próximos dias, menos tempo teriam juntos.

Resolveu ir a casa de Mainha, onde o pessoal estaria fazendo mais salgados para o dia. Chegando por lá, perguntou se poderia tomar um bom café com leite, acompanhado de uma das maravilhosas broas produzidas na casa.

- Seu Moço, senta naquela mesa no fundo do quintal. Eu te levo o café e quero prosear contigo – ordenou Mainha.

Ela relembrou a noite anterior, no momento da dança, quando Mereciano apareceu.

-  Tu notou a mudança de tempo, o que aconteceu?

- Não, estava atento com Mainha e Mereciano.

- Bem, vou te contar, o que aconteceu e o que comentam.

- Comentários, comentários...

- No momento em que Mereciano, aperreado, interrompeu a tua dança com Janaina, a noite que era de lua clara foi tomada por nuvens escuras. O vento correu por toda a festa, inclusive abalando algumas barracas. No alto mar formou-se uma tormenta com raios e trovões. Quando você liberou Janaina para dançar com ele, tudo se desfez, milagrosamente. As nuvens negras desapareceram, permitindo a lua à voltar a brilhar, o vento parou e a tempestade que vinha do mar para a terra se desfez. Os comentários são que teu Orixá e o de Mereciano, em algum momento, baterão de frente, e quando isso acontecer, a natureza vai se alterar, como começou a acontecer, ontem. Isto foi profetizado pela Mãe Cida, Iyalorixá da Vila do Encantado para Tia Délia, quando você apareceu por aqui.

- Isso é bobagem.

- Apois, bobagem ou não, depois que Janaina te conheceu ela desmanchou o compromisso com Mereciano. Eles eram prometidos, desde jovens. Ele é apaixonado por ela. Apaixonado não, doido por ela. É uma pessoa boa no seu normal, mas facilmente se torna violento, passional. Todos temem a reação dele contigo. É de conhecimento geral essa história, e todo mundo ficou em suspense, quando ocorreu o de ontem. Não vá dar uma de besta.

- Mainha, no bate-papo que nós dois tivemos com ela, observei ser uma pessoa com uma desenvoltura maior do que as pessoas da cidade. É ágil no conversar e possui boas argumentações. Como é possível?

- Ela ficou órfã quando tinha uns 14 anos. Perdeu o pai na pesca e a mãe de doença, em pouco mais de dois meses. Ficou aos cuidados de sua tia Dica. A comunidade as ajudou com comida, mas passaram dificuldades. Tiveram muitos dias de precisão. Sua tia fazia parte da Legião do Coração de Jesus. Quando ia, levava a menina junto. Era uma luz no meio da velharada. Sempre alegre, bem disposta e disponível a atender qualquer um. Eu e Antônia, presidente da Legião, nos interessamos por ela. Tinha acabado os estudos que a cidade fornecia, porém, havia a professora Isabel, que também se encantava com a menina, notava que tinha um interesse e uma inteligência que a diferenciava dos outros. Nós duas, fornecendo condições para a professora Isabel, conseguimos que ela tivesse uma educação além do normal da cidade.

Quando tinha 17 anos, a Cíntia, vice-presidente da Legião e esposa do Aristides, filho do Coronel Cupertino, indicou a menina para trabalhar nos escritórios da empresa. Ele, não sabendo o que tinha na mão, indicou que trabalhasse na fábrica. A mulher foi enfática:

- Arre, na produção não, no escritório!

Começou arquivando, arrumando papelada e outras coisinhas, mas sempre mostrando interesse. O grupo precisava de gente para lidar com os computadores, que estavam sendo instalados, e forneceu cursos. Ela pegou o assunto de primeira e se aprofundou. Com o tempo conhecia, quase tanto o pessoal da informática. O contador da Empresa, o Januário, gostou do empenho da moça, a treinou e deu espaço para crescer. Hoje, ela cuida do contas a pagar e a receber. Recebe um bom salário, mora em uma casa na cidade com a tia, conseguiu sair da Vila do Encantado.

Estava providenciando enxoval, e tinha o plano, com Mereciano, de construírem uma casa na cidade, para, após o casamento, morarem. Isso tudo acabou. Essa é a história dessa moça. Peço que tome cuidado para não fazer da vida dela uma tragédia, em função desse descabeçado do Mereciano e de uma ilusão dela contigo.

O Moço foi embora depois do café, buscou um lugar distante na praia, deitou e ficou pensando tudo que Mainha contara. Passou a tarde toda: ele, seus pensamentos e a cachorra Rubi. Difícil tirar o rosto dela do pensamento. O sorriso, o encanto no falar, seus doces trejeitos e acima de tudo, o olhar quando batia no dele, ele se perdia em um rodamoinho de sentimentos.

Apareceu na festa no final da noite. Comeu algo. Dançou com Jussara umas duas músicas, em que ela ensinou alguns passos. Conversou com algumas pessoas. Viu Janaina à distância e não se aproximou. Enquanto isso, as barracas, à medida que a comida terminava, eram desmontadas, e as pessoas se retirando cedo, para o dia seguinte de trabalho ou de retorno. O que mais se ouvia eram despedidas, promessas de reencontro e convites para aparecerem por casa. Fogueiras iam sendo apagadas. Em alguns recantos, namoricos iniciados naqueles dias, aproveitavam os últimos momentos de beijos ou quem sabe de carinhos mais ardentes. Xodós ficaram nos corações e pelas areias dos coqueirais.

Moço escapuliu cedo. Foi uma noite mal dormida.

 

Ardia aquela fogueira

Que me esquentava a vida inteira

Eterna noite

Sempre a primeira festa do interior

 

11- A INAUGURAÇÃO

Mainha, Moço e Corisco acertaram que no segundo domingo, após o final da Festa do Padroeiro, fariam a inauguração. Seria às 10:00 h da manhã.

As próximas semanas foram de corre-corre, tratando de colocar de imediato uma cortina na janela da sala da frente para não permitir os olhares curiosos, e à noite, bem tarde, para não haver curiosos, transportaram uma série de caixas e objetos da mercearia de Mainha para o local. Durante o dia ouvia-se barulho de pessoas trabalhando, arrumando, empurrando, martelando, furando e conversando em tom baixo.

As mulheres seguiam para a compra de qualquer coisa na loja de Mainha, só para passarem em frente. Os homens, a caminho dos seus afazeres, desviavam a rota para darem uma vista de olhos. Ninguém sabia de nada, o segredo era total. Os empregados de Mainha, informaram que as coisas que estavam trancadas em uma sala na mercearia foram retiradas. A sala estava vazia. Na semana chegaram alguns colchões.

- Pela caixa, tinha um grandão e não sei não, uns dois ou três menor. A gente não sabe se já não tinha vindo outros antes. É putaria da grossa!

Será que “Vox populi, vox Dei”?

Contrataram Lázaro, sigilosamente, para fazer uma placa grande, para colocar na frente da casa. Ele teve que trabalhar na peça depois que os funcionários iam embora e a mantinha escondida durante o dia. Teve que jurar pela mãe, ainda viva, que não contaria e nem mostraria para ninguém. Como todo mundo sabe, mãe é sagrada.

No sábado antes da inauguração, à noite, levaram a placa e instalaram no local, porém coberta. Só seria descerrada no momento da festa. Corisco deixou um funcionário, sentado na varanda da casa a noite toda, para ninguém querer estragar a surpresa.

Na manhã da inauguração, o sol apareceu encoberto. Parecia que choveria, o que todo mundo estranhou, visto não ser época de águas. Correu o comentário de que deveria ser o Orixá de Mereciano se encontrando com o do Moço. Temeram que o tempo fechasse em vento, chuva, raios e trovões. Enganaram-se: lá pelas nove horas, o tempo abriu em um sol ardente, tendo um maravilhoso céu azul como fundo.

A cidade ficou confusa, quando viram a presença de alguns convidados, pois dependendo o que se inauguraria, seria hipocrisia do Moço fazer pouco caso das pessoas ilustres da cidade. Ele estava em um canto, observando tudo, de bermuda, camiseta florida, solta, como costumava usar, e tênis. Parecia despretensioso com o que acontecia, observava tudo com um sorriso. Seria deboche?

Os convidados eram o Padre Inácio, Antônia, presidente da Legião; Tia Délia, representando os pescadores, com seu marido Demécio; o Coronel Cupertino; e o filho Aristides, com a esposa Cíntia, vice-presidente da Legião.

O povo apareceu para apreciar a inauguração. A praça estava cheia. Surgiram carrinho de pipoca, algodão-doce, cocada, quebra-queixo e raspadinha.

Às 10:00 h Mainha, pediu que parasse a música e solicitou silêncio. Alguém gritou para que falasse mais alto.

- Povo de Areia Santa, hoje é um dia importante para a cidade. Depois da inauguração da Igreja, há bons anos, creio que este será um dos eventos que mais marcará a região. Para terminar o suspense, pedirei ao Corisco, uma das pessoas que muito trabalhou para que este dia acontecesse, que tenha o prazer de descerrar a placa que indica o momento de nascimento de algo que irá mudar a nossa cidade.

Como era um fato importante, trouxeram da capital um fotógrafo para registrar a cerimônia.

Corisco ficou surpreso. Seu Moço se aproximou dele, passou o braço por seus ombros e disse algo ao seu ouvido. Tomou coragem e puxou a corda que derrubou a faixa que encobria a placa.

 

CLÍNICA MÉDICA AREIA BRANCA

Dr. RUI CASTRO

 

Ge, esposa de Corisco, quando leu a placa, correu para o marido e o abraçou, chorando o beijou. Ele dizia a ela que não podia contar, mas, quando soubesse, ficaria contente. Ela estava com orgulho do marido. Ele a abraçou e teve que segurar as lágrimas. Os filhos correram e abraçaram as pernas dos pais.

Todo mundo de boca aberta pela clínica e emocionado pelo comportamento do Corisco, ficou quieto no primeiro momento e depois começou a aplaudir e a gritar vivas, aleluias, além dos comentários:

- Dá peste!

- Arretado!

- Diacho!

Mainha, após um tempo, solicitou silêncio novamente e falou:

- Só conseguimos esta clínica, graça ao empenho e desdobramento de uma pessoa porreta, que ninguém dava nada por ela, mas que adorou nossa cidade e seu povo e resolveu utilizar seus conhecimentos para chegarmos a isto. Essa pessoa é o Dr. Rui Castro, médico, que todos conhecem como seu Moço. Venha cá Dr. Rui.

Mais bocas abertas, cochichos, olhares e descréditos.

- Para, oficialmente, ser nosso médico, fiz um jaleco, com teu nome e quero que vista. Oficialmente Dr. Rui Castro, médico de Areia Branca.

Aplausos, para o doutor de bermuda e jaleco. Mainha pendurou em seu pescoço o estetoscópio.

- Agradeço a Mainha e Corisco, que transformaram em realidade um sonho. Obrigado. Terça-feira, começaremos a atender, a partir das 7:30 h. Inclusive, contarei com a ajuda da Jussara, da Vila do Encantado, que no passado trabalhou em pronto-socorro em Fortaleza. Juntos e em segredo, ela se preparou para poder receber a todos da melhor forma possível, portanto, solicito a ela aplausos.

Dr. Rui Castro procurou no meio da multidão e encontrou Janaina, seu rosto expressava uma alegria e satisfação, como se tivesse feito parte da implantação da clínica. Ele sorriu para ela, que retribuiu. Sentiu, naquele momento, um desejo forte de que ela estivesse ao seu lado para curtirem juntos a alegria.

- Seu padre, vamos benzer o local – pediu Mainha.

- Danou-se! Não trouxe a água benta.

- A igreja é do lado, manda buscar.

A sala principal, seria a sala de espera. Havia uma mesa para a Jussara, com seu fichário e cadeiras para as pessoas esperarem.

Os cabideiros, abajur, secador de cabelo, espingarda e sabe se lá mais o que, que o povo comentou, começaram a se mostrar. A balança para pesagem com medidor de altura, e a geladeira para bebidas estava forrada de branco e guardava medicamentos, a espingarda era um suporte de braço para medição de pressão. O secador de cabelos era suporte para soro, e a mesa que seria usada para putaria, com escadinha para subir, era para atendimento dos pacientes que precisassem deitar para serem examinados. Havia alguns velhos ventiladores, de pedestal que seu irmão enviara.

Numa das salas, pintada em cor de rosa-clara, havia uma mesa ginecológica com suportes, usada, mas em bom estado para uso, para exames das mulheres. Inclusive o Dr. Rui, que já havia conversado com dona Margarida, parteira antiga e respeitada da cidade, ao apresentar a sala informou que ela o estaria auxiliando no pré-natal e nos partos que ocorressem.

A outra sala, em verde-claro, seria onde o doutor atenderia. Tinha uma mesa, duas cadeiras e a tal mesa com escadinha.

O último quarto, com cama de casal, onde segundo a mente popular, a esbórnia ocorreria, será o quarto do Dr. Rui. Portanto, estará ele 24 horas na clínica.

- Esperamos que não seja tão necessário – falou Mainha.

Os convidados conheceram as instalações, foram servidos com caldinhos na cozinha, no fundo, onde em futuro deveria chegar um fogão a gás, e tomaram cervejas e branquinhas.

Depois, aos poucos, Corisco foi permitindo a entrada de algumas pessoas, e Mainha e Jussara mostravam o local. A visita foi até as 15:00 h, quando resolveram interromper e lembrar que estariam atendendo a partir de terça-feira às 7:30 h.

Depois, disso, Mainha convidou o Dr. Rui, Corisco, sua esposa e filhos, além de  Jussara e o marido, a parteira Margarida, para almoçarem em sua casa. Havia pedido a algumas amigas que fizessem o almoço, pois estaria envolvida na inauguração. Mesmo não sabendo o que seria inaugurado, confiavam em Mainha e se prontificaram a ajudar. Ficaram curiosas em conhecer o lugar, e tiveram a promessa de que na semana próxima seriam recebidas para uma visita.

Foi um almoço inesquecível, pois independente do bobó de camarão, da moqueca de siri mole, do peixe frito, o prato principal e com o melhor tempero, foi a alegria da missão cumprida. Muita gente gostaria de ter participado desse almoço.

12 siris moles graúdos

2 cebolas grandes picadas

4 tomates grandes maduros e firmes picados

1 molho grande de coentro picado

1 limão (suco)

2 pimentas-malaguetas maduras

2/3 xícara de chá de azeite de dendê

200 ml leite de coco

1 pitada de sal a gosto

 

12 – INÍCIO DAS ATIVIDADES

Na segunda-feira aproveitaram para limpar a casa das visitas do dia anterior, acabar de arrumar e tratar de manter tudo pronto para o dia seguinte.

Na terça-feira, às seis horas da manhã, começou a chegar gente para ser atendida. Começaram o trabalho antes das 7:30 h. Passavam por Jussara, que abria uma ficha, media peso e altura, tirava pressão e avaliava nível de diabete. Isso tudo só foi possível, com o material obtido pelos ex-colegas do Dr. Rui e do seu irmão em São Paulo. Jussara era rápida, mas havia uma demora natural no atendimento, e ela teve que obrigar o pessoal a se manter em fila e esperar pela autorização para entrar na sala, por sorte, algumas colegas suas da Legião se apresentaram para ajudar.

Para cada jovem, Dr. Rui receitava e fornecia um vermífugo. Por sorte a cidade se supria de água do Rio Itapioca, ele só esperava que a água fosse colhida em ponto sem contaminação. Aos adultos que também se mostravam abaixo do peso seguia o mesmo receituário. Quando possível, receitava tratamento, caso tivesse o medicamento na clínica ou na loja de Mainha; caso contrário iria providenciar na capital. Crianças com 4 anos ou menos, mulheres grávidas e recém-paridas informou que seriam recebidas na próxima quinta-feira pela manhã, assim como, nas outras semanas, quando não atenderia outro tipo de paciente. Mandou colocar um cartaz e a cada um que chegava na fila informava essa medida.

Apareceram dois casos de braço quebrado. Como não tinha material para imobilização, chamou Lázaro, marceneiro e informou de que material precisava. Ele conseguiu uns pedaços de madeira em tamanho adequado. Um dos braços, que já estava em tipoia há alguns dias, teve que ser quebrado novamente, para ser posto no lugar adequado. Tinha pouco material anestésico, usando-o, quando muito necessário.

Gradualmente foi atendendo a fila, nos seus mais diversos problemas. Valia-se da experiência, pois, faltavam recursos normalmente disponíveis nas grandes cidades. Todos os pacientes que precisavam ter exame colhido, foram marcados para a segunda-feira próxima, quando ele e Jussara, colheriam o material, guardaria na geladeira e despachariam no barco que recolhia as pescas realizadas. Em um esquema com a Faculdade de Fortaleza, o material seria retirado e analisado. Mandariam, depois os resultados impressos. Seu irmão, estava mandando um fax velho, o que aceleraria o processo. Quem sabe em vinte dias chegasse. Seria instalado no telefone da empresa do Coronel, conforme já acertado.

Às seis horas, encerraram o atendimento e solicitaram que todos voltassem no dia seguinte. Jussara e suas amigas, trataram de limpar as salas.

Mainha apareceu mais tarde com uma janta pronta, para o Dr. Rui e ela. Sentaram na cozinha, onde o clima estava gostoso e jantaram juntos.

- Mainha, quero montar um esquema de pré-natal. Estou pensando em solicitar a Dona Antônia e Cíntia, da Legião, que levantem informações de tudo o que é necessário para a implantação. Ao mesmo tempo, quero que obtenham informações das mulheres que estiverem grávidas, na cidade, na região e na vila dos pescadores. Podem se valer da ajuda da Tia Délia. Outra coisa, observei que as mulheres aqui não usam os modernos absorventes. Ainda se valem dos paninhos. Aliás, foi um parto tirar essa informação delas. A minha ideia é falar com o filho do Coronel Cupertino, inclusive com a ajuda de Cíntia, sua mulher, mostrar que se a Empresa fornecer esse produto, com aulas de higiene íntima que podemos fornecer, eles teriam uma redução na falta ao trabalho de funcionárias mulheres. Mainha, levanta quantas mulheres e meninas entrando na menstruação temos, quero tentar convencê-los a fornecer absorventes para todas.

- Serão dez, Dr. Rui.

- Por favor, me chama de Rui.

- Isto é um sonho se realizando.

 

Um sonho sonhado sozinho é um sonho. Um sonho sonhado junto é realidade.”

 

13 – A FILA ANDANDO

No dia seguinte, novamente havia grandes filas. Começaram às 7:30 h.

No meio da manhã apareceu Janaina, acompanhada de duas pessoas da Empresa.

- Quero conversar com o Dr. Rui.

Jussara se espantou com o pedido, olhou para uma das amigas que estava ajudando com cara de enfado e mandou esperar. Elas sabiam o que representava a presença de Janaina próxima ao Doutor. Conheciam os comentários do que ocorreria sobre no encontro dos Orixás. Não gostou nada da visita.

Quando saiu o paciente que estava sendo atendido, Jussara entrou e avisou da visita de Janaina e ele prontamente, até com um ar de alegria, mandou que ela entrasse.

- Jussara, entra também, por favor, preciso conversar com os dois – disse Janaína.

- Olá, Doutor, pelo visto muito serviço.

- Sem dúvida.

- É o seguinte, eu conversei com Dr. Aristides, sobre a possibilidade de fornecer dois dos computadores encostados e permitisse que o pessoal da empresa viesse e instalasse um na recepção e outro na tua sala. Ele concordou e estamos aqui para instalar.

Informou que se fornecessem o modelo de ficha que estavam usando, ela a poderia informatizar e com isso, usariam em conjunto e manteriam os dados no computador. Depois ensinaria como fazer back-up. E se o Doutor, dissesse o que gostaria de ter de controle, ela poderei montar esquemas para facilitar a coleta dos dados.

- Maravilhoso, Janaina. Enquanto o pessoal instala os computadores, a Jussara te mostra a ficha, se puder, depois, me dar alguns momentos de atenção, te digo o que quero controlar, como catarata, gravidez, pré-natal, pós-parto e tratamentos específicos.

O pessoal, na espera, achou ruim, pois levaram uma hora e meia em reunião. A conversa para o Rui foi proveitosa, pois as ideias apresentadas pela Janaina eram ótimas, fora o fato de a ter tido próximo de si, sentindo seu cheiro, o calor do olhar, a embriaguez do sorriso.

Rui lhe contou da abordagem que queria ter na Empresa, sobre os absorventes, achando ótima a ideia Ficou de ajudar, marcando um horário, de preferência com alguém que se sensibilizasse com a ideia.

No dia seguinte, Janaina apareceu com o modelo da ficha a ser utilizada e liberou algumas planilhas de controle para o Dr. Rui. Mal sabiam eles, que essa aproximação aceleraria o conflito entre Mereciano e o Doutor.

Quatro dias depois, Janaina marcou uma conversa para o Doutor, participando, também, de uma conversa com o contador, velho Januário, com quem já havia trocado ideia sobre os absorventes, com ele resolvendo abraçar a causa. Januário tentaria aprovação no gasto por três ou quatro meses para poderem avaliar os resultados.

Na quinta-feira, com a lista de mulheres grávidas e somente atendendo crianças até quatro anos, com a ajuda de Jussara, Antônia e Cíntia, esquematizaram o pré-natal, acompanhamento das crianças e iniciaram o trabalho com essa faixa de pacientes.

 

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração       

 

14 – A BATALHA DOS ORIXÁS

Eram oito horas da noite, quando Caetano, desesperado, veio bater à porta da clínica. Sua mulher, Rosário, grávida e que estava participando do pré-natal, teve, prematuramente, a bolsa estourada e entrou em trabalho de parto. O Dr. Rui Castro, pegou o material necessário, subiu em seu carro e passaram para pegar a parteira Dona Margarida e nas carreiras seguiram para a Vila do Encantado. Caetano morava no meio da vila, com isso, acabaram passando em frente à casa de Mereciano, que estava sentado à porta.

O Doutor e a parteira examinaram a parturiente e verificaram que o parto estava próximo, mas, ainda não era o momento. Dona Margarida, disse ao doutor que acompanharia no quarto e quando fosse o momento o chamaria. Caetano quis ficar com a esposa. A sogra de Caetano serviu um café ao doutor e este resolveu sentar em uma cadeira, na varanda da casa. A noite estava calma, uma leve brisa vinha do mar e uma lua escancarada a tudo iluminava, branqueando os telhados, as palmeiras e a areia.

Mereciano quando viu o veículo passando, imediatamente se deixou tomar pelo ódio. Como era possível esse fio de uma égua vir a vila, passar em frente à sua casa. Só sentia ódio. Invocado, decidiu tirar satisfação e resolver aquela questão. Pegou sua peixeira e foi. Quem o viu passando, notou sua expressão alterada, os olhos saltados, a boca rígida, as narinas salientes e ódio, ódio nos olhos. Só havia um pensamento em sua cabeça, ela não será minha, mas dele também não. Vou acabar com esse sujeito.

O vento, que em brisa estava, foi aumentando a intensidade, levantando areia, transformando o mar calmo em ondas fortes, que avançavam sobre a praia, balançando os barcos apoitados, uivando sob os telhados, batendo portas e janelas. No horizonte, em alto-mar, nuvens negras se formaram, vindo rapidamente para o continente, encobrindo a noite enluarada, transformando a noite em escuridão total. Raios começaram a cair acompanhados de fortes trovões e chuva.

Mereciano andava na chuva com a peixeira na mão. Muitos saíram à porta, mal o viam, pela escuridão e pela chuva, só conseguiam perceber, de tempo em tempo, sua silhueta pelo brilho dos relâmpagos. A seu lado seguia o orixá Logum Edé, com sua roupa rodada nas cores azul-turquesa e amarelo-ouro. Trazia em uma das mãos a Balança Ofá (arco e flecha) e na outra o Abebe (leque com espelho), fruto da sua dualidade e contradições. Pessoas foram saindo das casas, no meio da tempestade, e os capazes de enxergar, para acalmar o orixá, saudavam:

- Logun ô Akofa!

Mereciano, se aproximou e gritou para o doutor:

- Sai, vamos resolver nossa questão, não seja frouxo!

Tia Délia, sentido, pela natureza, que havia chegado o momento que tanto temia, correu para fora e implorou a Mereciano, no meio da tempestade:

- Meu filho não faça isso. Depois, tu vai se arrependê.

Quis correr em direção dele, mas o marido a segurou, ao ver o quanto ele estava alterado. Temeu por ela.

Com a chuva mal se via o que acontecia, o relampejar, de tempo em tempo, permitia ver a peixeira em riste, pois nela refulgia o brilho dos relâmpagos e no momento em que o doutor saiu do alpendre se dirigindo para Mereciano.

 Nisso, fazendo frente a Logun Edé surgiu Obaluaiê, o Orixá das doenças, epidemias e da cura, com sua vestimenta de palha e búzios. Trazia em uma das mãos o oxaxará, ferramenta com a qual varre as doenças do mundo e na outra oxi, sua lança de caça, para espantar as energias ruins. Veio para proteger o doutor.

Os dois se enfrentam, no meio da natureza em ebulição.

Logum Edé na sua vaidade, às vezes, podendo às vezes ser doce e benevolente, é um deus da surpresa e do inesperado e Obaluaiê, temido por reger a terra, por ser responsável por tudo que dela nasce e pela morte. Era o conflito, temido e contado de boca em boca, que um dia aconteceria. Havia no ar tensão e um cheiro de queimado. O vento adentrava às frestas das casas e em rodamoinhos movimentava a areia, fustigando os que estavam ao tempo.

Mãe Cida, em seu terreiro, sentiu o que ocorria, levantou do trono e deitou-se em frente ao altar e clamou pelos Orixás para acalmar os encantados.

- Ólodúmaré Asé!

As êbomin, a ekedi, as iaôs, que por lá estavam, seguiram a Iyalorixá. E clamaram por Iansã, que tem o domínio dos ventos e das tempestades:

- Eparrei Oyá!

A água da chuva, escorria por todo corpo de Mereciano, o ódio vertia dos olhos, enquanto o doutor, preocupado com a paciente, mas tendo aquela questão o envolvendo, e o lançando em direção ao pescador, quando, nisso, aparece Caetano à porta da casa e grita:

- A criança tá nascendo tão precisando do doutô. Corre, tão te chamando.

Mereciano para, ouve aquele apelo desesperado de Caetano, seu primo, e passando por sua cabeça a imagem de Rosário, sua companheira de infância, seu braço enfraquece.

O lado benevolente de Logun Edé reage ao ouvir o apelo do nascimento. Obaluaiê faz sinal de querer entrar na casa, deixando o outro Orixá na intempérie.

Logun Edé age junto a Mereciano. Ele larga a peixeira no chão e foge tomado pela vergonha, chorando e gritando consigo mesmo. O vento para de soprar, a chuva amaina, as nuvens se retiram e a lua desponta no céu, trazendo uma noite de placidez e beleza para receber o recém-nascido. Obaluaiê se vai.

O Doutor que havia pedido uma roupa de Caetano, para substituir a sua, e atender a paciente, após um tempo, sai é grita:

- É um menino.

É um viva geral. Caetano, distribui cachaça entre os que ali estão.

Tia Délia, corre para casa. Mereciano não estava mais. Ele havia pegado alguma roupa e dito à irmã que pedisse desculpa para a mãe e o pai. Ela sabia que deveria estar embarcando no barco dos peixes da madrugada e seguindo para a capital.

 

“Caviongô santas almas do axé
Pai Omolu que chegou pra benzer
Atotô
Obaluaiê

Caviongô santas almas do mar
Pai Omolu que chegou pra dançar
Atotô
Obaluaiê”

 

15 – ZUNZUNS

Nas semanas seguintes, a noite da tormenta era o comentário principal: na venda de Mainha, na Vila do Encantado, entre os pescadores, nas empresas do Coronel Cupertino, nos currais de cabras, nos plantios de mandioca, nas colheitas do babaçu e da carnaúba, na fila da clínica, entre os amantes nos coqueirais.

Os que foram capazes de enxergar guardaram os comentários para os iniciados. O povaréu, pelo contrário, contava o que alguém viu, ou alguém que ouviu, de alguém que escutou de alguém que viu. E como diz a sabedoria popular, quem conta um conto, aumenta um ponto.

Contava-se que a peixeira de Mereciano, que a ergueu no ar para desferir no Doutor, mas foi detida pela mão de um encantado. Os raios que eram desferidos pelo Obaluaiê, contra Logun Edé, que os detinha com o Ofá. A presença do Ólodúmaré que apaziguou os orixás e acalmou o coração de Mereciano. Eram mil histórias, fantasiosas, no geral, e muito pouco próximas do real.

Como o assunto fez mesa entre os pescadores, a notícia correu toda a costa. Cordelistas de grande estofo, apresentaram em seus versos o “Grande Embate”, “Batalha dos Orixás”. Esses cordéis, fizeram sucesso nos mercados do litoral Norte e Nordeste. Estavam tanto no Mercado de Ver o Peso em Belém, como no Mercado Modelo em Salvador. Na feirinha Beira Mar de Fortaleza e na José Avelino, por muito tempo, o cordel da “Guerra dos Orixás” foi o mais procurado. Foi um dos temas mais cantado e recantado, entre os poetas do Sertão do Pajeú.

Enquanto isso, no meio de todo esse palavrório, Areia Santa, foi voltando ao seu dia a dia. O assunto foi se recolhendo às mesas dos botecos e na falta de assunto das conversas diárias. As filas se fizeram presente na porta da clínica, os pescadores saíram para o mar, o entre e sai da loja de Mainha, a molecada jogando bola, as missas do Padre Inácio, as beatas da Legião Coração de Jesus, os empregados do Coronel Cupertino, a vida seguindo o seu diário.

O Dr. Rui Castro, iniciava o expediente às 7:30 h, quando dava, parava para almoçar, na casa de dona Nena, ou ela levava, os pratos embrulhados em uma toalha de mesa. Dizia:

- Vosmecê precisa come bem pra tê saúde, pra atende os que não tem saúde.

Como as filas foram diminuindo, o Dr. Rui conseguia muitas vezes parar entre as quatro e cinco da tarde. Quando acontecia, colocava um calção e com a cachorra Rubi corria na praia e depois entrava no mar, nadando por um tempo. As moças, gostavam de encontrá-lo nessa jornada para apreciarem sua beleza e físico.

Após um banho, seguia para o comércio de Mainha, sentava em uma das mesas de frente para a praça, tomando um suco ou uma cerveja, comendo o prato do dia. Podia ser uma galinhada, bobó de camarão, peixe frito, sarapatel, perna de cabrito.

Mainha havia, recentemente, trazido de São Paulo, Zuza, cearense de Sobral, que trabalhou em renomados restaurantes como Le Casserole, Cantina do Marinheiro, Lellis Trattoria e outros mais. Até sushiman, no bairro da Liberdade, em São Paulo, ele fora. Quem o indicou foi Januário, contador do Coronel Cupertino, seu primo, que sabia que Zuza queria voltar para o Ceará e viver em uma cidade tranquila, com a mulher.

No final do dia, vários empregados das empresas do Coronel, por ali apareciam e se regalavam com o prato que Zuza preparava para a janta. No almoço, não havia movimento, pois, o pessoal comia nas empresas.

Dr. Rui Castro, tinha uma mesa reservada, em um dos cantos, onde podia apreciar a praça, ver e escutar o mar. Mainha, normalmente, sentava um tempo com ele e conversavam, quando não jantavam junto. Falavam de tudo, mas tinham uma especial preocupação com a saúde da cidade: vacinação, a vinda de um barco da Secretaria da Saúde, com estrutura para atendimento dentário e oftalmológico, medicamentos, ortopedia e por aí iam. Eram muitas ideias, que gradualmente, conseguiam que fossem realizadas.

Quem aparecia no final de dia, ocasionalmente, era Janaína na volta do trabalho. Sentava-se com Mainha e o doutor e também participava de várias dessas ideias. Mainha, muitas vezes, saia da mesa e deixavam os dois conversando. Dava gosto de ver a conversa alegre, a troca de olhares amorosos. Para Mainha, estava claro que ambos estavam apaixonados.

- Dr. Rui, como veio parar aqui em Areia Santa? – perguntou em uma das ocasiões Janaína.

- Uma hora dessas eu te conto.

Porém, numa dessas conversas, Mainha contou ao doutor que teve conhecimento por um morador da Vila do Encantado, que pescadores encontraram Mereciano no cais em Fortaleza, e que em alto e bom tom, falou que voltaria a Areia Santa para levar Janaína, caso contrário a mataria e ao doutor, pois, não podia imaginar os dois vivendo juntos.

Mainha, salientou que não colocava fé na informação, por quem havia vindo. Agostinho, no seu meio, é uma pessoa que não goza de confiança no que fala. É alguém amargurado com a vida, pelos insucessos que teve no amor e no trabalho, e sente prazer em ver pessoas desnorteadas e sofrendo, com os boatos que gosta de repassar.

- Porém doutor, é conveniente tomar cuidado. Cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Vou repassar essa informação para Janaína – ressaltou Mainha.

A informação ficou martelando na cabeça de Rui. O temor não era por ele, mas por Janaína. Não se perdoaria se algo acontecesse com ela. Bastava, a dor da perda que sofreu de um ente querido, aos seus cuidados.

Com isso evitava Janaína e não dava espaço aos sentimentos, que sabia que nutriam pelo outro. À noite, o sono se tornava difícil com a lembrança de seu sorriso, dos olhos, dos lábios dizendo seu nome.

Janaína, por seu lado, também sofria. Procurou Mãe Cida e pediu que jogasse os búzios. Ela dizia que haveria uma grande reviravolta em sua vida. Não conseguia prever se seria algo bom ou ruim. Com isso, Janaína continuava na angústia em relação ao doutor e a Mereciano.

Passado mais de dois meses do acontecido com os encantados, Mainha apareceu em meio à manhã na clínica, nervosa interrompeu a consulta que Dr. Rui estava fazendo e contou:

- Mereciano acabou de desembarcar. Foi para a casa da mãe. Vou providenciar um pessoal para te proteger.

- Não quero nada disso. Tomarei cuidado.

No dia seguinte da chegada, Mereciano seguiu para a clínica.

- Quero fala com o dotô.

- Está atendendo, quando acabar o senhor entra – respondeu Jussara.

Entrou apavorada na sala de atendimento e informou o doutor da visita. Ele tratou de acalmá-la e que logo a seguir o atenderia. Jussara, deu um jeito de mandar recado para Mainha, mas, esta já sabia, pois muitos o viram indo para a clínica. Tratou de seguir para lá levando, dois dos seus funcionários que eram pau para toda obra.

O homem que diz “dou” não dá

Porque quem dá mesmo não diz

O homem que diz “vou” não vai

Porque quando foi já não quis

O homem que diz “sou” não é

Porque quem é mesmo é “não sou”

O homem que diz “estou” não está

Porque ninguém está quando quer

Coitado do homem que cai

No canto de Ossanha, traidor

Coitado do homem que vai

Atrás de mandiga de amor

 

16 – O ENCONTRO

Janaína, que estava no escritório da empresa do Coronel Cupertino, onde trabalhava, recebeu o recado da ida de Mereciano para a clínica. Ficou em grande desassossego. Recolheu-se a um canto e rezou para sua protetora, Iemanjá.

Tia Délia, o viu saindo, não sabendo para onde ia. Contara, na noite anterior, que viera para solucionar um assunto pendente. Queria dar um fim nele. Quando contaram para onde o filho fora, ela acendeu uma vela e se ajoelhou em frente ao pequeno altar que tinha em casa. Lá estavam Iemanjá, Olodumaré e em um espaço especial Nossa Senhora e o grande Oxalá, Jesus Cristo.

Corisco, que estava com Mainha, tratou de pegar sua peixeira e com ela foi para a clínica. Oxente, lembrou todo o trabalho que tiveram para preparar a casa e montar a clínica. Tudo não poderia ir água abaixo, devido a uma pessoa. Estava pronto para o que desse e viesse.

Um povaréu se formou na praça. Mainha se postou na porta e não deixou ninguém entrar, só o Corisco que foi ver se estava tudo bem. Mereciano aguardava na sala de espera. Várias pessoas, que aguardavam sua vez, apresentavam olhares de preocupação. Mereciano parecia tranquilo.

Quando a pessoa que estava sendo atendida saiu, Corisco entrou rapidamente na sala.

- Doutô, qué que eu fique aqui junto do sinhô.

- Não Corisco, obrigado. Fique tranquilo, tudo vai terminar bem.

Jussara fez Mereciano entrar na sala, logo a seguir puxou seu terço e começou a rezar.

- Olá, Mereciano, tudo bem? Sente. Em que posso te atender?

- Doutô foi mal, aquela noite eu tava com os olhos cheios de ódio. Tu não tinha feito nada pra tirá Janaina d’eu, não tinha culpa das coisas. E se o coração da Janaína parou de batê por mim, também não posso fazê nada, ninguém manda no coração de ninguém. Nesse tempo fora, eu passei a frequentar o Terreiro de Mãe Dulcimar, onde tenho participado ativamente. Lá eu pude me aconselhá e pensá. Acabei sabendo que tem fuxico que eu vou volta prá matá os dois. Fica sabendo que isso não vai acontece. Num posso muda o sentimento de ninguém, não posso matá uma pessoa que ainda tenho muito querê. Me desculpá.

Rui viu um homem, falando com a sinceridade do coração. Quanto deve ter sofrido! Como deve ter sido difícil vir falar com ele, ser observado por toda a cidade. É um homem bom, que ficou cego pela paixão. Sentimento que não permite ver a realidade, mas somente o que as emoções desejam. Teve vontade de levantar e abraçá-lo, mas por aqueles lados, abraço de homem para homem, só com o pai, filho, casamento e velório.

- Mereciano, eu lhe quero bem, pode contar comigo.

Quando ele saiu, houve um desafogo entre as pessoas. O viram descer a praça, com os ombros caídos, mas com a cabeça levantada. Tinha outro olhar, de paz consigo e com seus santos. A praça se esvaziou, só os comentários é que não.

Mainha entrou na sala do Doutor e este contou a conversa que tiveram. Ela se sentiu aliviada, pois, estava numa gastura danada. Agora, não via a hora de encontrar Janaína e contar o que houve. Ela precisava se libertar do medo, do temor.

 

Você que sabe demais

Meu Pai mandou lhe dizer

Que o tempo tudo desfaz

A morte nunca estudou

E a vida não sabe ler

 

17 – O AMOR

Nos dias seguintes, Areia Santa parecia uma cidade mais alegre e cheia de luz. Pelo menos aos olhos de Janaína e Rui. Janaína passou a aparecer todos os finais de dia na mercearia, para conversar com Mainha e principalmente com Rui. Agora, além dos risos, dos olhares, havia pequenos toques de mão. Havia uma cumplicidade nos seus encontros. Eles irradiavam felicidade. Entretanto, uma barreira se colocava entre eles: pelo respeito, pelo receio, por várias razões que a razão não conseguia explicar. Havia uma tênue separação, composta de conceitos que necessitavam ser jogados por terra. Eles inclusive se tratavam com formalismo.

- Doutor, estou encasquetada, como veio parar aqui em Areia Santa? – pergunto Janaína.

- Eu tinha um consultório em São Paulo com uma boa clientela. Era casado. Cresci profissionalmente. Tinha financeiramente, uma boa situação. Meu sogro, também era médico, e me apoiou muito em minha carreira. Tudo ia maravilhosamente bem. Tivemos um filho, Samuel. Quando, com sete anos, ele rapidamente adoeceu. Era meningite aguda, mesmo tendo sido vacinado quando pequeno. A doença evoluiu rapidamente. Meu sogro, que estava em viagem, retornou rapidamente. Quando chegou, não havia o que fazer. Em quatro dias faleceu.

- Perder um filho é uma dor muito grande. Imagino quanto maior, por ele estar em tuas mãos.

- Janaína, nesse momento, começou o grande calvário de minha vida. Minha mulher me culpou pela morte, mesmo meu sogro tendo dito que eu havia feito tudo corretamente. Fora uma fatalidade. Eu também comecei a me culpar, tentando encontrar no que errei. Eu o adorava. Minha vida girava em torno dele. Brincávamos, corríamos e riamos muito. Minha mulher, em alguns momentos ficava enciumada pela atenção minha ao garoto e a retribuição dele. Quando ela o perdeu, sentiu o quanto deixou de dar e que não mais poderia fazê-lo. O sentimento de culpa que caiu sobre ela foi canalizado para mim. Tornou-se fria, seca, chorando pelos cantos e manifestando que eu havia matado seu filho. A separação aconteceu, deixei tudo para ela. O casamento durou mais de 10 anos, foram anos maravilhosos. Eu não quis nada do que tínhamos.

Eu mal comia, morria aos poucos, não tinha vontade de viver. O sentimento de culpa em mim era maior que a razão, eu me considerava o principal responsável, apesar de todos dizerem que fora uma fatalidade. Eu pensava que deixara a vida de meu filho escapar pelas minhas mãos. Só pensava onde e quando eu errara. Não queria sair de casa. Não queria viver. 

Pouco a pouco, com ajuda de meu irmão e de amigos médicos e psiquiatras, fui saindo do buraco em que me meti. No início, por meio de medicamentos para controlar a depressão, vitaminas para repor o que perdia, e as injeções para recompor minha condição física, foram aos poucos me tirando daquela letargia, do desânimo que me dominava. Foram oito meses para sair do inferno e retornar à vida.

O medo de sair de casa foi sendo suplantado, a vontade de morrer, foi sendo substituída por pequenas alegrias que a vida me apresentava, no amor das pessoas, no apoio, na vida que se mostrava a minha volta, na natureza que sempre adorei.

Resolvi, após longas conversas com meu psicólogo, meu irmão e minha cunhada (que tinham receio das minhas reações), sair de viagem. Decidi correr o país pelo litoral, pois, sempre fui amarrado no mar e me deixar levar. Ser o que a vida viesse a me oferecer.

No Espírito Santo, encontrei uma comunidade budista, onde fiquei um bom tempo. Aprendi a me reequilibrar, a meditar, o que tem me ajudado.

Assim, após dez meses, cheguei por aqui. Encontrei, neste local, uma paz que me reconforta, e pessoas amigas. E agora um objetivo de vida.

Lágrimas se formaram nos olhos de Rui, que contava isso tudo olhando para o infinito. Ao terminar, volveu seus olhos para Janaína, com um olhar de quem pedia desculpa a vida, e encontrou no dela, lágrimas e um sorriso de compreensão. Ela se levantou da cadeira, deu a volta à mesa, pegou seu rosto entre as mãos e delicadamente depositou um beijo em seus lábios. O abraçou, prendendo sua cabeça em seu peito e com um carinho na cabeça, disse:

- Tu é um homem bom, um homem de amor.

Fez um carinho em seu rosto e saiu. Mainha, que tudo via, à distância, tinha os olhos marejados e um sentimento de amor que queria explodir em seu peito. Desejou ardentemente, que o doutor fora feliz e tinha certeza que Janaína era a mulher indicada para ajudá-lo.

 

Ouve como o silêncio

Se fez de repente

Para o nosso amor

 

18 – OBALUAIÊ

O Padre Inácio, resolveu com as mulheres da Legião, fazerem uma quermesse, seria em um final de semana que tinha um feriado na segunda. Era necessário angariar dinheiro para uma série de reparos a serem feitos na igreja.

A cidade vivia um clima tranquilo. Três meses se passaram desde a noite fatídica.  Um barco, com estrutura para atendimento dentário e oftalmológico, estava certo que viria no próximo mês e ficaria uma semana e meia aportado na cidade. A notícia correu entre a população, inclusive do arredor.  Mainha, ficou responsável por estruturar o atendimento do pessoal de bordo, em relação ao almoço e jantar. Ela e o Rui estudavam o esquema que fariam para viabilizar os óculos, que fossem prescritos.

O momento, pensou Padre Inácio, era propício para uma quermesse, com bingos, barraquinhas de comidas e um belo arrasta-pé. Mainha ofereceu, por sua conta, a contratação do grupo musical. A população se reuniu para preparar os enfeites.

A notícia correu pelo litoral, da mesma forma que a festa do padroeiro, muitos vieram e acamparam nas proximidades. Com isso, a cidade foi tomada de alvoroço com tanta gente, já no início da semana da quermesse.

Houve pessoas, que aproveitando a vinda a Areia Santa, resolveram se consultar com o Doutor.  Diziam que além de bonito, era bom no que fazia. Rui teve uma semana atribulada, mal vendo Mainha, que estava envolvida nos preparativos, inclusive de salgados e doces para venda nas barraquinhas. Sua casa fora tomada por mulheres, tanto da Legião, como não. Janaína, também evaporara.

No sábado do início da quermesse, Rui teve bastante trabalho, inclusive, avisou que atenderia domingo à tarde. Pensou em resguardar a manhã de domingo, pois desejava se divertir na quermesse.

À noite, se preparou. Fez a barba, tomou um belo banho e se perfumou. Colocou uma roupa passada e que sabia que lhe caía bem. De repente parou e percebeu, que estava fazendo tudo aquilo porque queria encontrar Janaína e impressioná-la.  Pensou: que sem-vergonha estou sendo e riu.

Se o Doutor se preparou, Janaína, não ficou por menos. Quando a viu, conversando com algumas pessoas, acreditou ter visto um anjo caído do céu. Seu coração disparou e sentiu um vazio no estômago. Como poderia ser? Estava cansado de se encontrarem. Ela estava simplesmente linda. O cabelo solto com uma tiara enfeitada de pequenas flores, um vestido branco, tomara- que-caia, ressaltando a beleza da sua pele, que contrastava com o branco da vestimenta, um olhar cheio de brilho e um sorriso que cabia o que há de bom no mundo.

Como se houvesse um ímã os atraindo, foram ao encontro um do outro com sorrisos de alegria.

- Pensei que o Doutor não viesse, com tanto serviço que está tendo.

- Não poderia perder a festa, fora que não teria a oportunidade de te ver tão linda.

Ela corou, lhe deu a mão e o puxou rindo e falando:

- Bora ver as barracas.

De mãos dadas, passaram por elas, cumprimentando, fazendo um gracejo, beliscando alguma das guloseimas. Em uma barraca, meninas, vendiam pequenos cravos feitos de papel. Lindos, pareciam originais. Rui comprou um e colocou no cabelo de Janaína.

- Não há lugar melhor para ficar.

Os dois já eram o grande comentário da noite. Foram dançar. Dançaram duas músicas seguidas. Foram até a mesa de Caetano e Rosário, que levavam o pequeno Rui (puseram seu nome em agradecimento) nascido na tão falada noite. Estácio e Jussara estavam juntos. Com Jussara tentou uma dança, e ela lhe deu, novamente, um nó nas pernas. Foi só risada.

Uma sequência de músicas lentas começou a ser tocada. Com Janaína foi dançar. Rosto com rosto, corpo com corpo. O perfume dela. O perfume dele. Olharam-se nos olhos e se beijaram. Aquele momento era como se a música fosse só para eles, o brilhar das inúmeras lampadinhas serviam para expor seus rostos e o brilho dos olhares, a brisa envolvendo os cabelos de Janaína como uma carícia. A mão dele pressionando levemente suas costas. O roçar dos seios e das pernas de Janaína mostrava ser realidade e não sonho o que acontecia. O mundo parou só havia eles. A festa era deles. Assim parecia, pois, algumas pessoas, pararam de dançar e se encantaram com o querer dos dois.

Rui pegou sua mão e a tirou da dança e saíram caminhando, com o braço em torno de seu ombro. Foram para a casa do Doutor. Ela entrou como que realizando um sonho de algo que sempre ansiou. A levou para o quarto, a abraçou, beijou nos lábios entreabertos, onde línguas se tocaram e sabores novos foram provados. Ela desabotoou sua camisa, que foi ao chão, e correu a mão pelo peito, ombro e pescoço. Pequenos beijos foram depositados. Ele soltou seu vestido, que escorregou pelo corpo, depositado aos pés. Lá estava ela, linda, maravilhosa. Pequenos seios e mamilos intumescidos. Beijos, carícias. Sua mão desceu e lentamente foi retirando a calcinha branca que vestia. Um pequeno novelo cobria seu sexo. Ela tirou o restante da roupa e observou a beleza do seu corpo e seu sexo, mostrando firmemente o desejo que o tomava. Deitaram na cama, ao longe ouvia-se o ruído da festa, mas, entre eles só se ouvia as palavras e os gemidos de desejo. Lentamente a possuiu. A marca do momento: uma pequena mancha no lençol. Foram da terra ao céu. Beijavam-se e sorviam seus corpos, matando a sede de desejo e amor a tanto tempo represados. O mundo se bastou entre as paredes daquele quarto.

 

No terreiro de Mãe Cida, começaram o som dos atabaques, do adja, o repique do agogô e o abê. As êbomi e as abiã, iniciam o acompanhamento nas palmas. Os filhos e filhas do terreiro, com suas guias, nas cores de seus orixás, se põem a dançar, dispondo o cavalo para ser montado pelo santo. Vão sendo incorporados.

De repente Obaluaiê aparece com sua vestimenta de palha e búzios, o azó-iko e dança opanijé. Saudações são exclamadas:

- Atotô Obaluaiê!  

Veio comemorar. Pipocas são lançadas.

Para mais alegria da festa, Iemanjá também incorpora, com seu abebé nas mãos.

É a alegria por Janaína, de quem é madrinha. Também veio festejar.

- Odoia, Yemanjá, odoia

A noite é de festa, os orixás estão felizes. A lua branqueia a areia e as águas do mar. Os barcos no seu doce balanço, parecem criança em colo de mãe. Noite calma. Brisa leve.

- Saravá!

O canto continua:

- Vou chamar minha mãe, eu vou. Vou chamar minha mãe, eu vou. Na beira do mar.

Vou chamar minha mãe, eu vou. Vou chamar minha mãe, ela é Iemanjá, a rainha do mar.

 

 

 

domar