Esta
história, transcorre em finais da década de 1970, em Areia Santa, cidade que
serviu de cenário para o conto “Quem Comeu Mainha?”. Nesse conto, o meu
colega escritor, ao escrevê-lo, não se manteve, simplesmente, na transcrição
dos fatos, mas, tomou partido da personagem. Comportamento que não concordo. Mas,
isso, são águas passadas.
Areia Santa,
cidade de menos de 3000 almas, como costumavam dizer na região, situada na
costa norte do Ceará, próxima do Piauí, há quatro horas de ônibus de Fortaleza,
por um bom pedaço de estrada de terra. O ônibus, que pouco tempo atrás, só
fazia esse percurso uma vez por semana, atualmente o faz duas vezes.
A cidade,
cresceu de uma vila de pescadores, sendo um lugar paradisíaco, com suas praias,
dunas, coqueirais e remansos de águas, que se formam no deságue do rio Itapioca,
que desce da Serra de Ibiapaba, junto ao mar.
A população,
na sua grande maioria, vive da pesca, enquanto outros nas fazendas de cabras ou
nas plantações de milho, mandioca, banana, babaçu, carnaúba ou nos grandes
coqueirais. Quase a totalidade dessas atividades, nas mãos do Coronel Cupertino.
Esporadicamente, em suas praias surgem alguns turistas, inclusive grupos de hippies. Acampam na areia, pegam água no rio e muito pouco aparecem pela cidade. Fazem suas festas, seus banhos de mar, muitas vezes pelados, gerando comentários na cidade e assanhamento nos mais jovens, que se escondem atrás das dunas, para observá-los e fantasiar suas vidas.
Raramente algo de novo acontece na cidade, porém, em breve será cenário de forte conflito entre orixás, abalando a mesmice do dia a dia.
Repentinamente,
no meio da manhã, debaixo de um sol escaldante, quando a cidade mais parece
fantasma, uma caminhonete cinza, toda suja de terra, com uma boa parte da
caçamba com carga, deu uma volta na praça, seguiu em direção ao bairro do Encantado,
vila onde a maioria dos pescadores mora, passou por ele, pegou um pedaço de
praia, seguiu um bom trecho e depois retornou. Na praça parou em frente ao
principal estabelecimento.
Era um
indivíduo de olhos azuis, 1,70 cm, aparentando uns 40 anos, cabelo castanhos, necessitando
corte, assim como a barba. Bermuda suja, óculos escuros, boné, camiseta sem
manga e botina desgastada nos pés. Um
sujeito apetrechado, como dizem na região.
- Bom dia,
seu Moço, meu nome é Mainha, no que posso te ajudar? Está perdido por estas
bandas?
O Moço
encostou no balcão, tirou o chapéu e os óculos e ficou admirado pela beleza da
Dona Mainha.
Devia ter,
aproximadamente, a sua idade. Era um pouco mais baixa que ele, cabelos pretos, lisos
até os ombros, pele jambo, olhos negros com o brilho de um dia ensolarado. Os
lábios, possuíam um sorriso encantador, com a medida certa para um beijo.
Vestido ajustado, mostrando o ondeado do corpo, um pequeno decote transmitindo
sensualidade.
Mainha,
observou, que ele era um pouco mais alto que ela, pele morena queimada do sol,
olhos azuis roubados do mar e nos lábios, constantemente pendurado, um sorriso.
Parecia um anjo.
Mainha era
uma mulher vivida. Tivera uma tórrida paixão durante um tempo de sua vida,
apesar de um amor profundo por Deoclécio, seu marido. Para quem tiver a
curiosidade de saber mais, basta a leitura do conto “Quem Comeu Mainha?”
Seu marido,
morrera há cinco anos, deixando o estabelecimento, onde de tudo se vende,
mantimentos, bebidas, medicamentos, defensivos, veterinária, ferramentas, o que
se fizesse necessário. É o ponto principal da cidade onde Mainha reina. É a viúva mais desejada.
Os olhares
se cruzaram e simpatizaram, um com o outro.
Mainha avaliou: esses olhos azuis guardam no fundo uma dor escondida.
O moço
pensou: Mainha tem pequenos sulcos no rosto, marcas de momentos sofridos, que
imprimem como em ferro, sinais da sua passagem. O que a faz mais lindas, é,
eles estarem cobertos com camadas de alegria e simpatia, maquiando o passado e
a fazendo mais linda. Seus olhos transmitem bondade.
Voltou a
perguntar no que podia lhe atender. Ele contou estar viajando, sem compromisso,
pelas praias do nordeste. Gostaria de saber, de um bom lugar, para encostar sua
caminhonete e usufruir da natureza e do sossego, não incomodando ninguém.
Indicou que
passasse pelo lado da vila dos pescadores, alcançasse a praia e seguisse à
direita, por uns dez minutos. Estaria na desembocadura do Rio Itapioca, com
isso teria água fresca e limpa, para beber e tomar banho.
Ela lhe
ofereceu café e uma broa de milho. Ficaram em um bate-papo de amenidades. De
ambos os lados sorrisos e gracejos. E um sentimento de empatia.
Todos esses
detalhes correram a cidade. Tão logo,
ele parou no estabelecimento de Mainha, ajuntou molecada e várias pessoas,
foram até o estabelecimento comprar um nada, só para assuntar, e os comentários acabaram correndo.
Não se falou
outra coisa, no colo quente dos fuxicos, no diz que diz, de quem nada tem a
dizer e muito pouco sabe do que diz. Na cidade e na Legião do Sagrado Coração
de Jesus, onde Mainha participava, partidos foram tomados. A grande maioria a
defendia, mas as despeitadas, as secas de amor, aproveitavam para a desmerecer.
Diziam, no
passado ter tido caso com um advogado, sendo do conhecimento do marido, coisa
de pouca-vergonha. Mas, ninguém viu e ninguém, conhece alguém que viu. Dizem,
que é conversa de mal comidas.
O assunto
diminuiu de ritmo, pois o Moço ficou um bom tempo longe da cidade. Algumas
solteiras, a contra mando das mães, se juntaram, e atrás das dunas foram
observar o querubim (era por algumas assim chamado). Viram, ele ficar um bom
tempo sentado em uma esteira com as pernas cruzadas, olhos fechados, como que
pensando. Mesmo quando sua cachorra latia
ele não se mexia. A alegria delas é
quando tomava banho nu, no mar ou no rio
Sim, tinha
uma cachorra. Conforme quem contava, variava de tamanho. Falaram, que quando
chegaram perto, ela rosnou e mostrou os dentes pontiagudos, protegendo-o. Era
branca com manchas marrões, uma pele, por baixo da pelagem, avermelhada, e
tinha em volta dos olhos, linhas negras como maquiagem. Diziam ter cara do
demo. Seu nome era Rubi.
“É Zun,
zun, zun, zun, zun, zun capoeira mata um,
Zun, zun,
zun, zun, zun, zun, capoeira mata um
Zun, zun,
zun, zun zun, zun, diz, que diz mata um”
2 - ORIXÁS
Em um dos
dias, o Moço, parou na Vila do Encantado, bairro dos pescadores, querendo
comprar peixe. Os homens, estavam na lida, no mar. Alguma das mulheres,
atraídas pelos comentários ouvidos e com certo assanhamento, se aproximaram, dando
informações desencontrada na venda dos peixes. Tia Délia, por ser uma das mais
antigas e respeitadas da vila, tratou de atendê-lo. Perguntou, o que o Moço queria e apresentou os peixes que poderiam lhe satisfazer.
Feita a venda, pela simpatia e educação do Moço, o convidou para almoçar com ela mais Demécio, seu marido. O Moço aceitou e se mostrou bastante simpático. Contou morar em São Paulo, mas, resolveu largar tudo o que fazia e sair de carro pelo litoral do país. Já havia passado por vários estados e praias até chegar ali.
Demécio contou como a vila começara com a pesca de curral, em que se faz um
cercado, esperar baixar a maré e coletam-se os peixes preso. Falou que esse
tipo de pesca teve uma forte queda e aí se desenvolveu a pesca de linha, por
isso, hoje há tantos barcos no porto, variando conforme o tipo de pesca que se
faça. Tem os que só trabalham com a pesca
de alto mar e outros próximos à praia. Na linguagem dos pescadores, pesca no mar
de fora e pesca no mar de terra.
Depois da
deliciosa pescada, acompanhada de uma branquinha e doces de caju, jaca, e de um
cafezinho, o Moço se foi agradecendo a acolhida. Tia Délia ficou impressionada
pela beleza, o azul dos olhos, as boas maneiras e a sensação que ele não era o
que aparentava, e que por trás daquela tranquilidade havia sentimentos em
convulsão. Havia algo de estranho.
No dia
seguinte, Tia Délia pediu a sua comadre Dada acompanhá-la até a Mãe Cida,
respeitada Iyalorixa do Terreiro do Encantado.
Feito os
cumprimentos e as pequenas ofertas, tia Délia, pediu para Mãe Cida jogar os
búzios, pois queria esclarecer a impressão pesada, que ficou, do Moço.
Depois da
reza e de saudar os orixás, jogou os búzios. Na leitura, soube que ele veio
encaminhado por Iemanjá. Tinha corrido várias beira-mares, não encontrando, em
nenhuma, local que aplacasse as angústias do coração. Era protegido por
Obaluaiê, orixá das doenças, das pragas, cultuado na figura de São Lázaro.
- Oxente, das
doenças e pragas?
- Apois, é o
que diz os búzios. Vai tê uma batalha entre Logun Edé, Orixá da Caça e da Pesca,
filho de Oxóssi e Oxum, contra o Obaluaiê, orixá do Moço. Vai sê em noite
clara, que vai se transformá em escuridão com vento, tempestade, raios e
trovões. Dessa briga, um dos dois vai ganhá.
Tia Cida
voltou para casa preocupada, sabia que havia pescadores que eram protegidos de
Logun Edé, inclusive seu filho Mereciano, só não entendia o porquê do conflito.
O Moço, de
vez em quando, aparecia em Mainha, ela oferecia um café e algum dos salgados ou
doces, que por ali tivesse: cocada, pamonha, cuscuz, bolinho de chuva. Passavam
um bom tempo conversando, rindo e as pessoas dizendo: olhos nos olhos.
Na Vila do
Encantando, de tempo em tempo, há um almoço comunitário, com peixes e frutos-do-mar
e convidam amigos. Tia Délia, resolveu convidar o Moço, seria um bom dia para ele
conhecer os pescadores, pois, não estariam trabalhando. Mandou recado.
O Moço ao
chegar, cumprimentou seu marido Demécio, que o apresentou ao outros. Tia Délia
observava de longe, esperando para dar uma atenção. Quando seu marido
apresentou o Moço ao filho Mereciano, se abraçaram, se cumprimentaram e riram,
mas, como uma faca espetando o estomago, adveio uma gastura, e Tia Délia sentiu
uma nuvem negra sobre ambos. Não soube o porquê, pois, estavam lá se abraçando,
cumprimentando e brincando um com o outro. Mas como sempre dizia: felicidade é
um pontilhado de momentos, em uma colcha de paz, corroída por invejas, medos e
angustias, podendo se desmanchar numa volta da vida.
Tratou de se desfazer do mal-estar e voltar para alegria da festa. Pensou: cuida do momento, que o futuro por si se cuida. Pegou uma bandeja e saiu a servir, aproveitou e cumprimentou o Moço.
Nisso, como um rodamoinho de alegria, chegou Janaína. Morena faceira, cabelos negros sobre os ombros, risonha, em vestido branco, ressaltando o jambo da pele e o castanho-claro dos olhos. Entrou cumprimentando cada um com uma palavra, um sorriso, quando não um abraço e um beijo. Em Mereciano, um beijo de querer nos lábios, que a puxou para sentarem juntos. Negou, iria com as amigas, deixando os homens mais à vontade. Mereciano a apresentou ao Moço e quando seus olhares se cruzaram, algo aconteceu. Janaína ficou presa no olhar, deixando toda a vivacidade com que chegou, se prostrar. O Moço ficou encantado pela faceirice, a beleza, mas, notou o mal-estar da apresentação, desviou o olhar e parabenizou Mereciano pela simpatia da noiva. Este notou o choque que houve, ficou aperreado, com sua face se transformando, acabou, depois, se escondendo na conversa com outras pessoas.
Tia Délia que
tudo observava entendeu onde poderia ocorrer o conflito entre os orixás.
Janaina, guardou sua alegria e passou o almoço todo, em pequenas conversas com
as amigas.
“Ei ei ei
eh eh ah
Ei ei ei
ah
Venho
para abrir as portas
O amor é
quem me traz
O que há
de ódio nessa casa
Meia
volta e nem olhe para trás
Ei ei ei
eh eh ah
Ei ei ei
ah”
3 - O
SEGREDO
O Moço em
uma das visitas pediu para ter uma conversa em particular com Mainha. Foram
para o escritório no fundo. Mainha passou pela geladeira, pegou uma jarra de
limonada e uns salgadinhos.
- Preciso te
contar um segredo. Promete guardar?
- Eita, seu
Moço, quando conhecer a minha vida, vai saber que guardar segredo é o que
melhor sei fazer.
- Vou te
contar minha história
Os curiosos
de fora, olhando pelo vidro a sala de Mainha, viram se aproximarem, como se
falasse em voz baixa. Por um bom tempo, notaram que Mainha, só o escutava,
alterando a expressão conforme o que ouvia.
Ele parou de
falar e lágrimas correram pelas faces. A voz embargada não conseguia sair. Mainha,
levantou, foi por trás da cadeira e o acarinhou nos cabelos. Depois, o olhou de
frente e viu um homem derrubado pela vida, o abraçou junto ao ventre e o deixou
chorar em seu colo, sem dizer uma palavra. O coração de Mainha, que guardara
dentro de si inúmeras dores passadas, com mais aquela, transbordou pelos olhos
numa emoção incontida e chorou junto.
Passado
longos momentos, Mainha, voltou a sentar frente a ele. Sentiu o grande buraco
em que estava. Naquele momento, era alguém que estendia a mão e pedia socorro.
Na vida, ela já se sentira assim, inúmeras vezes. Tratou de segurar as mãos
dele entre as suas, sabia o quanto, a simples presença de um ombro amigo, vale
mais que palavras.
Os dois
começaram lentamente a controlar os sentimentos.
- As
acusações e eu mesmo me sentindo culpado, apesar de todos dizerem que fora uma
fatalidade, batiam fortemente em mim. O sentimento de culpa era muito grande,
me considerava o principal responsável. Passei a não querer viver, só pensava
em encontrar onde errei. Mal comia, mal dormia era um verdadeiro Zumbi. Não
queria sair de casa.
Pouco a
pouco, com ajuda de meu irmão e de amigos médicos e psiquiatras, fui saindo do buraco em que me meti. No início, por meio de medicamentos para
controlar a depressão, vitaminas para repor o que perdia, injeções para
recompor minha condição física, fui gradualmente saindo da letargia, do desânimo
que me dominava. Foram oito meses para deixar o inferno e retornar a vida.
O medo de
sair de casa foi sendo suplantado, a vontade de morrer, foi sendo substituída
por pequenas alegrias que a vida me apresentava, no carinho das pessoas, na
vida que se mostrava a minha volta, na natureza que sempre adorei.
Resolvi,
após longas conversas com meu psicólogo, meu irmão e minha cunhada, que tinham
medo das minhas reações, sair de viagem. Decidi correr o país, pelo lado do
litoral, pois, sempre fui amarrado no mar e deixar me levar. Ser o que a vida
viesse a me oferecer.
Por sorte no
Espírito Santo, encontrei uma comunidade budista, onde passei um bom tempo.
Aprendi a me reequilibrar, a meditar, o que tem me ajudado muito.
Assim,
depois de dez meses, cheguei por aqui. Encontrei, neste local, uma paz que me
reconforta, e em você uma amiga sincera, que em nossas conversas, parece me
entender, pois noto que a vida também lhe fez sofrer.
Ela
levantou, pegou em suas mãos, olhou nos olhos e disse:
- Seu Moço
quero ajudar no que puder. Conte com meu ombro, para desafogar as mágoas, nos
momentos de dor, de incerteza e quero te ajudar, na busca de um novo caminho.
Desde a
primeira vez que o viu, sentiu por ele um querer especial, parecia amor
materno, um pouco estranho, pois, os dois têm a mesma idade. Sempre lhe pareceu
que já o conhecia de longa vida.
“O amor é
a memória
Que o
tempo não mata,
A canção
bem-amada
Feliz e
absurda...
É música
inaudível...”
4 - AJUDA
- Vou te falar do meu plano. Conto com
teu segredo e tua ajuda. No começo muita gente estranhará o que faremos e
conhecendo a cidade irão te criticar. Como não quero que saibam até o dia
conveniente, muita pressão você sofrerá. Muitos comentários desabonadores a teu
e ao meu respeito aparecerão.
Explicou a
sua ideia. Ao final:
- Conta
comigo, essa peleja é de dar o gosto – respondeu Mainha, sentindo-se feliz e
tomada pelo desejo de ajudar, pouco importando as consequências que traria. Ela
já havia enfrentado a cidade, no passado, em que era mais nova e insegura, não
seria agora que iria esmorecer.
- Para meu
plano preciso encontrar uma casa. O ideal que seja na cidade, próxima da praça,
para facilitar o movimento que acontecerá. Quero que a fama se espalhe por toda
a região.
- Apois, se
esse é um problema, considere resolvido. Deoclécio tinha uma casa alugada para
o pessoal do Coronel Cupertino. Foram embora e com a morte de meu marido nunca
mais mexi com ela. Deve precisar de reparos, mas a gente cuida. Bora ver? Corisco.
Corisco vem mais eu. Escuta aqui Corisco, tudo que o que vai acontecer e o que ouvir,
não comenta com ninguém, nem em casa. Boca de siri.
- Pode
contar patroa. É Deus no céu e vosmecê na terra.
Algumas
casas abaixo da venda de Mainha havia uma casa feita de pau a pique, com
telhado de zinco que estava fechada. Tiveram quase que arrombar a porta, do
tempo que estava fechada. Abriram as janelas e o sol entrou, ressaltando o mofo
e o empoeirado que se levantou. Tinha três cadeiras largada, uma
mesa manca, pedaços de madeira pelos cantos e pelo chão. Muita sujeira
entulhada.
A casa tinha
um recuo em relação à rua, uma pequena varanda. Entrando era uma sala grande,
com uma janela para a rua. Depois vinha um corredor, tendo ao lado esquerdo
dois quartos, em petição de miséria, com janelas para o corredor lateral. Do
lado direito, um projeto de banheiro, tamanho bom e a seguir mais um quarto com
janela para outra lateral. O final do corredor, terminava em uma área coberta,
que servia de cozinha. Um chão, todo esburacado e em um dos cantos um fogão a
lenha. O teto era composto de buracos, porque telha inteira não havia. No fundo
um quintal, com uns 8 metros de profundidade, cheio de mato.
- Que te
parece seu Moço?
- Os cômodos
estão ótimos. Um dos quartos posso aproveitar para meu uso. O quarto da direita
pode ser usado para guardar material, inclusive quero que tenha uma geladeira nele.
- Geladeira,
deixa comigo, sei como conseguir uma de graça. Corisco, pega um pessoal, começa
a limpar a casa para depois ver o que precisamos fazer. Leva as cadeiras e a
mesa para o Lázaro consertar. Avisa que precisaremos de mais cadeiras. Depois falo
com ele. E não esquece Corisco, ninguém deve saber o que estamos fazendo e para
que será, nem o pessoal que vier te ajudar. Não vai bestar e acabar falando,
nem em casa.
- Mainha,
vou colocar no papel o que vamos precisar. Vou a Fortaleza, ver o que consigo
doado e faço uma lista do que comprar. Tenho amigos por lá.
Assim começaram
os trabalhos.
- Juro, vi
Mainha abraçando seu Moço no fundo da venda.
- Eu também
vi.
- Mandaram,
o Lázaro fazê uma cama alta, precisa de escadinha pra subi. Imagina a putaria.
- Que pouca
vergonha, tá botando casa pro amante – falou Zelina, vulga Boca Maldita, caiu
na dela, nem o Diabo se salva - Tá se amancebando, depois de velha vai virá rapariga.
Com tanta
fofoca, em uma das vezes que estava só com ela, o Padre Inácio resolveu perguntar:
- Mainha,
tenho ouvido muitos comentários a teu respeito. Algum problema que possa ajudar?
Mulher conte comigo.
- Seu Padre,
não se apoquente, logo, logo o senhor vai saber o que estamos fazendo. Não de
ouvidos para o que os outros falam. Esta cidade sempre foi assim. É tudo boca
de tramela.
“É Zun,
zun, zun, zun, zun, zun capoeira mata um,
Zun, zun,
zun, zun, zun, zun, capoeira mata um
Zun, zun,
zun, zun zun, zun, diz, que diz mata um”
5 - ALÍVIO
Ouvindo os
fuxicos que chegavam, Tia Délia, começou a se sentir mais tranquila. O seu Moço,
estava envolvido com Mainha. Ela estava botando casa pra ele. E fazia tempo que ele não aparecia por ali.
Tinha uma coisa
que a estava deixando preocupada, era Janaina e Mereciano, agora, viviam brigando
a todo momento. Antes, era constante a alegria de Janaina no pedaço, era o sol
que iluminava por onde passava, agora mal aparecia.
- Mereciano
o que tá havendo com tu e Janaina?
- Estou
aperreado, antes só falava de casamento, agora num qué sabê. Implica com tudo,
briga por qualqué coisa. Antigamente vivia de beijinho e abraços mais eu, agora
parece que tá fugindo.
- Vou fala
com ela. Deve está bestando.
Janaina
sentia um grande peso no coração. Antes só pensava em Mereciano, quando
acordava, durante o dia, vivia esperando a noite, para se
encontrarem. Não via a hora de casar. Depois que viu seu Moço e mergulhou
naqueles olhos azuis, não conseguia tirar ele da cabeça. Não tem propósito. Ele
é um forasteiro do Sul, ela filha de pescador, pronta para casar com o melhor
partido da cidade. Como pode ficar tão embaralhada. Quando está com Mereciano,
sente um peso, um mal-estar. Não sente a paixão, o fogo que sentia por dentro,
quando estava, ou mesmo, quando pensava nele. Resolveu visitar Mãe Cida buscar
conselho e ajuda dos orixás.
Mae Cida a
recebeu esperando a costumeira alegria, mas, notou suspiros de dor. Seu olhar,
que antes, sempre fora de animação, agora, era de desalento. Daqueles que não
conseguem ver as alegrias em volta, por estarem mergulhados nas tristezas da
alma, encobrindo a visão da vida.
Ouviu suas
dúvidas, se entristeceu, por ver a certeza do amor de Mereciano ser abalada por
uma fantasia que o coração cria, enganando a cabeça, um sonho que se desfará
como arco-íris, em final de chuva. Pegou sua mão, a levou até o peji para rezarem
juntas. Pediu, com a força do seu axé, aos orixás virem em socorro,
principalmente Iemanjá, madrinha de Janaína, e iluminarem os caminhos.
Seu Moço, durante
a solidão da noite, tinha os pensamentos tomados pelo riso, a beleza e o olhar
de Janaina. Sonhava com ela amenizando a tristeza de estar só, e o desejo de
ter alguém para amar, viver junto, lutar lado a lado e criar futuro. Aqueles
pensamentos, mesmo não a conhecendo, sendo uma ilusão, amenizavam a solidão. Não
sabia ele, como os mesmos pensamentos geravam em Janaína, sofrimento
e tristeza.
A tormenta, do
confronto dos orixás de Mereciano e do Moço estava se formando no tempo, senhor
da vida, onde pouco se pode fazer para conter.
Tia Délia, perguntou
a Janaina o que estava acontecendo.
- Benção
tia, não quero homem, só por marido, como todas desejam, quero homem por amor,
que esquenta o corpo e o coração. Quero beijos, que deixem gosto nos lábios. Hoje,
os meus para Mereciano estão secos. Falta vida e não há desejo. Não perco o
folego a cada um deles, nem sinto prazer, nos seus carinhos. Meus dedos querem
correr um rosto que não é o dele. Me sinto morta, sem vida correndo nas veias.
Tia Délia
pensou, na disgrama que estava acontecendo, como era triste a situação. Uma mulher
perdida em sentimentos que a razão não justifica. Meu pai ajuda, podem
ser emoções, que vieram de tempos passados.
Acendeu uma
vela ao Pai Oxalá, na figura do Senhor do Bonfim, se ajoelhou e com o rosto
entre as mãos orou:
- Êpa, êpa,
babá...
“Se acaso
lhe faltar a fé
E triste
estiver
Corra até
seu Congá
Faça uma
oração irmão
E peça
proteção
A Pai
Oxalá”
6 - A
PREPARAÇÃO
Mainha, com
Corisco, corriam com o preparo da casa. Precisaram trocar ripas do telhado,
cimentar a cozinha que estava esburacada, arrumar o fogão, reparar as lajotas
dos pisos dos quartos e da sala, que estavam quebradas, arrumar janelas e trazer
vidros de Fortaleza para os consertos. Encomendou cama de casal, mais um criado
mudo e outra cama de solteiro;
-Pra que
todas essas camas? – comentavam.
O banheiro
teve que ser todo refeito e seu Moço pediu que tivesse uma banheira com
chuveiro e chuveirinho. A cidade tinha energia elétrica, o que permitiria uma
boa ducha. O povo escutou que seria um lugar muito usado.
- Não qué só
uma latrina, qué uma banheira. É putaria, sem dúvida.
- Seu padre, uma casa de perdição no meio da
cidade. Vosmecê não pode deixá acontece!
Para não caírem
ciscos pela casa, o teto foi forrado com palha trançada de folha de babaçu.
Várias mulheres da cidade foram contratadas para o entrelaçamento. Duas meses e
cadeiras em quantidade, foram encomendadas. Mainha colocou vasos no terraço de
entrada e na cozinha no fundo, com plantas e trepadeiras resistentes ao calor e
protetoras, como jiboia, espada de São Jorge e arruda.
No final, viria a pintura, azul-claro, no
cômodo maior, rosa-claro no menor e no outro verde-claro. A casa por fora seria
toda branca, com o madeirame em azul celeste.
Durante esse
tempo seu Moço, seguiu de barco para Fortaleza, permanecendo por lá.
Na cidade, os
comentários continuavam. As pessoas diariamente passavam pela obra, assuntando
os ajudantes, pois com Corisco, só encontravam o silêncio. Este, por sinal,
interiormente, estava extremamente orgulhoso de ser o responsável da reforma.
- Será uma
pensão, casa de mulher dama, moradia para o bem amado, boate?
Começaram a
chegar caixas de madeira fechadas, endereçadas ao comércio de Mainha, objetos
envolvidos em papel, com formatos diferentes, abajur, cabideiro, secador de
cabelo, espingarda, sabe se lá o que.
Chegou uma
geladeira com marca de cerveja que Mainha vende, foi mandada para a casa.
- Vixe, vai
tê bebida. Se tem bebida, tem sacanagem!
“É Zun,
zun, zun, zun, zun, zun capoeira mata um,
Zun, zun,
zun, zun, zun, zun, capoeira mata um
Zun, zun,
zun, zun zun, zun, diz, que diz mata um”
7 - O
PADROEIRO
No dia do padroeiro,
Bom Jesus, 06 de agosto terá festa em homenagem. Várias missas serão rezadas
durante a semana e na sexta, sábado e domingo a esperada festa. Tudo estava
sendo montado com a orientação do Padre Inácio, com o apoio da comissão de
festa, que tinha como participantes a Tia Délia, Dada, Mainha, a presidente e
vice-presidente da Legião Coração de Jesus, Antônia e Jussara.
Na praça serão
montadas barracas, sob diversas responsabilidades: Salgados e doces com a
Legião do Coração de Jesus; carne de sol com macaxeira e bebidas com alguns
pescadores; peixes, frutos-do-mar, caldeiradas e sarapatel com as mulheres dos
pescadores; broas, cocada de amendoim, mugunzá, pamonha, beiju, cuscuz com
Mainha e ajudantes.
O Padre
Inácio contratou três grupos de forró, para alternando tocarem nos três dias de
festa. Das 11,00 h da manhã até meia-noite. Fora alguns artistas da cidade e dos arredores, que se apresentaram para tocarem em troca de umas biritas, comida e
mulher para paquerar. A organização dos músicos era com o Lázaro, que vivia com
o rádio ligado na marcenaria o dia todo e conhecia os cantores e as músicas da
temporada.
A festa era
famosa na região. O pessoal vinha a pé, de burro, barco, ônibus, carroça, carro
e caminhão. Do que fosse possível. Tinha gente que vinha lá dos cafundó do
judas, levando dias na viagem. Durante a semana foi chegando gente que acampavam
em torno da cidade, outros aproveitavam amigos para se acomodarem. Era um
festival de barracas de lona, amarradas nos caminhões, nos ônibus, nas
carroças, nos poucos tocos de árvores. Era um rebuliço, uma beleza. Na praia
aumentava o número de embarcações. Eram canoas, jangadas, tototó, paquetes
trazendo o povaréu das cidades, vilas, lugarejos e currutelas da costa próxima.
Os
pescadores e o pessoal dos barcos no dia do padroeiro, fazem uma procissão,
tirando a imagem do Bom Jesus da igreja, colocando em um barco todo enfeitado, distanciando
um pouco da praia e ofertando flores. O pessoal da umbanda, aproveita a
procissão e também agradecem a Iemanjá na figura de Nossa Senhora da Conceição,
que vai em outro barco coberto de flores.
- Odociaba
minha Mãe.
É uma
procissão linda com todos de branco. O Padre Inácio, abençoa esse sincretismo com
o respeito merecido e a alegria de todos.
A cidade é
enfeitada de bandeirolas, que famílias, passam meses produzindo. No
centro da praça, onde já há um local apropriado, é levantado um mastro,
guardado pelos pescadores durante o ano, com as cores azul-celeste e vermelha,
tendo no alto a imagem de Bom Jesus, como em festa junina, dentro uma lâmpada,
que se mantém acessa todas as noites do evento.
Pedidos de
saúde, pesca, dinheiro, namorado, marido, casamento, namorada, barco, trabalho,
são presos com um preguinho no mastro. No último dia da festa, são retirados e
queimados, como oferta na missa de encerramento. É a esperança do povo que
busca no elevado ajuda para as dificuldades aqui da terra.
“Que o
perdão seja sagrado
Que a fé
seja infinita
Que o
homem seja livre
Que a
justiça sobreviva, ai, ai
Que o
perdão seja sagrado
Que a fé
seja infinita
Que o
homem seja livre
Que a
justiça sobreviva, ai, ai”
8 - O RETORNO
Uma semana
antes da festa, o Moço retornou da viagem a Fortaleza.
Encontrou
algumas pessoas acampadas, próxima a sua barraca, aguardando o dia da festa. A
maioria eram famílias, que trocaram com ele gentilezas, numa bebida, numa prosa
e até em uma comida. Ele alegremente aceitou. Aquilo tudo era maravilhoso. Era
vida, as pessoas, manifestando sua fé, sua alegria e o congraçamento, pois
muitos esperavam encontrar amigos, parentes das festas anteriores. Era o povo
na sua mais pura essência, numa festa feita pelo povo. Passaram o
ano colocando-se nas mãos do Bom Jesus, orando, para que sua intersecção auxiliasse
no diário, acima do que o temporal determina, e agora, estão presentes para
agradecer o que tiveram.
No dia
seguinte passou na obra, ficou impressionado com o que viu e do andamento, que
iria ocorrer, conforme Corisco. Ficou emocionado, com a empolgação daquele
homem simples, que se mostrava um dos principais responsáveis pelos resultados
que iriam obter. Deu um forte abraço de agradecimento. Corisco ficou sem jeito.
Homem não abraça homem, mas até uma pequena lágrima quis sair em um canto dos
seus olhos, que rapidamente tratou de reter. O peito se encheu.
Mainha foi
só alegria com seu retorno. O abraçou e até um beijo lhe deu na boceja.
- Chega!
Chega! Quero saber de tudinho.
Levou para o
escritório e parecia uma matraca despejando as informações do tempo que esteve
fora. Falava com alegria e empolgação, levando o Moço a rir.
- Que foi,
que eu disse, que tu tá rindo?
- Nada. Dá
gosto ver a tua empolgação. Você agora, e o Corisco há pouco, foram a melhor
acolhida que eu poderia ter no meu retorno. Estão dando vida as minhas ideias.
Há muito tempo não me sinto tão animado. Só tenho a agradecer.
Passaram um
bom tempo contando o que cada um fez.
- De hoje a
quinze, acredito que podemos inaugurar – informou Mainha.
- Ótimo,
temos que programar, no maior segredo, como será a inauguração. Quem convidaremos.
Bom, vou ajudar a pendurar bandeirinhas e lampadinhas e ver no que posso mais auxiliar
na festa.
O Moço,
depois de um bom tempo desaparecido, agora, aparece auxiliando na arrumação da
festa, criou um frisson entre as solteiras, as casadoiras e algumas bem casadas
da cidade. Fora as curiosas do pedaço.
As pessoas chuchavam
perguntas, para tirarem alguma resposta sobre a casa. Quando seria a inauguração?
Ele só respondia:
- Logo,
logo.
A semana foi
atribulada de preparatórios, do aumento no número de pessoas que circulavam
pela cidade. Com mais movimento, Mainha e seu pessoal tinham dificuldade de
atender. De vez em quando o Moço ia ajudar. Na Vila Encantado a venda de peixes
e frutos-do-mar estava a toda. A cidade estava um salseiro, extremamente
ocupada, preocupada, mas, feliz.
“Com ele
fiz uma promessa
E este
ano tenho que pagar
Vou rezar
uma novena
Ao meu
bom Jesus pra ele me ajudar”
9 - A
FESTA
Na sexta-feira,
primeiro dia da festa, o Moço ficou a manhã toda com Corisco na casa avaliando o serviço, sugerindo reparos ou consertos. Lá pela hora do almoço
notou que Corisco estava aperreado. Claro, como todo mundo, queria estar na
festa, ajudando, assuntando, bebendo, conversando. Levando os filhos para se
divertirem nos balanços construídos na praia. Foram montados, também, dois
gira-giras e dois escorregadores. O Lázaro, com a ajuda de alguns homens,
construiu, e queria deixar montados para depois da festa.
No resto do
dia ele se fechou em um dos cômodos da venda de Mainha, abriu as caixas que
chegara e conferiu o material. Aquela verificação estava sendo um bálsamo para
sua cabeça, pois a cada conferência sua cabeça voava, se enrolava nos sonhos e
fazia do amanhã um dia de perspectivas. O tempo passou.
Saiu era
noite, ficou encantado, havia fogueiras dispersas, principalmente na praia. Encontrou
Mainha, pediu um peixe, um caldo e uma cerveja, comeu em companhia dela e foi
para a caminhonete dormir. Ocorre, que a alegria em volta estava grande, e as
pessoas o envolveram nas cantorias, nas danças, nas conversas, nas comidas, nas
bebidas até que foi, literalmente, carregado, às quatro da manhã para a
caminhonete.
Acordou com
o sol no horário da tarde e a Rubi lambendo sua cara. Esses dias todos que
esteve fora, ela deve ter andando entre as barracas e forrado o estômago.
Quando esteve em Fortaleza ela dormiu em casa de Mainha. Agora, vivia atrás
dele.
Tratando de
se recompor, tomou um banho de mar, depois foi a um dos remansos do rio e se
lavou. Procurou um ponto mais distante da muvuca, debaixo de uns coqueirais e
embalado pelo namoro do vento com os coqueiros, meditou.
Com uma fome
brava, passou na barraca de Tia Délia, que o recebeu com sorrisos, mas com
olhos preocupados, comeu uma moqueca e tomou um caldo, com uma cerveja gelada.
A noite
principiava. O céu estava límpido com lua cheia, iluminando os areais mostrando
suas entranhas e fazendo um jogo de claro-escuro, revelando o côncavo e o
convexo de suas formas, parecendo uma mulher estendida ao luar.
Encontrou
Mainha em sua barraca e a convidou para tomarem uma cerveja juntos. Sentaram em
uma das mesas, em volta do grande círculo que formava o espaço de dança.
Conversando e observando o agito. Satisfazendo os olhos com o movimentar das
pessoas e o coração com o burburinho e a música da festa. Casais começaram a
levantar a poeira do chão, com suas danças.
Nisso passou
por eles Janaína, que parou, cumprimentou Mainha e o Moço. Este por educação a
convidou para sentar, o que aceitou. Mainha na hora apresentou cara de
contrariedade, por saber do término do namoro dela com Mereciano, o ciúme
doentio dele, e das conversas que ouvira envolvendo a possível participação do
Moço, no desfecho. Tia Délia, do outro lado da festa, a viu sentar na mesa
deles, se apoquentou e se aprofundou nos temores.
O Moço que
nunca havia conversado com ela, ficou encantado, pela desenvoltura, a
facilidade da conversa, a simpatia e acima de tudo a beleza. Era estonteante,
levando, a que em momentos, não percebesse o que ela dizia e simplesmente se
fixar nos olhos, no movimentar dos lábios, nos trejeitos, no cabelo, que o
vento rebeldemente fazia cair sobre o rosto e ela com um jeito próprio o
colocava de lado. Estava hipnotizado. Mainha notou tudo isso e para romper o
momento, a convidou a chegar até sua barraca, onde sua prima estava ajudando.
Começaram as
danças. Aproximou-se da mesa Caetano, sua mulher Rosário, Estácio, seu irmão, com
a esposa Jussara. Ele os conhecera das idas na Vila do Encantado.
- Olá, seu
Moço, sozinho? Podemos sentá junto? – perguntou Caetano.
- Claro,
será uma satisfação. Sentem, vou buscar mais cervejas. A mulheres, também
tomam?
A conversa
estava do jeito que o Moço gostava. Causos das festas que houveram, das pescas,
brincadeiras, risadas. Eram jovens curtidos nas dificuldades do mar aproveitando
aquele momento feliz da vida.
- Pessoal,
vamos dançar? Caetano posso tirar a Rosário para dançar.
- Seu Moço,
descurpa, mas não vou dança. Tô prenha e no forró me mexo demais – respondeu
Rosário.
- Está
grávida, que maravilha, meus parabéns. Para quando?
- Daqui uns seis meses, mas tive alguns avisos
e é mior eu me resguardá.
O Moço ficou
olhando um tempo para o rosto dela, como se o passado ou alguma verdade, dentro
de si, estivesse vindo à tona.
- Que dança
comigo? - perguntou Jussara.
- Cuidado
Seu Moço - falou o marido – ela tem um remelexo que vai lhe dar uns nó nas
pernas.
Tiro e
queda, Jussara era boa na dança, várias vezes o deixou parado no meio do arraial,
sem saber o que fazer. Ela ria e todo mundo que conhecia suas habilidades riam.
- Seu Moço
vai levá uma surra da Jussara na dança. Eta mulhé porreta.
Voltaram
para a mesa, ele desmilinguido, pedindo cerveja. Todos riram.
- Mais
tarde, vou querer dançar de novo, mas vai me explicar alguns passos. Você não é
mole.
O Moço,
notou no outro lado da pista Janaina, acabando de dançar com alguém. Foi até lá
e a convidou. Aceitou.
Ainda bem
que ela dançava de um jeito e numa cadência que ele conseguia levar. Era mais
lento, e podia sentir o perfume que subia do seu corpo, o suor que escorria do
rosto, a faixa branca segurando o cabelo, o vestido branco que volteava a cada
rodada da dança e o riso, quando achava graça de algum dos passos.
Muita gente
parou para observar e até foram avisar Tia Délia, que saiu da barraca e ficou
observando, agarrada as suas figas e patuás rezando para Mereciano não aparecer. Porém, fora em vão, ele apareceu, viu os dois dançando e seus olhos se
encheram de sangue, seu rosto crispou, estava aperreado.
No final da
dança, o Moço perguntou a Janaina se dançaria mais uma. Ainda estava segurando
o braço dela, aguardando resposta, quando Mereciano, de supetão, agarrou o
outro e disse:
- Posso
dança com a moça, agora?
Repentinamente,
o vento começou correr pela festa, derrubando lonas, bandeirolas, saracoteando
os vestidos das moças, levantando o pó do chão. No céu, formaram-se nuvens
negras que encobriram a lua. Ao longe, em
alto mar, formaram-se relâmpagos e trovões que rapidamente vinham em direção à
terra. A música parou, todas as atenções se voltaram
para eles, havia eletricidade no ar. Tensão.
Tia Délia, sentiu a natureza se alterando, agarrou-se ainda mais a reza, pedindo com mais fervor aos seus Santos e em especial ao Pai Oxalá. Seu coração estava disparado,
suor corria pelo corpo. Demécio, seu marido, se aproximou e abraçou o corpo
tremulo da esposa. E juntos rogaram aos seus protetores.
Ela sabia, o quanto Mereciano tinha o
comportamento igual ao seu orixa, Logun Ede,
filho de Oxossi e Ogum, um dos mais belos e vaidosos orixá masculino, podendo
ser doce e astuto, mas, também, tem a força e o espírito de caçador. É o deus
das contradições, nele os opostos se alternam é o deus da surpresa e do
inesperado. São arrogantes e prepotentes, mas, quando tem consciência e
controlam seus defeitos se tornam agradáveis.
O Moço
respondeu:
- Sem
dúvida. A moça dança muito bem.
Ao largá-la,
Janaina puxou Mereciano rapidamente para o meio da pista. As nuvens se
dissiparam, permitindo a lua embranquecer o entorno e por um encanto o vento
parou. Os raios e trovões cessaram em alto mar.
O Moço
quando se dirigia para a mesa, uma jovem das famílias que conhecera na praia
perguntou:
- Vamos dançá?
Lá foi ele,
tendo depois que dançar com mais duas do grupo.
Ao seguir
para a mesa, encontrou os casais animados na conversa e riram, pois devia estar
cansado das danças e ainda ficara de dançar com a Jussara.
- Jussara,
hoje não consigo mais. Prometo que amanhã dançamos, estou morto. Vou dormir.
“Quando a
flor tava dormindo,
Vento
veio me levar
Prum
terreiro iluminado, entre terra céu e mar
Já que o
mundo ta girando, eu também quero girar
Gira
negra dançadeira, olha a chuva de ganzá
O truvão
ficando rouco, também já relampiou”
10 –
ÚLTIMO DIA
No último
dia de festa o Moço acordou tarde. O alarido em volta estava alto. Eram algumas
famílias levantando acampamento e se despedindo. Outras preparando, para mais
tarde, ou quem sabe no dia seguinte pegar a estrada de volta.
As saudades
foram amenizadas, as amizades reforçadas, alguns namoros, quem sabe casamentos,
e a fé entranhada com mais profundidade na alma e nos corações. Alguns casos,
ficaram no folclore e na maledicência das mentes e bocas soltas.
Moço tomou
um banho demorado no remanso do rio, aproveitou, para brincar um bom tempo com
sua cachorra, Rubi. Ela estava carente do tempo que ele esteve viajando, e como
ela por muito tempo, fora sua única companheira, sentia falta de tê-la próxima.
Com o que viria acontecer nos próximos dias, menos tempo teriam juntos.
Resolveu ira
a casa de Mainha, onde o pessoal estaria fazendo mais salgados para o dia.
Chegando por lá, perguntou se poderia tomar um bom café com leite, acompanhado
de uma das maravilhosas broas produzidas na casa.
- Seu Moço,
senta naquela mesa no fundo do quintal. Eu te levo o café e quero prosear
contigo – ordenou Mainha.
Ela
relembrou a noite anterior, no momento da dança, quando Mereciano apareceu.
- Tu notou
a mudança de tempo, o que aconteceu?
- Não,
estava atento com Mainha e Mereciano.
- Bem, vou
te contar, o que aconteceu e o que comentam.
-
Comentários, comentários...
- No momento
em que Mereciano, aperreado, interrompeu a tua dança com Janaina, a noite que
era de lua clara foi tomada por nuvens escuras. O vento correu por toda a
festa, inclusive abalando algumas barracas. No alto mar formou-se uma tormenta
com raios e trovões. Quando você liberou Janaina para dançar com ele, tudo se
desfez, milagrosamente. As nuvens negras desapareceram, permitindo a lua a
voltar a brilhar, o vento parou e a tempestade que vinha do mar para a terra se
desfez. Os comentários são que teu orixá e o de Mereciano, em algum momento, baterão
de frente, e quando isso acontecer, a natureza vai se alterar, como começou a
acontecer, ontem. Isto foi profetizado pela Mãe Cida, Iyalorixá da Vila do
Encantado para Tia Délia, quando você apareceu por aqui.
- Isso é
bobagem.
- Apois, bobagem
ou não, depois que Janaina te conheceu ela desmanchou o compromisso com
Mereciano. Eles eram prometidos, desde jovens. Ele é apaixonado por ela.
Apaixonado não, doido por ela. É uma pessoa boa no seu normal, mas facilmente
se torna violento, passional. Todos temem a reação dele contigo. É de
conhecimento geral essa história e todo mundo ficou em suspense, quando ocorreu
o de ontem. Não vá dar uma de besta.
- Mainha, no
bate-papo que nós dois tivemos com ela, observei ser uma pessoa com uma desenvoltura maior que as pessoas da cidade. É agil no conversar e
possui boas argumentações. Como é possível?
- Ela ficou
órfã quando tinha uns 14 anos. Perdeu o pai na pesca e a mãe de doença, em
pouco mais de dois meses. Ficou aos cuidados de sua tia Dica. A comunidade
as ajudou com comida, mas, passaram dificuldades. Tiveram muitos dias de
precisão. Sua tia fazia parte da Legião do Coração de Jesus. Quando ia, levava
a menina junto. Era uma luz no meio da velharada. Sempre alegre, bem disposta e
disponível a atender qualquer um. Eu e a Antônia, presidente da Legião, nos
interessamos por ela. Tinha acabado os estudos que a cidade fornecia, porém,
havia a professora Isabel que também se encantava com a menina, notava que
tinha um interesse e uma inteligência que a diferenciava dos outros. As duas,
fornecendo condições para a professora Isabel, conseguimos que ela tivesse uma
educação além do normal da cidade.
Quando tinha
17 anos, a Cíntia, vice-presidente da Legião e esposa do Aristides, filho do
Coronel Cupertino, indicou a menina para trabalhar nos escritórios da empresa.
Ele, não sabendo o que tinha na mão, indicou que trabalhasse na fábrica. A
mulher foi enfática:
- Arre, na
produção não, no escritório!
Começou
arquivando, arrumando papelada e outras coisinhas, mas sempre mostrando
interesse. O grupo precisava de gente para lidar com computadores, que estavam
sendo instalados e forneceu cursos. Ela pegou o assunto de primeira e se
aprofundou. Com o tempo conhecia, quase tanto o pessoal da informática. O
contador da Empresa, o Januário, gostou do empenho da moça, a treinou e deu
espaço para crescer. Hoje, ela cuida do contas a pagar e a receber. Recebe um bom salário, mora em uma casa na
cidade com a tia, conseguiu sair da Vila do Encantado.
Estava
providenciando enxoval, e tinha plano, com Mereciano, de construírem uma casa
na cidade, para depois de casados, morarem. Isso tudo acabou. Essa é a história
dessa moça. Peço que tome cuidado para não fazer da vida dela uma tragédia, em
função desse descabeçado do Mereciano e de uma ilusão dela contigo.
O Moço, foi
embora depois do café, buscou um lugar distante na praia, deitou e ficou
pensando tudo que Mainha contara. Passou a tarde toda. Ele, seus pensamentos e a
cachorra Rubi. Difícil tirar o rosto dela do pensamento. O sorriso, o encanto
no falar, seus doces trejeitos e acima de tudo, o olhar quando batia no dele,
ele se perdia em um rodamoinho de sentimentos.
Apareceu na
festa no final da noite. Comeu algo. Dançou com Jussara umas duas músicas, em
que ela ensinou alguns passos. Conversou com algumas pessoas. Viu Janaina a
distância e não se aproximou. Enquanto isso, as barracas, à medida que a comida
terminava, eram desmontadas, as pessoas se retirando cedo, para o dia seguinte
de trabalho ou de retorno. O que mais se ouviam eram despedidas, promessas de
reencontro e convites para aparecerem por casa. Fogueiras iam sendo apagadas. Em
alguns recantos, namoricos iniciados aqueles dias, aproveitavam os últimos
momentos de beijos ou quem sabe de carinhos mais ardentes. Xodós ficaram nos
corações e pelas areias dos coqueirais.
Moço escapuliu
cedo. Foi uma noite mal dormida.
“Ardia
aquela fogueira
Que me
esquentava a vida inteira
Eterna
noite
Sempre a
primeira festa do interior”
11- A
INAUGURAÇÃO
Mainha, Moço
e Corisco, acertaram que no segundo domingo, após o final da Festa do Padroeiro,
fariam a inauguração. Seria às 10,00 h da manhã.
As próximas
semanas foram de corre, corre, tratando de colocar de imediato uma cortina na
janela da sala da frente para não permitir os olhares curiosos, e a noite, bem
tarde, para não haver curiosos, transportaram uma série de caixas e objetos da
mercearia de Mainha para o local. Durante o dia ouvia-se barulho de pessoas
trabalhando, arrumando, empurrando, martelando, furando e conversando em tom
baixo.
As mulheres,
seguiam para a compra de qualquer coisa na loja de Mainha, só para passarem em
frente. Os homens, a caminho dos seus afazeres, desviavam a rota para darem uma
vista de olhos. Ninguém sabia de nada, o
segredo era total. Os empregados de Mainha, informaram, que as coisas que
estavam trancadas em uma sala, na mercearia, foram retiradas. A sala estava
vazia. Na semana chegaram alguns colchões.
- Pela
caixa, tinha um grandão e não sei não, uns dois ou três menor. A gente não sabe
se já não tinha vindo outros antes. É putaria da grossa!
Será que
“Vox populi, vox Dei”?
Contrataram,
com Lázaro, sigilosamente uma placa grande, para colocar na frente da casa. Ele
teve que trabalhar na peça depois que os funcionários iam embora e mantinha
escondida durante o dia. Teve que jurar pela mãe, ainda viva, que não contaria
e nem mostraria para ninguém. Como todo
mundo sabe, mãe é sagrada.
No sábado
antes da inauguração, à noite, levaram a placa e instalaram no local, porém
coberta. Só seria descerrada no momento da inauguração. Corisco botou um
funcionário, sentado na varanda da casa, a noite toda, para ninguém querer
estragar a surpresa.
Na manhã, da
inauguração, o sol apareceu encoberto. Parecia que choveria, o que todo mundo
estranhou, visto não ser época de águas. Correu o comentário que deveria ser o orixá
de Mereciano, se encontrando com o do Moço. Temeram, que o tempo fechasse em
vento, chuva, raios e trovões. Enganaram-se,
lá pelas nove horas, o tempo abriu em um sol ardente, tendo um maravilhoso céu azul
como fundo.
A cidade
ficou confusa, quando viram a presença de alguns convidados, pois dependendo o
que se inauguraria, seria hipocrisia do Moço, fazendo pouco caso das pessoas
ilustres da cidade. Ele estava em um canto, observando tudo, de bermuda,
camiseta florida, solta, como costumava usar e tênis. Parecia despretensioso
com o que acontecia, observava tudo com um sorriso. Seria deboche?
Os
convidados eram o Padre Inácio, Antônia, presidente da Legião, Tia Délia,
representando os pescadores, com seu marido Demécio, o Coronel Cupertino e o
filho Aristides, com a esposa Cíntia, vice-presidente da Legião.
O povo
apareceu para apreciar a inauguração. A praça estava cheia. Surgiram carrinho
de pipoca, algodão-doce, cocada, quebra-queixo e raspadinha.
As 10,00 h Mainha,
pediu para a música parar e solicitou silêncio. Pediram para ela falar mais
alto.
- Povo de
Areia Santa, hoje é um dia importante para a cidade. Depois da inauguração da
Igreja, há bons anos, creio que este será um dos eventos que mais marcará a
região. Para terminar o suspense, pedirei ao Corisco, uma das pessoas que muito
trabalhou para que este dia acontecesse, tenha o prazer, de descerrar a placa,
que indica o momento de nascimento de algo que irá mudar a nossa cidade.
Como era um
fato importante, trouxeram da capital um fotógrafo para registrar a cerimônia.
Corisco
ficou surpreso. Seu Moço se aproximou dele, passou o braço por seus ombros e
disse algo ao seu ouvido. Tomou coragem e puxou a corda que derrubou a faixa
que encobria a placa.
CLINICA MÉDICA AREIA BRANCA |
Dr. RUI CASTRO |
Ge, esposa
de Corisco, quando leu a placa, correu para o marido e o abraçou, chorando o
beijou. Ele dizia a ela, que não podia contar, mas, quando soubesse, ficaria
contente. Ela estava com orgulho do marido. Ele a abraçou e teve que segurar as
lágrimas. Os filhos correram e abraçaram as pernas dos pais.
Todo mundo
de boca aberta pela clínica e emocionados pelo comportamento do Corisco,
ficaram quietos, no primeiro momento e depois começaram a aplaudir e a gritar
vivas, aleluias, além dos comentários:
- Dá peste!
- Arretado!
- Diacho!
Mainha,
depois de um tempo, pediu silêncio novamente e falou:
- Só
conseguimos esta clínica, graça ao empenho e desdobramento de uma pessoa
porreta, que ninguém dava nada por ela, mas que adorou nossa cidade e seu povo
e resolveu utilizar seus conhecimentos para chegarmos a isto. Essa pessoa é o
Dr. Rui Castro, médico, que todos conhecem como seu Moço. Venha cá Dr. Rui.
Mais bocas
abertas, cochichos, olhares e descréditos.
- Para
oficialmente, ser nosso médico, fiz um jaleco, com teu nome e quero que vista.
Oficialmente Dr. Rui Castro, médico de Areia Branca.
Aplausos,
para o doutor de bermuda e jaleco. Mainha pendurou em seu pescoço o
estetoscópio.
- Agradeço,
Mainha e Corisco, que transformaram em realidade um sonho. Obrigado. Terça-feira
começaremos a atender, a partir das 7,30 h. Inclusive, contarei com a ajuda da
Jussara da Vila Encantado, que no passado trabalhou em pronto-socorro em
Fortaleza. Juntos e em segredo, ela se preparou para poder receber a todos da
melhor forma possível, portanto, solicito a ela aplausos.
Dr. Rui
Castro, procurou no meio da multidão e encontrou Janaina, seu rosto expressava
uma alegria e satisfação, como se tivesse feito parte da implantação da
clínica. Ele sorriu para ela, que retribuiu. Sentiu naquele momento, um desejo
forte de que ela estivesse ao seu lado para curtirem juntos a alegria.
- Seu padre,
vamos benzer o local – pediu Mainha.
- Danou-se,
não trouxe a água benta.
- A igreja é
do lado, manda buscar.
A sala
principal, seria a sala de espera. Havia uma mesa para a Jussara, com seu
fichário e cadeiras para as pessoas esperarem.
Os cabideiros,
abajur, secador de cabelo, espingarda e sabe se lá mais o que, que o povo
comentou, começaram a se mostrar. A balança para pesagem com medidor de altura,
a geladeira para bebidas estava forrada de branco e guardava medicamentos, a
espingarda era um suporte de braço para medição de pressão. O secador de cabelos
era suporte para soro, a mesa que seria usada para putaria, com escadinha para
subir, era para atendimento dos pacientes que precisassem deitar para serem
examinados. Haviam, alguns velhos ventiladores, de pedestal que seu irmão enviara.
Numa das salas,
pintada em cor de rosa clara, havia uma mesa ginecológica com suportes, usada,
mas em bom estado para uso, para exames das mulheres. Inclusive o Dr. Rui, que
já havia conversado com dona Margarida, parteira antiga e respeitada da cidade,
ao apresentar a sala informou que ela o estaria auxiliando no pré-natal e nos
partos que ocorressem.
A outra sala,
em verde-claro, seria onde o doutor atenderia. Tinha uma mesa, duas cadeiras e
a tal mesa com escadinha.
O último
quarto, com cama de casal, onde segundo a mente popular, a esbórnia ocorreria,
será o quarto do Dr. Rui. Portanto, estará 24 horas na clínica.
- Esperamos
que não seja tão necessário – falou Mainha.
Os
convidados conheceram as instalações, foram servidos com caldinhos na cozinha,
no fundo, onde em futuro deveria chegar um fogão a gás, e tomaram cervejas e
branquinhas.
Depois, aos
poucos, Corisco foi permitindo a entrada de algumas pessoas, e Mainha mais
Jussara iam mostrando o local. A visita foi até as 15,00 h, quando resolveram
interromper e lembrar que estariam atendendo a partir de terça-feira às 7,30 h.
Depois,
disso, Mainha levou o Dr. Rui, Corisco, sua esposa e filhos, mais a Jussara e o
marido, a parteira Margarida, para almoçarem em sua casa. Havia pedido a
algumas amigas que fizessem o almoço, pois, estaria envolvida na inauguração.
Mesmo não sabendo o que seria inaugurado, confiavam em Mainha e se
prontificaram a ajudar. Ficaram curiosas em conhecer o lugar, e tiveram a
promessa que na semana próxima seriam recebidas para uma visita.
Foi um
almoço inesquecível, pois independente do bobó de camarão, da moqueca de siri
mole, do peixe frito, o prato principal e com o melhor tempero, foi a alegria da
missão cumprida. Muita gente gostaria de ter participado daquele almoço.
“12 siris
moles graúdos
2 cebolas
grandes picadas
4 tomates
grandes maduros e firmes picados
1 molho
grande de coentro picado
1 limão
(suco)
2
pimentas-malaguetas maduras
2/3
xícara de chá de azeite de dendê
200 ml
leite de coco
1 pitada
de sal a gosto”
12 –
INÍCIO DAS ATIVIDADES
Na
segunda-feira aproveitaram para limpar a casa das visitas do dia anterior,
acabar de arrumar e tratar de manter tudo pronto para o dia seguinte.
Na
terça-feira, as seis horas da manhã, começou a chegar gente para ser atendida.
Começaram o trabalho antes das 7,30 h. Passavam por Jussara, que abria uma
ficha, pesava, altura, tirava pressão, e avaliava nível de diabete. Isso tudo
só foi possível, com o material obtidos pelos ex-colegas do Dr. Rui e do seu
irmão em São Paulo. Jussara era rápida, mas havia uma demora natural no
atendimento, e ela teve que obrigar o pessoal se manter em fila e esperar que
autorizasse entrar na sala, por sorte, algumas colegas suas da Legião se
apresentaram para ajudar.
Para cada jovem, Dr. Rui receitava e fornecia um vermífugo. Por sorte a cidade se
supria de água do Rio Itapioca, só esperava que a água fosse colhida em ponto
sem contaminação. Aos adultos que também se mostravam abaixo do peso seguia o
mesmo receituário. Quando possível, receitava tratamento, caso tivesse o
medicamento na clínica ou na loja de Mainha, caso contrário iria providenciar
na capital. Crianças com 4 anos ou menos, mulheres grávidas e recém paridas,
informou que seriam recebidas na próxima quinta-feira pela manhã, quando não
atenderia outro tipo de paciente. Mandou colocar um cartaz e a cada um que
chegava na fila informava essa medida.
Apareceram
dois casos de braço quebrado. Como não tinha material para imobilização, chamou
Lázaro, marceneiro e informou que material precisava. Ele conseguiu
uns pedaços de madeira em tamanho adequado. Um dos braços, que já estava em
tipoia há alguns dias, teve que ser quebrado novamente, para colocar no lugar
adequado. Tinha pouco material anestésico, usar, quando muito necessário.
Gradualmente
foi atendendo a fila, nos seus mais diversos problemas. Valia-se da experiência,
pois, faltava recursos que normalmente se tem disponíveis nas grandes cidades.
Todos os pacientes que precisavam ter exame colhido, marcou para a
segunda-feira próxima, quando ele e Jussara, colheriam o material, guardaria na
geladeira e despachariam no barco que recolhia as pescas realizadas. Em um
esquema com a Faculdade de Fortaleza, o material seria retirado e analisado.
Mandariam, depois os resultados impressos. Seu irmão, estava mandando um fax
velho, o que aceleraria o processo. Quem sabe em vinte dias chegasse. Seria
instalado no telefone na empresa do Coronel, conforme já acertado
As seis
horas, encerraram o atendimento e pediram que voltassem no dia seguinte.
Jussara e suas amigas, trataram de limpar as salas.
Mainha
apareceu mais tarde com uma janta pronta para o Dr. Rui e ela. Sentaram na
cozinha, onde o clima estava gostoso e jantaram juntos.
- Mainha,
quero montar um esquema de pré-natal. Estou pensando em pedir a Dona Antônia e
Cíntia da Legião, que levantem informações de tudo o que é necessário para
implantação. Ao mesmo tempo, quero que obtenham informações das mulheres que
estiverem grávidas, na cidade, na região e na vila dos pescadores. Podem se
valer da ajuda da Tia Délia. Outra coisa, observei que as mulheres aqui não
usam os modernos absorventes. Ainda se valem dos paninhos. Aliás, foi um parto
tirar essa informação delas. A minha ideia é falar com o filho do Coronel
Cupertino, inclusive com a ajuda de Cíntia, sua mulher, mostrar que se a
Empresa fornecesse esse material, com aulas de higiene íntima que podemos
fornecer, eles teriam uma redução na falta ao trabalho de funcionárias
mulheres. Mainha, levanta quantas mulheres e meninas entrando na menstruação
temos, quero tentar convencê-los a fornecer absorventes para todas.
- Será um
dez, Dr. Rui.
- Por favor,
me chama de Rui.
- Isto é um
sonho se realizando.
“Um sonho sonhado sozinho é um sonho. Um sonho sonhado junto é
realidade.”
13 – A
FILA ANDANDO
No dia
seguinte, novamente grandes filas. Começaram a 7,30 h.
No meio da
manhã apareceu Janaina, acompanhada de duas pessoas da Empresa.
- Quero
conversar com o Dr. Rui.
Jussara, se
espantou com o pedido, olhou para uma das amigas que estava ajudando com cara
de enfado e mandou esperar. Elas sabiam o que representava a presença de
Janaina próxima ao Doutor. Conheciam a previsão do que ocorreria no encontro dos orixás.
Não gostou nada da visita.
Quando saiu
o paciente que estava sendo atendido, entrou, avisou da visita de Janaina e ele
prontamente, até com um ar de alegria, mandou que entrasse.
- Jussara, entra
também, preciso conversar com os dois – disse Janaína.
- Olá,
Doutor, pelo visto muito serviço.
- Sem
dúvida.
- É o
seguinte, eu conversei com Dr. Aristides, se podia fornecer dois dos
computadores encostados e permitisse que o pessoal da empresa viesse e
instalasse um na recepção e outro na tua sala. Ele concordou e estamos aqui
para instalar.
Informou que
se fornecessem o modelo de ficha que estavam usando, ela a poderia informatizar
e com isso, usariam em conjunto e manteriam todas no computador. Depois ensinaria
como fazer back-up. E se o Doutor, dissesse o que gostaria de ter de controle, poderei
montar esquemas para facilitar a coleta dos dados.
-
Maravilhoso, Janaina. Enquanto o pessoal instala os computadores, a Jussara te
mostra a ficha, se puder, depois, me dar alguns momentos de atenção, te digo o
que quero controlar, como catarata, gravides, pré-natal, pós-parto e
tratamentos específicos.
O pessoal,
na espera, achou ruim, pois ficaram uma hora e meia em reunião. A conversa para
o Rui foi proveitosa, pois as ideias apresentadas pela Janaina eram ótimas,
fora que a teve próximo de si, sentindo seu cheiro, o calor do olhar, a
embriaguez do sorriso.
Contou da
abordagem que queria ter, na Empresa, sobre os absorventes e que ela achou ótima,
ficando de ajudar, marcando um horário na Empresa, de preferência com alguém
que se sensibilizasse com a ideia.
No dia
seguinte, Janaina apareceu com o modelo da ficha a ser utilizada e liberou
algumas planilhas de controle para o Dr. Rui. Mal sabiam eles, que essa
aproximação aceleraria o conflito entre Mereciano e o Doutor.
Quatro dias
depois, Janaina marcou, para o Doutor, participando também, de uma conversa com
o contador, velho Januário, com quem já havia trocado ideia sobre os
absorventes, com ele resolvendo abraçar a causa. Tentaria aprovação no gasto
por três ou quatro meses para poder avaliar os resultados.
Na quinta-feira
com a lista de mulheres grávidas e somente atendendo crianças até quatro anos,
com a ajuda de Jussara, Antônia e Cíntia, esquematizaram o pré-natal, acompanhamento
das crianças e iniciaram o trabalho com essa faixa de pacientes.
“Roda
mundo, roda-gigante
Rodamoinho,
roda pião
O tempo
rodou num instante
Nas
voltas do meu coração”
14 – A
BATALHA DOS ORIXÁS
Eram oito
horas da noite, quando Caetano, desesperado, veio bater à porta da clínica. Sua
mulher, Rosário, grávida, que vem participando do pré-natal, teve,
prematuramente, a bolsa estourada e entrou em trabalho de parto. O Dr. Rui
Castro, pegou o material necessário, subiram em seu carro e passaram para pegar
a parteira Dona Margarida e nas carreiras seguiram para a Vila do Encantado.
Caetano morava no meio da vila, com isso, acabaram passando em frente à casa de
Mereciano, que estava sentado à porta.
O Doutor e a
parteira examinaram a parturiente e verificaram que estava próximo de ocorrer,
mas, ainda não era o momento. Dona Margarida, disse ao doutor que acompanharia
no quarto e quando fosse o momento o chamaria. Caetano quis ficar com a esposa.
A sogra de Caetano serviu um café ao doutor e este resolveu sentar em uma
cadeira, na varanda da casa. A noite estava calma, uma leve brisa vinha do mar
e uma lua escancarada a tudo iluminava, branqueando os telhados, as palmeiras e
a areia.
Mereciano
quando viu o carro passando, imediatamente se deixou tomar pelo ódio. Como era
possível esse fio de uma égua vir a vila, passar em frente à sua casa. Só
sentia ódio. Invocado, decidiu tirar satisfação e resolver aquela questão.
Pegou sua peixeira e foi. Quem o viu passando, notou sua expressão alterada, os
olhos saltados, a boca rígida, as narinas salientes e ódio, ódio nos olhos. Só
havia um pensamento em sua cabeça, ela não será minha, mas dele também não. Vou
acabar com esse sujeito.
O vento que
em brisa estava, foi aumentando a intensidade, levantando areia, transformando
o mar calmo em ondas fortes, que avançavam sobre a praia, balançando os barcos
apoitados, uivando sob os telhados, batendo portas e janelas. No horizonte, em alto mar, nuvens negras se
formaram, vindo rapidamente para o continente, encobrindo a noite enluarada,
transformando a noite em escuridão total. Raios começaram a cair acompanhados
de fortes trovões e chuva.
Mereciano andava
na chuva com sua peixeira na mão. Muitos saíram a porta, mal o viam, pela
escuridão e pela chuva, só conseguiam perceber, de tempo em tempo, sua silhueta
pelo brilho dos relâmpagos. A seu lado seguia
o orixá Logum Edé, com sua roupa rodada nas cores azul-turquesa e amarelo-ouro.
Trazia em uma das mãos a Balança Ofá (arco e flecha) e na outra o Abebe (leque
com espelho), fruto da sua dualidade e contradições. Pessoas foram saindo das
casas, no meio da tempestade, e os capazes de enxergar, para acalmar o orixá,
saudavam:
- Logun ô Akofa!
Mereciano,
se aproximou e gritou para o doutor:
- Sai, vamos
resolver nossa questão, não seja frouxo!
Tia Délia,
sentido pela natureza, que havia chegado o momento que tanto temia, correu para
fora e implorou a Mereciano, no meio da tempestade:
- Meu filho
não faça isso. Depois, tu vai se arrependê.
Quis correr
em direção dele, mas o marido a segurou, ao ver o quanto ele estava
alterado. Temeu por ela.
Com a chuva
mal se via o que acontecia, o relampejar, de tempo em tempo, permitia ver a
peixeira em riste, pois nela refulgia o brilho dos relâmpagos e quando o doutor
saiu do alpendre se dirigindo para Mereciano.
Nisso, fazendo frente a Logun Edé surgiu
Obaluaiê, o Orixá das doenças, epidemias e da cura, com sua vestimenta de palha
e búzios. Trazia em uma das mãos o oxaxará, ferramenta com a qual varre as
doenças do mundo e na outra oxi, sua lança de caça, para espantar as energias
ruins. Veio para proteger o doutor.
Os dois se
enfrentam, no meio da natureza em ebulição.
Logum Edé na
sua vaidade, às vezes, podendo ser doce e benevolente, é um deus da surpresa e
do inesperado e Obaluaiê, temido por reger a terra, por ser responsável por
tudo que dela nasce e pela morte. Era o conflito, temido e contado de boca em
boca, que um dia aconteceria. Havia no ar tensão e um cheiro de queimado. O
vento adentrava a frestas das casas e em rodamoinhos movimentava a areia
fustigando os que estavam ao tempo.
Mãe Cida, em
seu terreiro, sentiu o que ocorria, levantou do trono e deitou-se em frente ao altar
e clamou os orixás para acalmar os encantados.
-
Ólodúmaré Asé!
As êbomin, a
ekede, as iaôs, que por lá estavam, seguiram a Iyalorixá. E clamaram por Iamsã, que tem o domínio dos
ventos e das tempestades:
- Eparrei
Oyá!
A água da
chuva, escorria por todo corpo de Mereciano, o ódio vertia dos olhos, enquanto
o doutor, preocupado com a paciente, mas tendo aquela questão o envolvendo, e o
lançando em direção ao pescador, quando, nisso, aparece Caetano a porta da casa
e grita:
- A criança
tá nascendo tão precisando do doutô. Corre, tão te chamando.
Mereciano,
para, ouve aquele apelo desesperado de Caetano, seu primo, passando por sua
cabeça a imagem de Rosário, sua companheira de infância, seu braço enfraquece.
O lado
benevolente de Logun Edé reage ao ouvir o apelo do nascimento. Obaluaiê, faz
sinal de querer entrar na casa, deixando o outro orixá na intempérie.
Logun Edé age
junto a Mereciano. Ele larga a peixeira no chão e foge de vergonha, chorando e
gritando consigo mesmo. O vento para de soprar, a chuva amaina, as nuvens se
retiram e a lua desponta no céu trazendo uma noite de placidez e beleza para
receber o recém-nascido. Obaluaiê se vai.
O doutor que
havia pedido uma roupa de Caetano, para substituir a sua, e atender a paciente,
depois de um tempo, sai é grita:
- É um
menino.
É um viva
geral. Caetano, distribui cachaça entre os que ali estão.
Tia Délia,
corre para casa. Mereciano não estava mais, tinha pegado alguma roupa e disse a
irmã que pedisse desculpa para a mãe e o pai. Ela sabia que deveria estar embarcando
no barco dos peixes da madrugada e seguindo para a capital.
“Caviongô santas
almas do axé
Pai Omolu que chegou pra benzer
Atotô
Obaluaiê
Caviongô santas
almas do mar
Pai Omolu que chegou pra dançar
Atotô
Obaluaiê”
15 – ZUNZUNS
Nas semanas seguintes,
a noite da tormenta, era o comentário principal. Na venda de Mainha, na Vila do
Encantado, entre os pescadores, nas empresas do Coronel Cupertino, nos currais
de cabras, nos plantios de mandioca, nas colheitas do babaçu, da carnaúba, na
fila da clínica, entre os amantes nos coqueirais.
Os que foram
capazes de enxergar, guardaram os comentários para os iniciados. O povaréu,
pelo contrário, contava o que alguém viu, ou alguém que ouviu, de alguém que
escutou de alguém que viu. E como diz a sabedoria popular, quem conta um conto,
aumenta um ponto.
Era a
peixeira de Mereciano, que a ergueu no ar para desferir no doutor, mas foi
detida, pela mão de um encantado. Os raios que eram desferidos pelo Obaluaiê,
contra Logun Edé, que os detinha com o Ofá. A presença do Ólodúmaré que
apaziguou os orixás e acalmou o coração de Mereciano. Eram mil histórias,
fantasiosas, no geral, e muito pouco próximas do real.
Como o
assunto fez mesa entre os pescadores, a notícia correu toda a costa. Cordelistas
de grande estofo, apresentaram em seus versos o “Grande Embate”, “A Batalha dos
Orixás”. Esses cordéis, fizeram sucesso
nos mercados do litoral norte e nordeste. Estavam tanto no Mercado de Ver o
Peso em Belém, como no Mercado Modelo em Salvador. Na feirinha Beira Mar de
Fortaleza e na José Avelino, por muito tempo, o cordel da “Guerra dos Orixás”
foi o mais procurado. Foi um dos temas mais cantado e recantado, entre os
poetas do Sertão do Pajeú.
Enquanto
isso, no meio de todo esse palavrório, Areia Santa, foi voltando ao seu dia a
dia. O assunto foi se recolhendo as mesas dos botecos e na falta de assunto das
conversas diárias. As filas se fizeram presente na porta da clínica, os
pescadores saíram para o mar, o entre e sai da loja de Mainha, a molecada jogando
bola, as missas do Padre Inácio, as beatas da Legião Coração de Jesus, os
empregados do Coronel Cupertino, a vida seguindo o seu diário.
O Dr. Rui
Castro, iniciava o expediente às 7,30 h, quando dava, parava para almoçar, na
casa de dona Nena, ou ela levava, os pratos embrulhados em uma toalha de mesa. Dizia:
- Vosmecê
precisa come bem pra tê saúde, pra atende os que não tem saúde.
Como as
filas foram diminuindo, o Dr. Rui conseguia muitas vezes parar entre as quatro
e cinco da tarde. Quando acontecia, colocava um calção e com a cachorra Rubi
corria na praia e depois entrava no mar, nadando por um tempo. As moças,
gostavam de encontrá-lo nessa jornada para apreciarem sua beleza e físico.
Depois de um
banho, seguia para o comércio de Mainha, sentava em uma das mesas de frente
para a praça, tomando um suco ou uma cerveja, comendo o prato do dia. Podia ser
uma galinhada, bobó de camarão, peixe frito, sarapatel, perna de cabrito.
Mainha
havia, recentemente, trazido de São Paulo, Zuza, cearense de Sobral, que
trabalhou em renomados restaurantes como Le Casserole, Cantina do Marinheiro,
Lellis Trattoria e outros mais. Até sushiman, no bairro da Liberdade, em São
Paulo, ele fora. Quem o indicou foi Januário, contador do Coronel Cupertino,
seu primo, que sabia que queria voltar para o Ceará e viver em uma cidade
tranquila, com a mulher.
No final do
dia, vários empregados das empresas do Coronel, por ali apareciam e se
regalavam com o prato que Zuza preparava para a janta. No almoço, não havia
movimento, pois, o pessoal comia nas empresas.
Dr. Rui
Castro, tinha uma mesa reservada, em um dos cantos, onde podia apreciar a
praça, ver e escutar o mar. Mainha, normalmente, sentava um tempo com ele e
conversavam, quando não jantavam junto. Falavam de tudo, mas tinham uma
especial preocupação com a saúde da cidade. Vacinação, a vinda de um barco da Secretaria da Saúde,
com estrutura para atendimento dentário e oftalmológico, medicamentos,
ortopedia e por aí iam. Eram muitas
ideias, que gradualmente, conseguiam que fossem realizadas.
Quem
aparecia no final de dia, ocasionalmente, era Janaína na volta do trabalho.
Sentava-se com Mainha e o doutor e também participava de várias dessas ideias.
Mainha, muitas vezes, saia da mesa e deixavam os dois conversando. Dava gosto
de ver a conversa alegre, a troca de olhares amorosos. Para Mainha, estava
claro que os dois estavam apaixonados.
- Dr. Rui,
como veio para aqui em Areia Santa? – perguntou em uma das ocasiões Janaína.
- Uma hora
dessas eu te conto.
Porém, numa
dessas conversas, Mainha contou ao doutor, que teve conhecimento por um morador
da Vila do Encantado, que pescadores encontraram Mereciano no cais em
Fortaleza, e que em alto e bom tom, falou que voltaria a Areia Santa para levar
Janaína, caso contrário a mataria e ao doutor, pois, não podia imaginar os dois
vivendo juntos.
Mainha,
salientou que não colocava fé na informação, por quem havia vindo. Agostinho,
no seu meio, é uma pessoa que não goza de confiança no que fala. É alguém
amargurado com a vida, pelos insucessos que teve no amor e no trabalho, e sente
prazer em ver pessoas desnorteadas e sofrendo, com os boatos que gosta de
repassar.
- Porém doutor,
é conveniente tomar cuidado. Cautela e canja de galinha não fazem mal a
ninguém. Vou repassar essa informação para Janaína – ressaltou Mainha.
A informação
ficou martelando na cabeça de Rui. O temor não era por ele, mas por Janaína.
Não se perdoaria se algo acontecesse com ela. Bastava, a dor da perda que
sofreu de um ente querido, aos seus cuidados.
Com isso
evitava Janaína e não dava espaço aos sentimentos, que sabia que os dois
nutriam pelo outro. À noite, o sono se tornava difícil com a lembrança de seu
sorriso, dos olhos, dos lábios dizendo seu nome.
Janaína, por
seu lado, também sofria. Procurou Mãe Cida e pediu que jogasse os búzios. Ela
dizia que haveria uma grande reviravolta em sua vida. Não conseguia prever se
seria algo bom ou ruim. Com isso, Janaína continuava na angústia em relação ao
doutor e a Mereciano.
Passado mais
de dois meses do acontecido com os encantados, Mainha apareceu em meio de uma
manhã na clínica, nervosa interrompeu a consulta que Dr. Rui estava fazendo e
contou:
- Mereciano
acabou de desembarcar. Foi para a casa da mãe. Vou providenciar um pessoal para
te proteger.
- Não quero
nada disso. Tomarei cuidado.
No dia
seguinte da chegada, Mereciano seguiu para a clínica.
- Quero fala
com o dotô.
- Está
atendendo, quando acabar o senhor entra – respondeu Jussara.
Entrou
apavorada na sala de atendimento e informou o doutor da visita. Ele tratou de
acalmá-la e que logo a seguir o atenderia. Jussara, deu um jeito de mandar
recado para Mainha, mas, esta já sabia, pois muitos o viram indo para a
clínica. Tratou de seguir para lá levando, dois dos seus funcionários que eram
pau para qualquer obra.
“O homem
que diz “dou” não dá
Porque
quem dá mesmo não diz
O homem
que diz “vou” não vai
Porque
quando foi já não quis
O homem
que diz “sou” não é
Porque
quem é mesmo é “não sou”
O homem
que diz “estou” não está
Porque
ninguém está quando quer
Coitado
do homem que cai
No canto
de Ossanha, traidor
Coitado
do homem que vai
Atrás de
mandiga de amor”
16 – O
ENCONTRO
Janaína, que
estava no escritório da empresa do Coronel Cupertino, onde trabalhava, recebeu
o recado da ida de Mereciano para a clínica. Ficou em grande desassossego.
Recolheu-se a um canto e rezou para sua protetora, Iemanjá.
Tia Délia, o
viu saindo, não sabendo para onde ia. Contara, na noite anterior, que viera
para solucionar assunto pendente. Queria dar um fim nele. Quando contaram para
onde o filho fora, ela acendeu uma vela e se ajoelhou em frente ao pequeno
altar que tinha em casa. Lá estavam Iemanjá, Olodumaré e em um espaço especial Nossa
Senhora e o grande Oxalá, Jesus Cristo.
Corisco, que
estava com Mainha, tratou de pegar sua peixeira e com ela foi para a clínica. Oxente,
lembrou todo o trabalho que tiveram para preparar a casa e montar a clínica.
Ela não poderia ir água abaixo, por causa de uma pessoa. Estava pronto para o
que desse e viesse.
Um povaréu
se formou na praça. Mainha se postou na porta e não deixou ninguém entrar, só o
Corisco que foi ver se estava tudo bem. Mereciano aguardava na sala de espera.
Várias pessoas, que aguardavam sua vez, apresentavam olhares de preocupação.
Mereciano parecia tranquilo.
Quando a
pessoa que estava sendo atendida saiu, Corisco entrou rapidamente na sala.
- Doutô, qué
que eu fique aqui junto do sinhô.
- Não
Corisco, obrigado. Fique tranquilo, tudo vai terminar bem.
Jussara fez
Mereciano entrar na sala, logo a seguir puxou seu terço e começou a rezar.
- Olá,
Mereciano, tudo bem? Sente. Em que posso te atender?
- Doutô foi
mal, aquela noite eu tava com os olhos cheios de ódio. Tu não tinha feito nada
pra tirá Janaina d’eu, não tinha culpa das coisas. E se o coração da Janaína
parou de batê por mim, também não posso fazê nada, ninguém manda no coração de
ninguém. Nesse tempo fora, eu passei a frequentar o Terreiro de Mãe Dulcimar,
onde tenho participado ativamente. Lá eu pude me aconselhá e pensá. Acabei
sabendo que tem fuxico que eu vou volta prá matá os dois. Fica sabendo que isso
não vai acontece. Num posso muda o sentimento de ninguém, não posso matá uma
pessoa que ainda tenho muito querê. Me desculpá.
Rui viu um
homem, falando com a sinceridade do coração. Quanto deve ter sofrido. Como deve
ter sido difícil vir falar com ele, ser observado por toda a cidade. É um homem
bom, que ficou cego pela paixão. Sentimento que não permite ver a realidade,
mas somente o que as emoções desejam. Teve vontade de levantar e abraçá-lo, mas
por aqueles lados, abraço de homem para homem, só com o pai, filho, casamento e
velório.
- Mereciano,
eu lhe quero bem, pode contar comigo.
Quando ele
saiu, houve um desafogo entre as pessoas. O viram descer a praça, com os ombros caídos,
mas com a cabeça levantada. Tinha outro olhar, de paz consigo e com seus
santos. A praça se esvaziou, só os comentários é que não.
Mainha
entrou na sala do doutor e este contou a conversa que tiveram. Ela se sentiu
aliviada, pois, estava numa gastura danada. Agora, não via a hora de encontrar
Janaína e contar o que houve. Ela precisava se libertar do medo, do temor.
“Você que
sabe demais
Meu Pai
mandou lhe dizer
Que o
tempo tudo desfaz
A morte
nunca estudou
E a vida
não sabe ler”
17 – O AMOR
Nos dias
seguintes Areia Santa parecia uma cidade mais alegre e cheia de luz. Pelo menos
aos olhos de Janaína e Rui. Janaína passou a aparecer todos os finais de dias
na mercearia, para conversar com Mainha e principalmente com Rui. Agora, além
dos risos, dos olhares, haviam pequenos toques de mão. Havia uma cumplicidade
nos seus encontros. Eles irradiavam felicidade. Entretanto, uma barreira se
colocava entre eles, pelo respeito, pelo receio, por várias razões que a razão
não conseguia explicar. Havia uma tênue separação, composta de conceitos que
necessitavam ser jogados por terra. Eles inclusive se tratavam com formalismo.
- Doutor,
estou encasquetada, como veio parar aqui em Água Santa? – pergunto Janaína.
- Eu tinha
um consultório em São Paulo com uma boa clientela. Era casado. Cresci profissionalmente. Tinha
financeiramente uma boa situação. Meu sogro, também era médico, e me apoiou
muito em minha carreira. Tudo ia maravilhosamente bem. Tivemos um filho,
Samuel. Quando, com sete anos, ele rapidamente adoeceu. Era meningite aguda, mesmo tendo sido
vacinado de pequeno. A doença evoluiu rapidamente. Meu sogro que estava em
viagem, retornou rapidamente. Quando chegou, não havia o que fazer. Em quatro
dias veio a falecer.
- Perder um
filho é uma dor muito grande. Imagino quanto maior, por ele estar em tuas mãos.
- Janaína,
nesse momento, começou o grande calvário de minha vida. Minha mulher me culpou
pela morte, mesmo meu sogro tendo dito, que eu havia feito tudo correto. Fora
uma fatalidade. Eu também comecei a me culpar, tentando encontrar no que errei.
Eu o adorava. Minha vida girava em torno dele. Brincávamos, corríamos e riamos
muito. Minha mulher em alguns momentos ficava enciumada, pela atenção minha ao
garoto e a retribuição que ele dava. Quando ela o perdeu, sentiu o quanto
deixou de dar e que não mais poderia dar. O sentimento de culpa que caiu sobre
ela, foi canalizado para mim. Tornou-se fria, seca, chorando pelos cantos e
manifestando que eu havia matado seu filho. Saiu a separação, deixei tudo para
ela. O casamento durou mais de 10 anos,
foram anos maravilhosos. Eu não quis nada do que tínhamos.
Eu mal
comia, morria aos poucos, não tinha vontade de viver. O sentimento de culpa em
mim era maior que a razão, me considerava o principal responsável, apesar de
todos dizerem que fora uma fatalidade. Eu pensava que deixara a vida de meu
filho escapar pelas minhas mãos. Só pensava onde e quando eu errara. Não queria viver. Não queria sair de casa.
Pouco a
pouco com ajuda de meu irmão e de amigos médicos e psiquiatras, fui saindo do
buraco em que me meti. No início, através de medicamentos para controlar a
depressão, vitaminas para repor o que perdia, injeções para recompor minha
condição física, foram aos poucos me tirando daquela letargia, do desânimo que
me dominava. Foram oito meses para sair do inferno e retornar a vida.
O medo de
sair de casa foi sendo suplantado, a vontade de morrer, foi sendo substituída
por pequenas alegrias que a vida me apresentava, no amor das pessoas, no apoio,
na vida que se mostrava a minha volta, na natureza que sempre adorei.
Resolvi,
após longas conversas com meu psicólogo, meu irmão e minha cunhada, que tinham
medo das minhas reações, sair de viagem. Decidi correr o país pelo litoral,
pois, sempre fui amarrado no mar e deixar me levar. Ser o que a vida viesse a
me oferecer.
No Espírito
Santo, encontrei uma comunidade budista, onde fiquei um bom tempo. Aprendi a me
reequilibrar, a meditar, o que tem me ajudado.
Assim,
depois de dez meses, cheguei por aqui. Encontrei, neste local, uma paz que me
reconforta, e pessoas amigas. E agora um objetivo de vida.
Lágrimas se
formaram nos olhos de Rui, que contava isso tudo olhando para o infinito. Ao
terminar, volveu seus olhos para Janaína, com um olhar de quem pedia desculpa a
vida, e encontrou no dela, lágrimas e um sorriso de compreensão. Ela se
levantou da cadeira, deu volta a mesa, pegou seu rosto entre as mãos e
delicadamente depositou um beijo em seus lábios. O abraçou, prendendo sua
cabeça em seu peito e com um carinho na cabeça, disse:
- Tu é um
homem bom, um homem de amor.
Fez um
carinho em seu rosto e saiu. Mainha que tudo via, à distância, tinha os olhos
marejados e um sentimento de amor que queria explodir em seu peito. Desejou
ardentemente, que o doutor fora feliz e tinha certeza que Janaína era a mulher
certa para ajudá-lo.
“Ouve
como o silêncio
Se fez de
repente
Para o nosso
amor”
18 – OBALUAIÊ
O Padre
Inácio, resolveu com as mulheres da Legião, fazerem uma quermesse, seria em um
final de semana que tinha um feriado na segunda. Era necessário angariar
dinheiro para uma série de reparos a serem feitos na igreja.
A cidade
vivia um clima tranquilo. Três meses se passaram desde a noite fatídica. Um barco, com estrutura para atendimento
dentário e oftalmológico, estava certo que viria no próximo mês e ficaria uma
semana e meia aportado na cidade. A notícia correu entre a população, inclusive
do arredor. Mainha, ficou responsável de
estruturar o atendimento do pessoal de bordo, em relação ao almoço e janta. Ela
e o Rui estudavam o esquema que fariam para viabilizar os óculos, que fossem
prescritos.
O momento,
pensou Padre Inácio, era propício para uma quermesse, com bingos, barraquinhas
de comidas e um belo arrasta pé. Mainha ofereceu, por sua conta, a contratação
do grupo musical. A população se reuniu para preparar os enfeites.
A notícia
correu pelo litoral, da mesma forma que a festa do padroeiro, muitos vieram e
acamparam nas proximidades. Com isso, a cidade foi tomada de alvoroço com tanta
gente, já no início da semana da quermesse.
Houve
pessoas, que aproveitando a vinda a Areia Santa, resolveram se consultar com o
doutor. Diziam que além de bonito, era
bom no que fazia. Rui teve uma semana atribulada, mal vendo Mainha, que estava
envolvida nos preparativos, inclusive de salgados e doces para venda nas
barraquinhas. Sua casa fora tomada por mulheres, tanto da Legião, como não.
Janaína, também evaporara.
No sábado do
início da quermesse, Rui teve bastante trabalho, inclusive, avisou que
atenderia domingo à tarde. Pensou em resguardar a manhã de domingo, pois
desejava se divertir na quermesse.
À noite, se
preparou. Fez a barba, tomou um belo banho e se perfumou. Colocou uma roupa
passada e que sabia que lhe caía bem. De repente parou e percebeu, que estava
fazendo tudo aquilo porque queria encontrar Janaína e impressioná-la. Pensou, que sem-vergonha estou sendo e riu.
Se o doutor
se preparou, Janaína, não ficou por menos. Quando a viu, conversando com
algumas pessoas, acreditou ter visto um anjo caído do céu. Seu coração disparou
e sentiu um vazio no estômago. Como poderia ser? Estava cansado de se
encontrarem. Ela estava simplesmente linda. O cabelo solto com uma tiara
enfeitada de pequenas flores, um vestido branco, tomara que caia, ressaltando a
beleza da sua pele, que contrastava com o branco da vestimenta, um olhar cheio
de brilho e um sorriso que cabia o que há de bom no mundo.
Como se
houvesse um ímã os atraindo, foram ao encontro um do outro com sorrisos de
alegria.
- Pensei que
o doutor não viesse, com tanto serviço que está tendo.
- Não
poderia perder a festa, fora que não teria a oportunidade de te ver tão linda.
Ela corou,
lhe deu a mão e o puxou rindo e falando:
- Bora ver
as barracas.
De mãos
dadas, passaram por elas, cumprimentando, fazendo um gracejo, beliscando alguma
das guloseimas. Em uma barraca, meninas, vendiam pequenos cravos feitos de
papel. Lindos, pareciam originais. Rui comprou um e colocou no cabelo de
Janaína.
- Não há
lugar melhor para ficar.
Os dois já
eram o grande comentário da noite. Foram dançar. Dançaram duas músicas
seguidas. Foram até a mesa de Caetano e Rosário, que levavam o pequeno Rui
(puseram seu nome em agradecimento) nascido na tão falada noite. Estácio e
Jussara estavam juntos. Com Jussara tentou uma dança, e ela lhe deu, novamente,
um nó nas pernas. Foi só risada.
Uma sequência
de músicas lentas começou a ser tocada. Com Janaína foi dançar. Rosto com
rosto, corpo com corpo. O perfume dela. O perfume dele. Olharam-se nos olhos e
se beijaram. Aquele momento era como se a música era só para eles, o brilhar das
inúmeras lampadinhas serviam para expor seus rostos e o brilho dos olhares, a
brisa envolvendo os cabelos de Janaína como uma carícia. A mão dele
pressionando levemente suas costas. O roçar dos seios e das pernas de Janaína
mostrava ser realidade e não sonho o que acontecia. O mundo parou só havia
eles. A festa era deles. Assim parecia, pois, algumas pessoas, pararam de
dançar e se encantaram com o querer dos dois.
Rui pegou
sua mão e a tirou da dança e saíram caminhando, com o braço em torno de seu
ombro. Foram para a casa do doutor. Ela entrou como que realizando um sonho de
algo que sempre ansiou. A levou para o quarto, a abraçou, beijou nos lábios
entre abertos, onde línguas se tocaram e sabores novos foram provados. Ela
desabotoou sua camisa, que foi ao chão, e correu a mão pelo peito, ombro e
pescoço. Pequenos beijos foram depositados. Ele soltou seu vestido, que escorregou
pelo corpo, depositado aos pés. Lá estava ela, linda, maravilhosas. Pequenos
seios e mamilos intumescidos. Beijos, carícias. Sua mão desceu e lentamente foi
retirando a calcinha branca que vestia. Um pequeno novelo cobria seu sexo. Ela
tirou o restante da roupa e observou a beleza do seu corpo e seu sexo,
mostrando firmemente o desejo que o tomava. Deitaram na cama, ao longe o ruído
da festa, mas, entre eles só se ouvia as palavras e os gemidos de desejo.
Lentamente a possuiu. A marca do momento em pequena mancha no lençol. Foram da
terra ao céu. Beijavam-se e sorviam seus corpos, matando a sede de desejo e
amor a tanto tempo represados. O mundo se bastou entre as paredes daquele
quarto.
No terreiro
de Mãe Cida, começaram o som dos atabaques, do adja, o repique do agogô e o
abê. As êbomim e as abiã, iniciam o acompanhamento nas palmas. Os filhos e
filhas do terreiro, com suas guias, nas cores de seus orixás, se põem a dançar,
dispondo o cavalo para ser montado pelo santo. Vão sendo incorporados.
De repente Obaluaiê
aparece com sua vestimenta de palha e búzios, o azó-iko e dança opanijé.
Saudações são exclamadas:
- Atotô
Obaluaiê.
Veio
comemorar. Pipocas são lançadas.
Para mais
alegria da festa, Iemanja também incorpora, com seu abebé nas mãos.
É a alegria por
Janaína, de quem é madrinha. Também veio festejar.
- Odoia,
Yemanjá, odoia
A noite é de
festa, os orixás estão felizes. A lua branqueia a areia e as águas do mar. Os
barcos no seu doce balanço, como criança em colo de mãe. Noite calma. Brisa
leve.
- Saravá!
O canto
continua:
- Vou
chamar minha mãe, eu vou. Vou chamar minha mãe, eu vou. Na beira do mar.
Vou
chamar minha mãe, eu vou. Vou chamar minha mãe, ela é Iemanjá, a rainha do mar.
domar