sábado, 2 de março de 2024

A BATALHA DOS ORIXÁS

 





1 - O DESCONHECIDO

Esta história, transcorre em finais da década de 1970, em Areia Santa, cidade que serviu de cenário para o conto “Quem Comeu Mainha?”. Nesse conto, o meu colega escritor, ao escrevê-lo, não se manteve, simplesmente, na transcrição dos fatos, mas, tomou partido da personagem. Comportamento que não concordo. Mas, isso, são águas passadas.

Areia Santa, cidade de menos de 3000 almas, como costumavam dizer na região, situada na costa norte do Ceará, próxima do Piauí, há quatro horas de ônibus de Fortaleza, por um bom pedaço de estrada de terra. O ônibus, que pouco tempo atrás, só fazia esse percurso uma vez por semana, atualmente o faz duas vezes.

A cidade, cresceu de uma vila de pescadores, sendo um lugar paradisíaco, com suas praias, dunas, coqueirais e remansos de águas, que se formam no deságue do rio Itapioca, que desce da Serra de Ibiapaba, junto ao mar.

A população, na sua grande maioria, vive da pesca, enquanto outros nas fazendas de cabras ou nas plantações de milho, mandioca, banana, babaçu, carnaúba ou nos grandes coqueirais. Quase a totalidade dessas atividades, nas mãos do Coronel Cupertino.

Esporadicamente, em suas praias surgem alguns turistas, inclusive grupos de hippies. Acampam na areia, pegam água no rio e muito pouco aparecem pela cidade. Fazem suas festas, seus banhos de mar, muitas vezes pelados, gerando comentários na cidade e assanhamento nos mais jovens, que se escondem atrás das dunas, para observá-los e fantasiar suas vidas.

Raramente algo de novo acontece na cidade, porém, em breve será cenário de forte conflito entre orixás, abalando a mesmice do dia a dia.

Repentinamente, no meio da manhã, debaixo de um sol escaldante, quando a cidade mais parece fantasma, uma caminhonete cinza, toda suja de terra, com uma boa parte da caçamba com carga, deu uma volta na praça, seguiu em direção ao bairro do Encantado, vila onde a maioria dos pescadores mora, passou por ele, pegou um pedaço de praia, seguiu um bom trecho e depois retornou. Na praça parou em frente ao principal estabelecimento.

Era um indivíduo de olhos azuis, 1,70 cm, aparentando uns 40 anos, cabelo castanhos, necessitando corte, assim como a barba. Bermuda suja, óculos escuros, boné, camiseta sem manga e botina desgastada nos pés.  Um sujeito apetrechado, como dizem na região.

- Bom dia, seu Moço, meu nome é Mainha, no que posso te ajudar? Está perdido por estas bandas?

O Moço encostou no balcão, tirou o chapéu e os óculos e ficou admirado pela beleza da Dona Mainha.

Devia ter, aproximadamente, a sua idade. Era um pouco mais baixa que ele, cabelos pretos, lisos até os ombros, pele jambo, olhos negros com o brilho de um dia ensolarado. Os lábios, possuíam um sorriso encantador, com a medida certa para um beijo. Vestido ajustado, mostrando o ondeado do corpo, um pequeno decote transmitindo sensualidade.

Mainha, observou, que ele era um pouco mais alto que ela, pele morena queimada do sol, olhos azuis roubados do mar e nos lábios, constantemente pendurado, um sorriso. Parecia um anjo.

Mainha era uma mulher vivida. Tivera uma tórrida paixão durante um tempo de sua vida, apesar de um amor profundo por Deoclécio, seu marido. Para quem tiver a curiosidade de saber mais, basta a leitura do conto “Quem Comeu Mainha?”

Seu marido, morrera há cinco anos, deixando o estabelecimento, onde de tudo se vende, mantimentos, bebidas, medicamentos, defensivos, veterinária, ferramentas, o que se fizesse necessário. É o ponto principal da cidade onde Mainha reina. É a viúva mais desejada.

Os olhares se cruzaram e simpatizaram, um com o outro.

Mainha avaliou: esses olhos azuis guardam no fundo uma dor escondida.

O moço pensou: Mainha tem pequenos sulcos no rosto, marcas de momentos sofridos, que imprimem como em ferro, sinais da sua passagem. O que a faz mais lindas, é, eles estarem cobertos com camadas de alegria e simpatia, maquiando o passado e a fazendo mais linda. Seus olhos transmitem bondade.

Voltou a perguntar no que podia lhe atender. Ele contou estar viajando, sem compromisso, pelas praias do nordeste. Gostaria de saber, de um bom lugar, para encostar sua caminhonete e usufruir da natureza e do sossego, não incomodando ninguém.

Indicou que passasse pelo lado da vila dos pescadores, alcançasse a praia e seguisse à direita, por uns dez minutos. Estaria na desembocadura do Rio Itapioca, com isso teria água fresca e limpa, para beber e tomar banho.

Ela lhe ofereceu café e uma broa de milho. Ficaram em um bate-papo de amenidades. De ambos os lados sorrisos e gracejos. E um sentimento de empatia.

Todos esses detalhes correram a cidade.  Tão logo, ele parou no estabelecimento de Mainha, ajuntou molecada e várias pessoas, foram até o estabelecimento comprar um nada, só para assuntar, e os comentários acabaram correndo.

Não se falou outra coisa, no colo quente dos fuxicos, no diz que diz, de quem nada tem a dizer e muito pouco sabe do que diz. Na cidade e na Legião do Sagrado Coração de Jesus, onde Mainha participava, partidos foram tomados. A grande maioria a defendia, mas as despeitadas, as secas de amor, aproveitavam para a desmerecer.

Diziam, no passado ter tido caso com um advogado, sendo do conhecimento do marido, coisa de pouca-vergonha. Mas, ninguém viu e ninguém, conhece alguém que viu. Dizem, que é conversa de mal comidas.

O assunto diminuiu de ritmo, pois o Moço ficou um bom tempo longe da cidade. Algumas solteiras, a contra mando das mães, se juntaram, e atrás das dunas foram observar o querubim (era por algumas assim chamado). Viram, ele ficar um bom tempo sentado em uma esteira com as pernas cruzadas, olhos fechados, como que pensando.  Mesmo quando sua cachorra latia ele não se mexia.  A alegria delas é quando tomava banho nu, no mar ou no rio

Sim, tinha uma cachorra. Conforme quem contava, variava de tamanho. Falaram, que quando chegaram perto, ela rosnou e mostrou os dentes pontiagudos, protegendo-o. Era branca com manchas marrões, uma pele, por baixo da pelagem, avermelhada, e tinha em volta dos olhos, linhas negras como maquiagem. Diziam ter cara do demo. Seu nome era Rubi.

 

“É Zun, zun, zun, zun, zun, zun capoeira mata um,

Zun, zun, zun, zun, zun, zun, capoeira mata um

Zun, zun, zun, zun zun, zun, diz, que diz mata um”

 

2 - ORIXÁS

Em um dos dias, o Moço, parou na Vila do Encantado, bairro dos pescadores, querendo comprar peixe. Os homens, estavam na lida, no mar. Alguma das mulheres, atraídas pelos comentários ouvidos e com certo assanhamento, se aproximaram, dando informações desencontrada na venda dos peixes. Tia Délia, por ser uma das mais antigas e respeitadas da vila, tratou de atendê-lo. Perguntou, o que o Moço queria e apresentou os peixes que poderiam lhe satisfazer.

Feita a venda, pela simpatia e educação do Moço, o convidou para almoçar com ela mais Demécio, seu marido. O Moço aceitou e se mostrou bastante simpático. Contou morar em São Paulo, mas, resolveu largar tudo o que fazia e sair de carro pelo litoral do país. Já havia passado por vários estados e praias até chegar ali. 

Demécio contou como a vila começara com a pesca de curral, em que se faz um cercado, esperar baixar a maré e coletam-se os peixes preso. Falou que esse tipo de pesca teve uma forte queda e aí se desenvolveu a pesca de linha, por isso, hoje há tantos barcos no porto, variando conforme o tipo de pesca que se faça.  Tem os que só trabalham com a pesca de alto mar e outros próximos à praia. Na linguagem dos pescadores, pesca no mar de fora e pesca no mar de terra.

Depois da deliciosa pescada, acompanhada de uma branquinha e doces de caju, jaca, e de um cafezinho, o Moço se foi agradecendo a acolhida. Tia Délia ficou impressionada pela beleza, o azul dos olhos, as boas maneiras e a sensação que ele não era o que aparentava, e que por trás daquela tranquilidade havia sentimentos em convulsão. Havia algo de estranho.

No dia seguinte, Tia Délia pediu a sua comadre Dada acompanhá-la até a Mãe Cida, respeitada Iyalorixa do Terreiro do Encantado.

Feito os cumprimentos e as pequenas ofertas, tia Délia, pediu para Mãe Cida jogar os búzios, pois queria esclarecer a impressão pesada, que ficou, do Moço.

Depois da reza e de saudar os orixás, jogou os búzios. Na leitura, soube que ele veio encaminhado por Iemanjá. Tinha corrido várias beira-mares, não encontrando, em nenhuma, local que aplacasse as angústias do coração. Era protegido por Obaluaiê, orixá das doenças, das pragas, cultuado na figura de São Lázaro.

- Oxente, das doenças e pragas?

- Apois, é o que diz os búzios. Vai tê uma batalha entre Logun Edé, Orixá da Caça e da Pesca, filho de Oxóssi e Oxum, contra o Obaluaiê, orixá do Moço. Vai sê em noite clara, que vai se transformá em escuridão com vento, tempestade, raios e trovões. Dessa briga, um dos dois vai ganhá.

Tia Cida voltou para casa preocupada, sabia que havia pescadores que eram protegidos de Logun Edé, inclusive seu filho Mereciano, só não entendia o porquê do conflito.

O Moço, de vez em quando, aparecia em Mainha, ela oferecia um café e algum dos salgados ou doces, que por ali tivesse: cocada, pamonha, cuscuz, bolinho de chuva. Passavam um bom tempo conversando, rindo e as pessoas dizendo: olhos nos olhos.

Na Vila do Encantando, de tempo em tempo, há um almoço comunitário, com peixes e frutos-do-mar e convidam amigos. Tia Délia, resolveu convidar o Moço, seria um bom dia para ele conhecer os pescadores, pois, não estariam trabalhando. Mandou recado.

O Moço ao chegar, cumprimentou seu marido Demécio, que o apresentou ao outros. Tia Délia observava de longe, esperando para dar uma atenção. Quando seu marido apresentou o Moço ao filho Mereciano, se abraçaram, se cumprimentaram e riram, mas, como uma faca espetando o estomago, adveio uma gastura, e Tia Délia sentiu uma nuvem negra sobre ambos. Não soube o porquê, pois, estavam lá se abraçando, cumprimentando e brincando um com o outro. Mas como sempre dizia: felicidade é um pontilhado de momentos, em uma colcha de paz, corroída por invejas, medos e angustias, podendo se desmanchar numa volta da vida.

Tratou de se desfazer do mal-estar e voltar para alegria da festa. Pensou: cuida do momento, que o futuro por si se cuida. Pegou uma bandeja e saiu a servir, aproveitou e cumprimentou o Moço. 

Nisso, como um rodamoinho de alegria, chegou Janaína. Morena faceira, cabelos negros sobre os ombros, risonha, em vestido branco, ressaltando o jambo da pele e o castanho-claro dos olhos. Entrou cumprimentando cada um com uma palavra, um sorriso, quando não um abraço e um beijo. Em Mereciano,  um beijo de querer nos lábios, que a puxou para sentarem juntos. Negou, iria com as amigas, deixando os homens mais à vontade. Mereciano a apresentou ao Moço e quando seus olhares se cruzaram, algo aconteceu. Janaína ficou presa no olhar, deixando toda a vivacidade com que chegou, se prostrar. O Moço ficou encantado pela faceirice, a beleza, mas, notou o mal-estar da apresentação, desviou o olhar e parabenizou Mereciano pela simpatia da noiva. Este notou o choque que houve, ficou aperreado, com sua face se transformando, acabou, depois, se escondendo na conversa com outras pessoas.

Tia Délia que tudo observava entendeu onde poderia ocorrer o conflito entre os orixás. Janaina, guardou sua alegria e passou o almoço todo, em pequenas conversas com as amigas.

 

Ei ei ei eh eh ah

Ei ei ei ah

Venho para abrir as portas

O amor é quem me traz

O que há de ódio nessa casa

Meia volta e nem olhe para trás

Ei ei ei eh eh ah

Ei ei ei ah”

 

3 - O SEGREDO

O Moço em uma das visitas pediu para ter uma conversa em particular com Mainha. Foram para o escritório no fundo. Mainha passou pela geladeira, pegou uma jarra de limonada e uns salgadinhos.

- Preciso te contar um segredo. Promete guardar?

- Eita, seu Moço, quando conhecer a minha vida, vai saber que guardar segredo é o que melhor sei fazer.

- Vou te contar minha história

Os curiosos de fora, olhando pelo vidro a sala de Mainha, viram se aproximarem, como se falasse em voz baixa. Por um bom tempo, notaram que Mainha, só o escutava, alterando a expressão conforme o que ouvia.

Ele parou de falar e lágrimas correram pelas faces. A voz embargada não conseguia sair. Mainha, levantou, foi por trás da cadeira e o acarinhou nos cabelos. Depois, o olhou de frente e viu um homem derrubado pela vida, o abraçou junto ao ventre e o deixou chorar em seu colo, sem dizer uma palavra. O coração de Mainha, que guardara dentro de si inúmeras dores passadas, com mais aquela, transbordou pelos olhos numa emoção incontida e chorou junto.

Passado longos momentos, Mainha, voltou a sentar frente a ele. Sentiu o grande buraco em que estava. Naquele momento, era alguém que estendia a mão e pedia socorro. Na vida, ela já se sentira assim, inúmeras vezes. Tratou de segurar as mãos dele entre as suas, sabia o quanto, a simples presença de um ombro amigo, vale mais que palavras.

Os dois começaram lentamente a controlar os sentimentos.

- As acusações e eu mesmo me sentindo culpado, apesar de todos dizerem que fora uma fatalidade, batiam fortemente em mim. O sentimento de culpa era muito grande, me considerava o principal responsável. Passei a não querer viver, só pensava em encontrar onde errei. Mal comia, mal dormia era um verdadeiro Zumbi. Não queria sair de casa.

Pouco a pouco, com ajuda de meu irmão e de amigos médicos e psiquiatras, fui saindo do buraco em que me meti. No início, por meio de medicamentos para controlar a depressão, vitaminas para repor o que perdia, injeções para recompor minha condição física, fui gradualmente saindo da letargia, do desânimo que me dominava. Foram oito meses para deixar o inferno e retornar a vida.

O medo de sair de casa foi sendo suplantado, a vontade de morrer, foi sendo substituída por pequenas alegrias que a vida me apresentava, no carinho das pessoas, na vida que se mostrava a minha volta, na natureza que sempre adorei.

Resolvi, após longas conversas com meu psicólogo, meu irmão e minha cunhada, que tinham medo das minhas reações, sair de viagem. Decidi correr o país, pelo lado do litoral, pois, sempre fui amarrado no mar e deixar me levar. Ser o que a vida viesse a me oferecer.

Por sorte no Espírito Santo, encontrei uma comunidade budista, onde passei um bom tempo. Aprendi a me reequilibrar, a meditar, o que tem me ajudado muito.

Assim, depois de dez meses, cheguei por aqui. Encontrei, neste local, uma paz que me reconforta, e em você uma amiga sincera, que em nossas conversas, parece me entender, pois noto que a vida também lhe fez sofrer.

Ela levantou, pegou em suas mãos, olhou nos olhos e disse:

- Seu Moço quero ajudar no que puder. Conte com meu ombro, para desafogar as mágoas, nos momentos de dor, de incerteza e quero te ajudar, na busca de um novo caminho.

Desde a primeira vez que o viu, sentiu por ele um querer especial, parecia amor materno, um pouco estranho, pois, os dois têm a mesma idade. Sempre lhe pareceu que já o conhecia de longa vida.

 

O amor é a memória

Que o tempo não mata,

A canção bem-amada

Feliz e absurda...

É música inaudível...”

 

4 - AJUDA

- Vou te falar do meu plano. Conto com teu segredo e tua ajuda. No começo muita gente estranhará o que faremos e conhecendo a cidade irão te criticar. Como não quero que saibam até o dia conveniente, muita pressão você sofrerá. Muitos comentários desabonadores a teu e ao meu respeito aparecerão.

Explicou a sua ideia. Ao final:

- Conta comigo, essa peleja é de dar o gosto – respondeu Mainha, sentindo-se feliz e tomada pelo desejo de ajudar, pouco importando as consequências que traria. Ela já havia enfrentado a cidade, no passado, em que era mais nova e insegura, não seria agora que iria esmorecer.

- Para meu plano preciso encontrar uma casa. O ideal que seja na cidade, próxima da praça, para facilitar o movimento que acontecerá. Quero que a fama se espalhe por toda a região.

- Apois, se esse é um problema, considere resolvido. Deoclécio tinha uma casa alugada para o pessoal do Coronel Cupertino. Foram embora e com a morte de meu marido nunca mais mexi com ela. Deve precisar de reparos, mas a gente cuida. Bora ver? Corisco. Corisco vem mais eu. Escuta aqui Corisco, tudo que o que vai acontecer e o que ouvir, não comenta com ninguém, nem em casa. Boca de siri.

- Pode contar patroa. É Deus no céu e vosmecê na terra.

Algumas casas abaixo da venda de Mainha havia uma casa feita de pau a pique, com telhado de zinco que estava fechada. Tiveram quase que arrombar a porta, do tempo que estava fechada. Abriram as janelas e o sol entrou, ressaltando o mofo e o empoeirado que se levantou. Tinha três cadeiras largada, uma mesa manca, pedaços de madeira pelos cantos e pelo chão. Muita sujeira entulhada.

A casa tinha um recuo em relação à rua, uma pequena varanda. Entrando era uma sala grande, com uma janela para a rua. Depois vinha um corredor, tendo ao lado esquerdo dois quartos, em petição de miséria, com janelas para o corredor lateral. Do lado direito, um projeto de banheiro, tamanho bom e a seguir mais um quarto com janela para outra lateral. O final do corredor, terminava em uma área coberta, que servia de cozinha. Um chão, todo esburacado e em um dos cantos um fogão a lenha. O teto era composto de buracos, porque telha inteira não havia. No fundo um quintal, com uns 8 metros de profundidade, cheio de mato.

- Que te parece seu Moço?

- Os cômodos estão ótimos. Um dos quartos posso aproveitar para meu uso. O quarto da direita pode ser usado para guardar material, inclusive quero que tenha uma geladeira nele.

- Geladeira, deixa comigo, sei como conseguir uma de graça. Corisco, pega um pessoal, começa a limpar a casa para depois ver o que precisamos fazer. Leva as cadeiras e a mesa para o Lázaro consertar. Avisa que precisaremos  de mais cadeiras. Depois falo com ele. E não esquece Corisco, ninguém deve saber o que estamos fazendo e para que será, nem o pessoal que vier te ajudar. Não vai bestar e acabar falando, nem em casa.

- Mainha, vou colocar no papel o que vamos precisar. Vou a Fortaleza, ver o que consigo doado e faço uma lista do que comprar. Tenho amigos por lá.

Assim começaram os trabalhos.

- Juro, vi Mainha abraçando seu Moço no fundo da venda.

- Eu também vi.

- Mandaram, o Lázaro fazê uma cama alta, precisa de escadinha pra subi. Imagina a putaria.

- Que pouca vergonha, tá botando casa pro amante – falou Zelina, vulga Boca Maldita, caiu na dela, nem o Diabo se salva - Tá se amancebando, depois de velha vai virá rapariga.

Com tanta fofoca, em uma das vezes que estava só com ela, o Padre Inácio resolveu perguntar:

- Mainha, tenho ouvido muitos comentários a teu respeito. Algum problema que possa ajudar? Mulher conte comigo.

- Seu Padre, não se apoquente, logo, logo o senhor vai saber o que estamos fazendo. Não de ouvidos para o que os outros falam. Esta cidade sempre foi assim. É tudo boca de tramela.

 

“É Zun, zun, zun, zun, zun, zun capoeira mata um,

Zun, zun, zun, zun, zun, zun, capoeira mata um

Zun, zun, zun, zun zun, zun, diz, que diz mata um”

 

5 - ALÍVIO

Ouvindo os fuxicos que chegavam, Tia Délia, começou a se sentir mais tranquila. O seu Moço, estava envolvido com Mainha. Ela estava botando casa pra ele.  E fazia tempo que ele não aparecia por ali.

Tinha uma coisa que a estava deixando preocupada, era Janaina e Mereciano, agora, viviam brigando a todo momento. Antes, era constante a alegria de Janaina no pedaço, era o sol que iluminava por onde passava, agora mal aparecia.

- Mereciano o que tá havendo com tu e Janaina?

- Estou aperreado, antes só falava de casamento, agora num qué sabê. Implica com tudo, briga por qualqué coisa. Antigamente vivia de beijinho e abraços mais eu, agora parece que tá fugindo.

- Vou fala com ela. Deve está bestando.

Janaina sentia um grande peso no coração. Antes só pensava em Mereciano, quando acordava, durante o dia, vivia esperando a noite, para se encontrarem. Não via a hora de casar. Depois que viu seu Moço e mergulhou naqueles olhos azuis, não conseguia tirar ele da cabeça. Não tem propósito. Ele é um forasteiro do Sul, ela filha de pescador, pronta para casar com o melhor partido da cidade. Como pode ficar tão embaralhada. Quando está com Mereciano, sente um peso, um mal-estar. Não sente a paixão, o fogo que sentia por dentro, quando estava, ou mesmo, quando pensava nele. Resolveu visitar Mãe Cida buscar conselho e ajuda dos orixás.

Mae Cida a recebeu esperando a costumeira alegria, mas, notou suspiros de dor. Seu olhar, que antes, sempre fora de animação, agora, era de desalento. Daqueles que não conseguem ver as alegrias em volta, por estarem mergulhados nas tristezas da alma, encobrindo a visão da vida.

Ouviu suas dúvidas, se entristeceu, por ver a certeza do amor de Mereciano ser abalada por uma fantasia que o coração cria, enganando a cabeça, um sonho que se desfará como arco-íris, em final de chuva. Pegou sua mão, a levou até o peji para rezarem juntas. Pediu, com a força do seu axé, aos orixás virem em socorro, principalmente Iemanjá, madrinha de Janaína, e iluminarem os caminhos.

Seu Moço, durante a solidão da noite, tinha os pensamentos tomados pelo riso, a beleza e o olhar de Janaina. Sonhava com ela amenizando a tristeza de estar só, e o desejo de ter alguém para amar, viver junto, lutar lado a lado e criar futuro. Aqueles pensamentos, mesmo não a conhecendo, sendo uma ilusão, amenizavam a solidão. Não sabia ele, como os mesmos pensamentos geravam em Janaína, sofrimento e tristeza.

A tormenta, do confronto dos orixás de Mereciano e do Moço estava se formando no tempo, senhor da vida, onde pouco se pode fazer para conter.

Tia Délia, perguntou a Janaina o que estava acontecendo.

- Benção tia, não quero homem, só por marido, como todas desejam, quero homem por amor, que esquenta o corpo e o coração. Quero beijos, que deixem gosto nos lábios. Hoje, os meus para Mereciano estão secos. Falta vida e não há desejo. Não perco o folego a cada um deles, nem sinto prazer, nos seus carinhos. Meus dedos querem correr um rosto que não é o dele. Me sinto morta, sem vida correndo nas veias.

Tia Délia pensou, na disgrama que estava acontecendo, como era triste a situação. Uma mulher perdida em sentimentos que a razão não justifica. Meu pai ajuda, podem ser emoções, que vieram de tempos passados.

Acendeu uma vela ao Pai Oxalá, na figura do Senhor do Bonfim, se ajoelhou e com o rosto entre as mãos orou:

- Êpa, êpa, babá...

 

 

Se acaso lhe faltar a fé

E triste estiver

Corra até seu Congá

Faça uma oração irmão

E peça proteção

A Pai Oxalá

 

6 - A PREPARAÇÃO

Mainha, com Corisco, corriam com o preparo da casa. Precisaram trocar ripas do telhado, cimentar a cozinha que estava esburacada, arrumar o fogão, reparar as lajotas dos pisos dos quartos e da sala, que estavam quebradas, arrumar janelas e trazer vidros de Fortaleza para os consertos. Encomendou cama de casal, mais um criado mudo e outra cama de solteiro;

-Pra que todas essas camas? – comentavam.

O banheiro teve que ser todo refeito e seu Moço pediu que tivesse uma banheira com chuveiro e chuveirinho. A cidade tinha energia elétrica, o que permitiria uma boa ducha. O povo escutou que seria um lugar muito usado.

- Não qué só uma latrina, qué uma banheira. É putaria, sem dúvida.

-  Seu padre, uma casa de perdição no meio da cidade. Vosmecê não pode deixá acontece!

Para não caírem ciscos pela casa, o teto foi forrado com palha trançada de folha de babaçu. Várias mulheres da cidade foram contratadas para o entrelaçamento. Duas meses e cadeiras em quantidade, foram encomendadas. Mainha colocou vasos no terraço de entrada e na cozinha no fundo, com plantas e trepadeiras resistentes ao calor e protetoras, como jiboia, espada de São Jorge e arruda.

 No final, viria a pintura, azul-claro, no cômodo maior, rosa-claro no menor e no outro verde-claro. A casa por fora seria toda branca, com o madeirame em azul celeste.

Durante esse tempo seu Moço, seguiu de barco para Fortaleza, permanecendo por lá.

Na cidade, os comentários continuavam. As pessoas diariamente passavam pela obra, assuntando os ajudantes, pois com Corisco, só encontravam o silêncio. Este, por sinal, interiormente, estava extremamente orgulhoso de ser o responsável da reforma.

- Será uma pensão, casa de mulher dama, moradia para o bem amado, boate?

Começaram a chegar caixas de madeira fechadas, endereçadas ao comércio de Mainha, objetos envolvidos em papel, com formatos diferentes, abajur, cabideiro, secador de cabelo, espingarda, sabe se lá o que.

Chegou uma geladeira com marca de cerveja que Mainha vende, foi mandada para a casa.

- Vixe, vai tê bebida. Se tem bebida, tem sacanagem!

 

“É Zun, zun, zun, zun, zun, zun capoeira mata um,

Zun, zun, zun, zun, zun, zun, capoeira mata um

Zun, zun, zun, zun zun, zun, diz, que diz mata um”

 

7 - O PADROEIRO

No dia do padroeiro, Bom Jesus, 06 de agosto terá festa em homenagem. Várias missas serão rezadas durante a semana e na sexta, sábado e domingo a esperada festa. Tudo estava sendo montado com a orientação do Padre Inácio, com o apoio da comissão de festa, que tinha como participantes a Tia Délia, Dada, Mainha, a presidente e vice-presidente da Legião Coração de Jesus, Antônia e Jussara.

Na praça serão montadas barracas, sob diversas responsabilidades: Salgados e doces com a Legião do Coração de Jesus; carne de sol com macaxeira e bebidas com alguns pescadores; peixes, frutos-do-mar, caldeiradas e sarapatel com as mulheres dos pescadores; broas, cocada de amendoim, mugunzá, pamonha, beiju, cuscuz com Mainha e ajudantes.

O Padre Inácio contratou três grupos de forró, para alternando tocarem nos três dias de festa. Das 11,00 h da manhã até meia-noite. Fora alguns artistas da cidade e dos arredores, que se apresentaram para tocarem em troca de umas biritas, comida e mulher para paquerar. A organização dos músicos era com o Lázaro, que vivia com o rádio ligado na marcenaria o dia todo e conhecia os cantores e as músicas da temporada.

A festa era famosa na região. O pessoal vinha a pé, de burro, barco, ônibus, carroça, carro e caminhão. Do que fosse possível. Tinha gente que vinha lá dos cafundó do judas, levando dias na viagem. Durante a semana foi chegando gente que acampavam em torno da cidade, outros aproveitavam amigos para se acomodarem. Era um festival de barracas de lona, amarradas nos caminhões, nos ônibus, nas carroças, nos poucos tocos de árvores. Era um rebuliço, uma beleza. Na praia aumentava o número de embarcações. Eram canoas, jangadas, tototó, paquetes trazendo o povaréu das cidades, vilas, lugarejos e currutelas da costa próxima.

Os pescadores e o pessoal dos barcos no dia do padroeiro, fazem uma procissão, tirando a imagem do Bom Jesus da igreja, colocando em um barco todo enfeitado, distanciando um pouco da praia e ofertando flores. O pessoal da umbanda, aproveita a procissão e também agradecem a Iemanjá na figura de Nossa Senhora da Conceição, que vai em outro barco coberto de flores.

- Odociaba minha Mãe.

É uma procissão linda com todos de branco. O Padre Inácio, abençoa esse sincretismo com o respeito merecido e a alegria de todos.

A cidade é enfeitada de bandeirolas, que famílias, passam meses produzindo. No centro da praça, onde já há um local apropriado, é levantado um mastro, guardado pelos pescadores durante o ano, com as cores azul-celeste e vermelha, tendo no alto a imagem de Bom Jesus, como em festa junina, dentro uma lâmpada, que se mantém acessa todas as noites do evento.

Pedidos de saúde, pesca, dinheiro, namorado, marido, casamento, namorada, barco, trabalho, são presos com um preguinho no mastro. No último dia da festa, são retirados e queimados, como oferta na missa de encerramento. É a esperança do povo que busca no elevado ajuda para as dificuldades aqui da terra.

Que o perdão seja sagrado

Que a fé seja infinita

Que o homem seja livre

Que a justiça sobreviva, ai, ai

Que o perdão seja sagrado

Que a fé seja infinita

Que o homem seja livre

Que a justiça sobreviva, ai, ai

 

 

8 - O RETORNO

Uma semana antes da festa, o Moço retornou da viagem a Fortaleza.

Encontrou algumas pessoas acampadas, próxima a sua barraca, aguardando o dia da festa. A maioria eram famílias, que trocaram com ele gentilezas, numa bebida, numa prosa e até em uma comida. Ele alegremente aceitou. Aquilo tudo era maravilhoso. Era vida, as pessoas, manifestando sua fé, sua alegria e o congraçamento, pois muitos esperavam encontrar amigos, parentes das festas anteriores. Era o povo na sua mais pura essência, numa festa feita pelo povo. Passaram o ano colocando-se nas mãos do Bom Jesus, orando, para que sua intersecção auxiliasse no diário, acima do que o temporal determina, e agora, estão presentes para agradecer o que tiveram.

No dia seguinte passou na obra, ficou impressionado com o que viu e do andamento, que iria ocorrer, conforme Corisco. Ficou emocionado, com a empolgação daquele homem simples, que se mostrava um dos principais responsáveis pelos resultados que iriam obter. Deu um forte abraço de agradecimento. Corisco ficou sem jeito. Homem não abraça homem, mas até uma pequena lágrima quis sair em um canto dos seus olhos, que rapidamente tratou de reter. O peito se encheu.

Mainha foi só alegria com seu retorno. O abraçou e até um beijo lhe deu na boceja.

- Chega! Chega! Quero saber de tudinho.

Levou para o escritório e parecia uma matraca despejando as informações do tempo que esteve fora. Falava com alegria e empolgação, levando o Moço a rir.

- Que foi, que eu disse, que tu tá rindo?

- Nada. Dá gosto ver a tua empolgação. Você agora, e o Corisco há pouco, foram a melhor acolhida que eu poderia ter no meu retorno. Estão dando vida as minhas ideias. Há muito tempo não me sinto tão animado. Só tenho a agradecer.

Passaram um bom tempo contando o que cada um fez.

- De hoje a quinze, acredito que podemos inaugurar – informou Mainha.

- Ótimo, temos que programar, no maior segredo, como será a inauguração. Quem convidaremos. Bom, vou ajudar a pendurar bandeirinhas e lampadinhas e ver no que posso mais auxiliar na festa.

O Moço, depois de um bom tempo desaparecido, agora, aparece auxiliando na arrumação da festa, criou um frisson entre as solteiras, as casadoiras e algumas bem casadas da cidade. Fora as curiosas do pedaço.

As pessoas chuchavam perguntas, para tirarem alguma resposta sobre a casa. Quando seria a inauguração? Ele só respondia:

- Logo, logo.

A semana foi atribulada de preparatórios, do aumento no número de pessoas que circulavam pela cidade. Com mais movimento, Mainha e seu pessoal tinham dificuldade de atender. De vez em quando o Moço ia ajudar. Na Vila Encantado a venda de peixes e frutos-do-mar estava a toda. A cidade estava um salseiro, extremamente ocupada, preocupada, mas, feliz.

 

Com ele fiz uma promessa

E este ano tenho que pagar

Vou rezar uma novena

Ao meu bom Jesus pra ele me ajudar

 

9 - A FESTA

Na sexta-feira, primeiro dia da festa, o Moço ficou a manhã toda com Corisco na casa avaliando o serviço, sugerindo reparos ou consertos. Lá pela hora do almoço notou que Corisco estava aperreado. Claro, como todo mundo, queria estar na festa, ajudando, assuntando, bebendo, conversando. Levando os filhos para se divertirem nos balanços construídos na praia. Foram montados, também, dois gira-giras e dois escorregadores. O Lázaro, com a ajuda de alguns homens, construiu, e queria deixar montados para depois da festa.

No resto do dia ele se fechou em um dos cômodos da venda de Mainha, abriu as caixas que chegara e conferiu o material. Aquela verificação estava sendo um bálsamo para sua cabeça, pois a cada conferência sua cabeça voava, se enrolava nos sonhos e fazia do amanhã um dia de perspectivas. O tempo passou.

Saiu era noite, ficou encantado, havia fogueiras dispersas, principalmente na praia. Encontrou Mainha, pediu um peixe, um caldo e uma cerveja, comeu em companhia dela e foi para a caminhonete dormir. Ocorre, que a alegria em volta estava grande, e as pessoas o envolveram nas cantorias, nas danças, nas conversas, nas comidas, nas bebidas até que foi, literalmente, carregado, às quatro da manhã para a caminhonete.

Acordou com o sol no horário da tarde e a Rubi lambendo sua cara. Esses dias todos que esteve fora, ela deve ter andando entre as barracas e forrado o estômago. Quando esteve em Fortaleza ela dormiu em casa de Mainha. Agora, vivia atrás dele.

Tratando de se recompor, tomou um banho de mar, depois foi a um dos remansos do rio e se lavou. Procurou um ponto mais distante da muvuca, debaixo de uns coqueirais e embalado pelo namoro do vento com os coqueiros, meditou.

Com uma fome brava, passou na barraca de Tia Délia, que o recebeu com sorrisos, mas com olhos preocupados, comeu uma moqueca e tomou um caldo, com uma cerveja gelada.

A noite principiava. O céu estava límpido com lua cheia, iluminando os areais mostrando suas entranhas e fazendo um jogo de claro-escuro, revelando o côncavo e o convexo de suas formas, parecendo uma mulher estendida ao luar.

Encontrou Mainha em sua barraca e a convidou para tomarem uma cerveja juntos. Sentaram em uma das mesas, em volta do grande círculo que formava o espaço de dança. Conversando e observando o agito. Satisfazendo os olhos com o movimentar das pessoas e o coração com o burburinho e a música da festa. Casais começaram a levantar a poeira do chão, com suas danças.

Nisso passou por eles Janaína, que parou, cumprimentou Mainha e o Moço. Este por educação a convidou para sentar, o que aceitou. Mainha na hora apresentou cara de contrariedade, por saber do término do namoro dela com Mereciano, o ciúme doentio dele, e das conversas que ouvira envolvendo a possível participação do Moço, no desfecho. Tia Délia, do outro lado da festa, a viu sentar na mesa deles, se apoquentou e se aprofundou nos temores.

O Moço que nunca havia conversado com ela, ficou encantado, pela desenvoltura, a facilidade da conversa, a simpatia e acima de tudo a beleza. Era estonteante, levando, a que em momentos, não percebesse o que ela dizia e simplesmente se fixar nos olhos, no movimentar dos lábios, nos trejeitos, no cabelo, que o vento rebeldemente fazia cair sobre o rosto e ela com um jeito próprio o colocava de lado. Estava hipnotizado. Mainha notou tudo isso e para romper o momento, a convidou a chegar até sua barraca, onde sua prima estava ajudando.

Começaram as danças. Aproximou-se da mesa Caetano, sua mulher Rosário, Estácio, seu irmão, com a esposa Jussara. Ele os conhecera das idas na Vila do Encantado.

- Olá, seu Moço, sozinho? Podemos sentá junto? – perguntou Caetano.

- Claro, será uma satisfação. Sentem, vou buscar mais cervejas. A mulheres, também tomam?

A conversa estava do jeito que o Moço gostava. Causos das festas que houveram, das pescas, brincadeiras, risadas. Eram jovens curtidos nas dificuldades do mar  aproveitando aquele momento feliz da vida.

- Pessoal, vamos dançar? Caetano posso tirar a Rosário para dançar.

- Seu Moço, descurpa, mas não vou dança. Tô prenha e no forró me mexo demais – respondeu Rosário.

- Está grávida, que maravilha, meus parabéns. Para quando?

-  Daqui uns seis meses, mas tive alguns avisos e é mior eu me resguardá.

O Moço ficou olhando um tempo para o rosto dela, como se o passado ou alguma verdade, dentro de si, estivesse vindo à tona.

- Que dança comigo?  -  perguntou Jussara.

- Cuidado Seu Moço - falou o marido – ela tem um remelexo que vai lhe dar uns nó nas pernas.

Tiro e queda, Jussara era boa na dança, várias vezes o deixou parado no meio do arraial, sem saber o que fazer. Ela ria e todo mundo que conhecia suas habilidades riam.

- Seu Moço vai levá uma surra da Jussara na dança. Eta mulhé porreta.

Voltaram para a mesa, ele desmilinguido, pedindo cerveja. Todos riram.

- Mais tarde, vou querer dançar de novo, mas vai me explicar alguns passos. Você não é mole.

O Moço, notou no outro lado da pista Janaina, acabando de dançar com alguém. Foi até lá e a convidou. Aceitou.

Ainda bem que ela dançava de um jeito e numa cadência que ele conseguia levar. Era mais lento, e podia sentir o perfume que subia do seu corpo, o suor que escorria do rosto, a faixa branca segurando o cabelo, o vestido branco que volteava a cada rodada da dança e o riso, quando achava graça de algum dos passos.

Muita gente parou para observar e até foram avisar Tia Délia, que saiu da barraca e ficou observando, agarrada as suas figas e patuás rezando para Mereciano não aparecer. Porém, fora em vão, ele apareceu, viu os dois dançando e seus olhos se encheram de sangue, seu rosto crispou, estava aperreado.

No final da dança, o Moço perguntou a Janaina se dançaria mais uma. Ainda estava segurando o braço dela, aguardando resposta, quando Mereciano, de supetão, agarrou o outro e disse:

- Posso dança com a moça, agora?

Repentinamente, o vento começou correr pela festa, derrubando lonas, bandeirolas, saracoteando os vestidos das moças, levantando o pó do chão. No céu, formaram-se nuvens negras que encobriram a lua.  Ao longe, em alto mar, formaram-se relâmpagos e trovões que rapidamente vinham em direção à terra.   A música parou, todas as atenções se voltaram para eles, havia eletricidade no ar. Tensão.

Tia Délia, sentiu a natureza se alterando, agarrou-se ainda mais a reza, pedindo com mais fervor aos seus Santos e em especial ao Pai Oxalá. Seu coração estava disparado, suor corria pelo corpo. Demécio, seu marido, se aproximou e abraçou o corpo tremulo da esposa. E juntos rogaram aos seus protetores.

 Ela sabia, o quanto Mereciano tinha o comportamento igual ao seu orixa, Logun Ede,  filho de Oxossi e Ogum, um dos mais belos e vaidosos orixá masculino, podendo ser doce e astuto, mas, também, tem a força e o espírito de caçador. É o deus das contradições, nele os opostos se alternam é o deus da surpresa e do inesperado. São arrogantes e prepotentes, mas, quando tem consciência e controlam seus defeitos se tornam agradáveis.

O Moço respondeu:

- Sem dúvida. A moça dança muito bem.

Ao largá-la, Janaina puxou Mereciano rapidamente para o meio da pista. As nuvens se dissiparam, permitindo a lua embranquecer o entorno e por um encanto o vento parou. Os raios e trovões cessaram em alto mar.

O Moço quando se dirigia para a mesa, uma jovem das famílias que conhecera na praia perguntou:

- Vamos dançá?

Lá foi ele, tendo depois que dançar com mais duas do grupo.

Ao seguir para a mesa, encontrou os casais animados na conversa e riram, pois devia estar cansado das danças e ainda ficara de dançar com a Jussara.

- Jussara, hoje não consigo mais. Prometo que amanhã dançamos, estou morto. Vou dormir.

 

Quando a flor tava dormindo,

Vento veio me levar

Prum terreiro iluminado, entre terra céu e mar

Já que o mundo ta girando, eu também quero girar

Gira negra dançadeira, olha a chuva de ganzá

O truvão ficando rouco, também já relampiou

 

10 – ÚLTIMO DIA

No último dia de festa o Moço acordou tarde. O alarido em volta estava alto. Eram algumas famílias levantando acampamento e se despedindo. Outras preparando, para mais tarde, ou quem sabe no dia seguinte pegar a estrada de volta.

As saudades foram amenizadas, as amizades reforçadas, alguns namoros, quem sabe casamentos, e a fé entranhada com mais profundidade na alma e nos corações. Alguns casos, ficaram no folclore e na maledicência das mentes e bocas soltas.

Moço tomou um banho demorado no remanso do rio, aproveitou, para brincar um bom tempo com sua cachorra, Rubi. Ela estava carente do tempo que ele esteve viajando, e como ela por muito tempo, fora sua única companheira, sentia falta de tê-la próxima. Com o que viria acontecer nos próximos dias, menos tempo teriam juntos.

Resolveu ira a casa de Mainha, onde o pessoal estaria fazendo mais salgados para o dia. Chegando por lá, perguntou se poderia tomar um bom café com leite, acompanhado de uma das maravilhosas broas produzidas na casa.

- Seu Moço, senta naquela mesa no fundo do quintal. Eu te levo o café e quero prosear contigo – ordenou Mainha.

Ela relembrou a noite anterior, no momento da dança, quando Mereciano apareceu.

-  Tu notou a mudança de tempo, o que aconteceu?

- Não, estava atento com Mainha e Mereciano.

- Bem, vou te contar, o que aconteceu e o que comentam.

- Comentários, comentários...

- No momento em que Mereciano, aperreado, interrompeu a tua dança com Janaina, a noite que era de lua clara foi tomada por nuvens escuras. O vento correu por toda a festa, inclusive abalando algumas barracas. No alto mar formou-se uma tormenta com raios e trovões. Quando você liberou Janaina para dançar com ele, tudo se desfez, milagrosamente. As nuvens negras desapareceram, permitindo a lua a voltar a brilhar, o vento parou e a tempestade que vinha do mar para a terra se desfez. Os comentários são que teu orixá e o de Mereciano, em algum momento, baterão de frente, e quando isso acontecer, a natureza vai se alterar, como começou a acontecer, ontem. Isto foi profetizado pela Mãe Cida, Iyalorixá da Vila do Encantado para Tia Délia, quando você apareceu por aqui.

- Isso é bobagem.

- Apois, bobagem ou não, depois que Janaina te conheceu ela desmanchou o compromisso com Mereciano. Eles eram prometidos, desde jovens. Ele é apaixonado por ela. Apaixonado não, doido por ela. É uma pessoa boa no seu normal, mas facilmente se torna violento, passional. Todos temem a reação dele contigo. É de conhecimento geral essa história e todo mundo ficou em suspense, quando ocorreu o de ontem. Não vá dar uma de besta.

- Mainha, no bate-papo que nós dois tivemos com ela, observei ser uma pessoa com uma desenvoltura maior que as pessoas da cidade. É agil no conversar e possui boas argumentações. Como é possível?

- Ela ficou órfã quando tinha uns 14 anos. Perdeu o pai na pesca e a mãe de doença, em pouco mais de dois meses. Ficou aos cuidados de sua tia Dica. A comunidade as ajudou com comida, mas, passaram dificuldades. Tiveram muitos dias de precisão. Sua tia fazia parte da Legião do Coração de Jesus. Quando ia, levava a menina junto. Era uma luz no meio da velharada. Sempre alegre, bem disposta e disponível a atender qualquer um. Eu e a Antônia, presidente da Legião, nos interessamos por ela. Tinha acabado os estudos que a cidade fornecia, porém, havia a professora Isabel que também se encantava com a menina, notava que tinha um interesse e uma inteligência que a diferenciava dos outros. As duas, fornecendo condições para a professora Isabel, conseguimos que ela tivesse uma educação além do normal da cidade.

Quando tinha 17 anos, a Cíntia, vice-presidente da Legião e esposa do Aristides, filho do Coronel Cupertino, indicou a menina para trabalhar nos escritórios da empresa. Ele, não sabendo o que tinha na mão, indicou que trabalhasse na fábrica. A mulher foi enfática:

- Arre, na produção não, no escritório!

Começou arquivando, arrumando papelada e outras coisinhas, mas sempre mostrando interesse. O grupo precisava de gente para lidar com computadores, que estavam sendo instalados e forneceu cursos. Ela pegou o assunto de primeira e se aprofundou. Com o tempo conhecia, quase tanto o pessoal da informática. O contador da Empresa, o Januário, gostou do empenho da moça, a treinou e deu espaço para crescer. Hoje, ela cuida do contas a pagar e a receber.  Recebe um bom salário, mora em uma casa na cidade com a tia, conseguiu sair da Vila do Encantado.

Estava providenciando enxoval, e tinha plano, com Mereciano, de construírem uma casa na cidade, para depois de casados, morarem. Isso tudo acabou. Essa é a história dessa moça. Peço que tome cuidado para não fazer da vida dela uma tragédia, em função desse descabeçado do Mereciano e de uma ilusão dela contigo.

O Moço, foi embora depois do café, buscou um lugar distante na praia, deitou e ficou pensando tudo que Mainha contara. Passou a tarde toda. Ele, seus pensamentos e a cachorra Rubi. Difícil tirar o rosto dela do pensamento. O sorriso, o encanto no falar, seus doces trejeitos e acima de tudo, o olhar quando batia no dele, ele se perdia em um rodamoinho de sentimentos.

Apareceu na festa no final da noite. Comeu algo. Dançou com Jussara umas duas músicas, em que ela ensinou alguns passos. Conversou com algumas pessoas. Viu Janaina a distância e não se aproximou. Enquanto isso, as barracas, à medida que a comida terminava, eram desmontadas, as pessoas se retirando cedo, para o dia seguinte de trabalho ou de retorno. O que mais se ouviam eram despedidas, promessas de reencontro e convites para aparecerem por casa. Fogueiras iam sendo apagadas. Em alguns recantos, namoricos iniciados aqueles dias, aproveitavam os últimos momentos de beijos ou quem sabe de carinhos mais ardentes. Xodós ficaram nos corações e pelas areias dos coqueirais.

Moço escapuliu cedo. Foi uma noite mal dormida.

 

Ardia aquela fogueira

Que me esquentava a vida inteira

Eterna noite

Sempre a primeira festa do interior

 

11- A INAUGURAÇÃO

Mainha, Moço e Corisco, acertaram que no segundo domingo, após o final da Festa do Padroeiro, fariam a inauguração. Seria às 10,00 h da manhã.

As próximas semanas foram de corre, corre, tratando de colocar de imediato uma cortina na janela da sala da frente para não permitir os olhares curiosos, e a noite, bem tarde, para não haver curiosos, transportaram uma série de caixas e objetos da mercearia de Mainha para o local. Durante o dia ouvia-se barulho de pessoas trabalhando, arrumando, empurrando, martelando, furando e conversando em tom baixo.

As mulheres, seguiam para a compra de qualquer coisa na loja de Mainha, só para passarem em frente. Os homens, a caminho dos seus afazeres, desviavam a rota para darem uma vista de olhos.  Ninguém sabia de nada, o segredo era total. Os empregados de Mainha, informaram, que as coisas que estavam trancadas em uma sala, na mercearia, foram retiradas. A sala estava vazia. Na semana chegaram alguns colchões.

- Pela caixa, tinha um grandão e não sei não, uns dois ou três menor. A gente não sabe se já não tinha vindo outros antes. É putaria da grossa!

Será que “Vox populi, vox Dei”?

Contrataram, com Lázaro, sigilosamente uma placa grande, para colocar na frente da casa. Ele teve que trabalhar na peça depois que os funcionários iam embora e mantinha escondida durante o dia. Teve que jurar pela mãe, ainda viva, que não contaria e nem mostraria para ninguém.  Como todo mundo sabe, mãe é sagrada.

No sábado antes da inauguração, à noite, levaram a placa e instalaram no local, porém coberta. Só seria descerrada no momento da inauguração. Corisco botou um funcionário, sentado na varanda da casa, a noite toda, para ninguém querer estragar a surpresa.

Na manhã, da inauguração, o sol apareceu encoberto. Parecia que choveria, o que todo mundo estranhou, visto não ser época de águas. Correu o comentário que deveria ser o orixá de Mereciano, se encontrando com o do Moço. Temeram, que o tempo fechasse em vento, chuva, raios e trovões.  Enganaram-se, lá pelas nove horas, o tempo abriu em um sol ardente, tendo um maravilhoso céu azul como fundo.

A cidade ficou confusa, quando viram a presença de alguns convidados, pois dependendo o que se inauguraria, seria hipocrisia do Moço, fazendo pouco caso das pessoas ilustres da cidade. Ele estava em um canto, observando tudo, de bermuda, camiseta florida, solta, como costumava usar e tênis. Parecia despretensioso com o que acontecia, observava tudo com um sorriso. Seria deboche?

Os convidados eram o Padre Inácio, Antônia, presidente da Legião, Tia Délia, representando os pescadores, com seu marido Demécio, o Coronel Cupertino e o filho Aristides, com a esposa Cíntia, vice-presidente da Legião.

O povo apareceu para apreciar a inauguração. A praça estava cheia. Surgiram carrinho de pipoca, algodão-doce, cocada, quebra-queixo e raspadinha.

As 10,00 h Mainha, pediu para a música parar e solicitou silêncio. Pediram para ela falar mais alto.

- Povo de Areia Santa, hoje é um dia importante para a cidade. Depois da inauguração da Igreja, há bons anos, creio que este será um dos eventos que mais marcará a região. Para terminar o suspense, pedirei ao Corisco, uma das pessoas que muito trabalhou para que este dia acontecesse, tenha o prazer, de descerrar a placa, que indica o momento de nascimento de algo que irá mudar a nossa cidade.

Como era um fato importante, trouxeram da capital um fotógrafo para registrar a cerimônia.

Corisco ficou surpreso. Seu Moço se aproximou dele, passou o braço por seus ombros e disse algo ao seu ouvido. Tomou coragem e puxou a corda que derrubou a faixa que encobria a placa.

 

CLINICA MÉDICA AREIA BRANCA

Dr. RUI CASTRO

 

Ge, esposa de Corisco, quando leu a placa, correu para o marido e o abraçou, chorando o beijou. Ele dizia a ela, que não podia contar, mas, quando soubesse, ficaria contente. Ela estava com orgulho do marido. Ele a abraçou e teve que segurar as lágrimas. Os filhos correram e abraçaram as pernas dos pais.

Todo mundo de boca aberta pela clínica e emocionados pelo comportamento do Corisco, ficaram quietos, no primeiro momento e depois começaram a aplaudir e a gritar vivas, aleluias, além dos comentários:

- Dá peste!

- Arretado!

- Diacho!

Mainha, depois de um tempo, pediu silêncio novamente e falou:

- Só conseguimos esta clínica, graça ao empenho e desdobramento de uma pessoa porreta, que ninguém dava nada por ela, mas que adorou nossa cidade e seu povo e resolveu utilizar seus conhecimentos para chegarmos a isto. Essa pessoa é o Dr. Rui Castro, médico, que todos conhecem como seu Moço. Venha cá Dr. Rui.

Mais bocas abertas, cochichos, olhares e descréditos.

- Para oficialmente, ser nosso médico, fiz um jaleco, com teu nome e quero que vista. Oficialmente Dr. Rui Castro, médico de Areia Branca.

Aplausos, para o doutor de bermuda e jaleco. Mainha pendurou em seu pescoço o estetoscópio.

- Agradeço, Mainha e Corisco, que transformaram em realidade um sonho. Obrigado. Terça-feira começaremos a atender, a partir das 7,30 h. Inclusive, contarei com a ajuda da Jussara da Vila Encantado, que no passado trabalhou em pronto-socorro em Fortaleza. Juntos e em segredo, ela se preparou para poder receber a todos da melhor forma possível, portanto, solicito a ela aplausos.

Dr. Rui Castro, procurou no meio da multidão e encontrou Janaina, seu rosto expressava uma alegria e satisfação, como se tivesse feito parte da implantação da clínica. Ele sorriu para ela, que retribuiu. Sentiu naquele momento, um desejo forte de que ela estivesse ao seu lado para curtirem juntos a alegria.

- Seu padre, vamos benzer o local – pediu Mainha.

- Danou-se, não trouxe a água benta.

- A igreja é do lado, manda buscar.

A sala principal, seria a sala de espera. Havia uma mesa para a Jussara, com seu fichário e cadeiras para as pessoas esperarem.

Os cabideiros, abajur, secador de cabelo, espingarda e sabe se lá mais o que, que o povo comentou, começaram a se mostrar. A balança para pesagem com medidor de altura, a geladeira para bebidas estava forrada de branco e guardava medicamentos, a espingarda era um suporte de braço para medição de pressão. O secador de cabelos era suporte para soro, a mesa que seria usada para putaria, com escadinha para subir, era para atendimento dos pacientes que precisassem deitar para serem examinados. Haviam, alguns velhos ventiladores, de pedestal que seu irmão enviara.

Numa das salas, pintada em cor de rosa clara, havia uma mesa ginecológica com suportes, usada, mas em bom estado para uso, para exames das mulheres. Inclusive o Dr. Rui, que já havia conversado com dona Margarida, parteira antiga e respeitada da cidade, ao apresentar a sala informou que ela o estaria auxiliando no pré-natal e nos partos que ocorressem.

A outra sala, em verde-claro, seria onde o doutor atenderia. Tinha uma mesa, duas cadeiras e a tal mesa com escadinha.

O último quarto, com cama de casal, onde segundo a mente popular, a esbórnia ocorreria, será o quarto do Dr. Rui. Portanto, estará 24 horas na clínica.

- Esperamos que não seja tão necessário – falou Mainha.

Os convidados conheceram as instalações, foram servidos com caldinhos na cozinha, no fundo, onde em futuro deveria chegar um fogão a gás, e tomaram cervejas e branquinhas.

Depois, aos poucos, Corisco foi permitindo a entrada de algumas pessoas, e Mainha mais Jussara iam mostrando o local. A visita foi até as 15,00 h, quando resolveram interromper e lembrar que estariam atendendo a partir de terça-feira às 7,30 h.

Depois, disso, Mainha levou o Dr. Rui, Corisco, sua esposa e filhos, mais a Jussara e o marido, a parteira Margarida, para almoçarem em sua casa. Havia pedido a algumas amigas que fizessem o almoço, pois, estaria envolvida na inauguração. Mesmo não sabendo o que seria inaugurado, confiavam em Mainha e se prontificaram a ajudar. Ficaram curiosas em conhecer o lugar, e tiveram a promessa que na semana próxima seriam recebidas para uma visita.

Foi um almoço inesquecível, pois independente do bobó de camarão, da moqueca de siri mole, do peixe frito, o prato principal e com o melhor tempero, foi a alegria da missão cumprida. Muita gente gostaria de ter participado daquele almoço.

12 siris moles graúdos

2 cebolas grandes picadas

4 tomates grandes maduros e firmes picados

1 molho grande de coentro picado

1 limão (suco)

2 pimentas-malaguetas maduras

2/3 xícara de chá de azeite de dendê

200 ml leite de coco

1 pitada de sal a gosto

 

12 – INÍCIO DAS ATIVIDADES

Na segunda-feira aproveitaram para limpar a casa das visitas do dia anterior, acabar de arrumar e tratar de manter tudo pronto para o dia seguinte.

Na terça-feira, as seis horas da manhã, começou a chegar gente para ser atendida. Começaram o trabalho antes das 7,30 h. Passavam por Jussara, que abria uma ficha, pesava, altura, tirava pressão, e avaliava nível de diabete. Isso tudo só foi possível, com o material obtidos pelos ex-colegas do Dr. Rui e do seu irmão em São Paulo. Jussara era rápida, mas havia uma demora natural no atendimento, e ela teve que obrigar o pessoal se manter em fila e esperar que autorizasse entrar na sala, por sorte, algumas colegas suas da Legião se apresentaram para ajudar.

Para cada jovem, Dr. Rui receitava e fornecia um vermífugo. Por sorte a cidade se supria de água do Rio Itapioca, só esperava que a água fosse colhida em ponto sem contaminação. Aos adultos que também se mostravam abaixo do peso seguia o mesmo receituário. Quando possível, receitava tratamento, caso tivesse o medicamento na clínica ou na loja de Mainha, caso contrário iria providenciar na capital. Crianças com 4 anos ou menos, mulheres grávidas e recém paridas, informou que seriam recebidas na próxima quinta-feira pela manhã, quando não atenderia outro tipo de paciente. Mandou colocar um cartaz e a cada um que chegava na fila informava essa medida.

Apareceram dois casos de braço quebrado. Como não tinha material para imobilização, chamou Lázaro, marceneiro e informou que material precisava. Ele conseguiu uns pedaços de madeira em tamanho adequado. Um dos braços, que já estava em tipoia há alguns dias, teve que ser quebrado novamente, para colocar no lugar adequado. Tinha pouco material anestésico, usar, quando muito necessário.

Gradualmente foi atendendo a fila, nos seus mais diversos problemas. Valia-se da experiência, pois, faltava recursos que normalmente se tem disponíveis nas grandes cidades. Todos os pacientes que precisavam ter exame colhido, marcou para a segunda-feira próxima, quando ele e Jussara, colheriam o material, guardaria na geladeira e despachariam no barco que recolhia as pescas realizadas. Em um esquema com a Faculdade de Fortaleza, o material seria retirado e analisado. Mandariam, depois os resultados impressos. Seu irmão, estava mandando um fax velho, o que aceleraria o processo. Quem sabe em vinte dias chegasse. Seria instalado no telefone na empresa do Coronel, conforme já acertado

As seis horas, encerraram o atendimento e pediram que voltassem no dia seguinte. Jussara e suas amigas, trataram de limpar as salas.

Mainha apareceu mais tarde com uma janta pronta para o Dr. Rui e ela. Sentaram na cozinha, onde o clima estava gostoso e jantaram juntos.

- Mainha, quero montar um esquema de pré-natal. Estou pensando em pedir a Dona Antônia e Cíntia da Legião, que levantem informações de tudo o que é necessário para implantação. Ao mesmo tempo, quero que obtenham informações das mulheres que estiverem grávidas, na cidade, na região e na vila dos pescadores. Podem se valer da ajuda da Tia Délia. Outra coisa, observei que as mulheres aqui não usam os modernos absorventes. Ainda se valem dos paninhos. Aliás, foi um parto tirar essa informação delas. A minha ideia é falar com o filho do Coronel Cupertino, inclusive com a ajuda de Cíntia, sua mulher, mostrar que se a Empresa fornecesse esse material, com aulas de higiene íntima que podemos fornecer, eles teriam uma redução na falta ao trabalho de funcionárias mulheres. Mainha, levanta quantas mulheres e meninas entrando na menstruação temos, quero tentar convencê-los a fornecer absorventes para todas.

- Será um dez, Dr. Rui.

- Por favor, me chama de Rui.

- Isto é um sonho se realizando.

 

Um sonho sonhado sozinho é um sonho. Um sonho sonhado junto é realidade.”

 

13 – A FILA ANDANDO

No dia seguinte, novamente grandes filas. Começaram a 7,30 h.

No meio da manhã apareceu Janaina, acompanhada de duas pessoas da Empresa.

- Quero conversar com o Dr. Rui.

Jussara, se espantou com o pedido, olhou para uma das amigas que estava ajudando com cara de enfado e mandou esperar. Elas sabiam o que representava a presença de Janaina próxima ao Doutor. Conheciam a previsão do que ocorreria no encontro dos orixás. Não gostou nada da visita.

Quando saiu o paciente que estava sendo atendido, entrou, avisou da visita de Janaina e ele prontamente, até com um ar de alegria, mandou que entrasse.

- Jussara, entra também, preciso conversar com os dois – disse Janaína.

- Olá, Doutor, pelo visto muito serviço.

- Sem dúvida.

- É o seguinte, eu conversei com Dr. Aristides, se podia fornecer dois dos computadores encostados e permitisse que o pessoal da empresa viesse e instalasse um na recepção e outro na tua sala. Ele concordou e estamos aqui para instalar.

Informou que se fornecessem o modelo de ficha que estavam usando, ela a poderia informatizar e com isso, usariam em conjunto e manteriam todas no computador. Depois ensinaria como fazer back-up. E se o Doutor, dissesse o que gostaria de ter de controle, poderei montar esquemas para facilitar a coleta dos dados.

- Maravilhoso, Janaina. Enquanto o pessoal instala os computadores, a Jussara te mostra a ficha, se puder, depois, me dar alguns momentos de atenção, te digo o que quero controlar, como catarata, gravides, pré-natal, pós-parto e tratamentos específicos.

O pessoal, na espera, achou ruim, pois ficaram uma hora e meia em reunião. A conversa para o Rui foi proveitosa, pois as ideias apresentadas pela Janaina eram ótimas, fora que a teve próximo de si, sentindo seu cheiro, o calor do olhar, a embriaguez do sorriso.

Contou da abordagem que queria ter, na Empresa, sobre os absorventes e que ela achou ótima, ficando de ajudar, marcando um horário na Empresa, de preferência com alguém que se sensibilizasse com a ideia.

No dia seguinte, Janaina apareceu com o modelo da ficha a ser utilizada e liberou algumas planilhas de controle para o Dr. Rui. Mal sabiam eles, que essa aproximação aceleraria o conflito entre Mereciano e o Doutor.

Quatro dias depois, Janaina marcou, para o Doutor, participando também, de uma conversa com o contador, velho Januário, com quem já havia trocado ideia sobre os absorventes, com ele resolvendo abraçar a causa. Tentaria aprovação no gasto por três ou quatro meses para poder avaliar os resultados.

Na quinta-feira com a lista de mulheres grávidas e somente atendendo crianças até quatro anos, com a ajuda de Jussara, Antônia e Cíntia, esquematizaram o pré-natal, acompanhamento das crianças e iniciaram o trabalho com essa faixa de pacientes.

 

Roda mundo, roda-gigante

Rodamoinho, roda pião

O tempo rodou num instante

Nas voltas do meu coração       

 

14 – A BATALHA DOS ORIXÁS

Eram oito horas da noite, quando Caetano, desesperado, veio bater à porta da clínica. Sua mulher, Rosário, grávida, que vem participando do pré-natal, teve, prematuramente, a bolsa estourada e entrou em trabalho de parto. O Dr. Rui Castro, pegou o material necessário, subiram em seu carro e passaram para pegar a parteira Dona Margarida e nas carreiras seguiram para a Vila do Encantado. Caetano morava no meio da vila, com isso, acabaram passando em frente à casa de Mereciano, que estava sentado à porta.

O Doutor e a parteira examinaram a parturiente e verificaram que estava próximo de ocorrer, mas, ainda não era o momento. Dona Margarida, disse ao doutor que acompanharia no quarto e quando fosse o momento o chamaria. Caetano quis ficar com a esposa. A sogra de Caetano serviu um café ao doutor e este resolveu sentar em uma cadeira, na varanda da casa. A noite estava calma, uma leve brisa vinha do mar e uma lua escancarada a tudo iluminava, branqueando os telhados, as palmeiras e a areia.

Mereciano quando viu o carro passando, imediatamente se deixou tomar pelo ódio. Como era possível esse fio de uma égua vir a vila, passar em frente à sua casa. Só sentia ódio. Invocado, decidiu tirar satisfação e resolver aquela questão. Pegou sua peixeira e foi. Quem o viu passando, notou sua expressão alterada, os olhos saltados, a boca rígida, as narinas salientes e ódio, ódio nos olhos. Só havia um pensamento em sua cabeça, ela não será minha, mas dele também não. Vou acabar com esse sujeito.

O vento que em brisa estava, foi aumentando a intensidade, levantando areia, transformando o mar calmo em ondas fortes, que avançavam sobre a praia, balançando os barcos apoitados, uivando sob os telhados, batendo portas e janelas.  No horizonte, em alto mar, nuvens negras se formaram, vindo rapidamente para o continente, encobrindo a noite enluarada, transformando a noite em escuridão total. Raios começaram a cair acompanhados de fortes trovões e chuva.

Mereciano andava na chuva com sua peixeira na mão. Muitos saíram a porta, mal o viam, pela escuridão e pela chuva, só conseguiam perceber, de tempo em tempo, sua silhueta pelo brilho dos relâmpagos.  A seu lado seguia o orixá Logum Edé, com sua roupa rodada nas cores azul-turquesa e amarelo-ouro. Trazia em uma das mãos a Balança Ofá (arco e flecha) e na outra o Abebe (leque com espelho), fruto da sua dualidade e contradições. Pessoas foram saindo das casas, no meio da tempestade, e os capazes de enxergar, para acalmar o orixá, saudavam:

-  Logun ô Akofa!

Mereciano, se aproximou e gritou para o doutor:

- Sai, vamos resolver nossa questão, não seja frouxo!

Tia Délia, sentido pela natureza, que havia chegado o momento que tanto temia, correu para fora e implorou a Mereciano, no meio da tempestade:

- Meu filho não faça isso. Depois, tu vai se arrependê.

Quis correr em direção dele, mas o marido a segurou, ao ver o quanto ele estava alterado. Temeu por ela.

Com a chuva mal se via o que acontecia, o relampejar, de tempo em tempo, permitia ver a peixeira em riste, pois nela refulgia o brilho dos relâmpagos e quando o doutor saiu do alpendre se dirigindo para Mereciano.

 Nisso, fazendo frente a Logun Edé surgiu Obaluaiê, o Orixá das doenças, epidemias e da cura, com sua vestimenta de palha e búzios. Trazia em uma das mãos o oxaxará, ferramenta com a qual varre as doenças do mundo e na outra oxi, sua lança de caça, para espantar as energias ruins. Veio para proteger o doutor.

Os dois se enfrentam, no meio da natureza em ebulição.

Logum Edé na sua vaidade, às vezes, podendo ser doce e benevolente, é um deus da surpresa e do inesperado e Obaluaiê, temido por reger a terra, por ser responsável por tudo que dela nasce e pela morte. Era o conflito, temido e contado de boca em boca, que um dia aconteceria. Havia no ar tensão e um cheiro de queimado. O vento adentrava a frestas das casas e em rodamoinhos movimentava a areia fustigando os que estavam ao tempo.

Mãe Cida, em seu terreiro, sentiu o que ocorria, levantou do trono e deitou-se em frente ao altar e clamou os orixás para acalmar os encantados.

- Ólodúmaré Asé!

As êbomin, a ekede, as iaôs, que por lá estavam, seguiram a Iyalorixá.  E clamaram por Iamsã, que tem o domínio dos ventos e das tempestades:

- Eparrei Oyá!

A água da chuva, escorria por todo corpo de Mereciano, o ódio vertia dos olhos, enquanto o doutor, preocupado com a paciente, mas tendo aquela questão o envolvendo, e o lançando em direção ao pescador, quando, nisso, aparece Caetano a porta da casa e grita:

- A criança tá nascendo tão precisando do doutô. Corre, tão te chamando.

Mereciano, para, ouve aquele apelo desesperado de Caetano, seu primo, passando por sua cabeça a imagem de Rosário, sua companheira de infância, seu braço enfraquece.

O lado benevolente de Logun Edé reage ao ouvir o apelo do nascimento. Obaluaiê, faz sinal de querer entrar na casa, deixando o outro orixá na intempérie.

Logun Edé age junto a Mereciano. Ele larga a peixeira no chão e foge de vergonha, chorando e gritando consigo mesmo. O vento para de soprar, a chuva amaina, as nuvens se retiram e a lua desponta no céu trazendo uma noite de placidez e beleza para receber o recém-nascido. Obaluaiê se vai.

O doutor que havia pedido uma roupa de Caetano, para substituir a sua, e atender a paciente, depois de um tempo, sai é grita:

- É um menino.

É um viva geral. Caetano, distribui cachaça entre os que ali estão.

Tia Délia, corre para casa. Mereciano não estava mais, tinha pegado alguma roupa e disse a irmã que pedisse desculpa para a mãe e o pai. Ela sabia que deveria estar embarcando no barco dos peixes da madrugada e seguindo para a capital.

 

“Caviongô santas almas do axé
Pai Omolu que chegou pra benzer
Atotô
Obaluaiê

Caviongô santas almas do mar
Pai Omolu que chegou pra dançar
Atotô
Obaluaiê”

 

15 – ZUNZUNS

Nas semanas seguintes, a noite da tormenta, era o comentário principal. Na venda de Mainha, na Vila do Encantado, entre os pescadores, nas empresas do Coronel Cupertino, nos currais de cabras, nos plantios de mandioca, nas colheitas do babaçu, da carnaúba, na fila da clínica, entre os amantes nos coqueirais.

Os que foram capazes de enxergar, guardaram os comentários para os iniciados. O povaréu, pelo contrário, contava o que alguém viu, ou alguém que ouviu, de alguém que escutou de alguém que viu. E como diz a sabedoria popular, quem conta um conto, aumenta um ponto.

Era a peixeira de Mereciano, que a ergueu no ar para desferir no doutor, mas foi detida, pela mão de um encantado. Os raios que eram desferidos pelo Obaluaiê, contra Logun Edé, que os detinha com o Ofá. A presença do Ólodúmaré que apaziguou os orixás e acalmou o coração de Mereciano. Eram mil histórias, fantasiosas, no geral, e muito pouco próximas do real.

Como o assunto fez mesa entre os pescadores, a notícia correu toda a costa. Cordelistas de grande estofo, apresentaram em seus versos o “Grande Embate”, “A Batalha dos Orixás”.  Esses cordéis, fizeram sucesso nos mercados do litoral norte e nordeste. Estavam tanto no Mercado de Ver o Peso em Belém, como no Mercado Modelo em Salvador. Na feirinha Beira Mar de Fortaleza e na José Avelino, por muito tempo, o cordel da “Guerra dos Orixás” foi o mais procurado. Foi um dos temas mais cantado e recantado, entre os poetas do Sertão do Pajeú.

Enquanto isso, no meio de todo esse palavrório, Areia Santa, foi voltando ao seu dia a dia. O assunto foi se recolhendo as mesas dos botecos e na falta de assunto das conversas diárias. As filas se fizeram presente na porta da clínica, os pescadores saíram para o mar, o entre e sai da loja de Mainha, a molecada jogando bola, as missas do Padre Inácio, as beatas da Legião Coração de Jesus, os empregados do Coronel Cupertino, a vida seguindo o seu diário.

O Dr. Rui Castro, iniciava o expediente às 7,30 h, quando dava, parava para almoçar, na casa de dona Nena, ou ela levava, os pratos embrulhados em uma toalha de mesa. Dizia:

- Vosmecê precisa come bem pra tê saúde, pra atende os que não tem saúde.

Como as filas foram diminuindo, o Dr. Rui conseguia muitas vezes parar entre as quatro e cinco da tarde. Quando acontecia, colocava um calção e com a cachorra Rubi corria na praia e depois entrava no mar, nadando por um tempo. As moças, gostavam de encontrá-lo nessa jornada para apreciarem sua beleza e físico.

Depois de um banho, seguia para o comércio de Mainha, sentava em uma das mesas de frente para a praça, tomando um suco ou uma cerveja, comendo o prato do dia. Podia ser uma galinhada, bobó de camarão, peixe frito, sarapatel, perna de cabrito.

Mainha havia, recentemente, trazido de São Paulo, Zuza, cearense de Sobral, que trabalhou em renomados restaurantes como Le Casserole, Cantina do Marinheiro, Lellis Trattoria e outros mais. Até sushiman, no bairro da Liberdade, em São Paulo, ele fora. Quem o indicou foi Januário, contador do Coronel Cupertino, seu primo, que sabia que queria voltar para o Ceará e viver em uma cidade tranquila, com a mulher.

No final do dia, vários empregados das empresas do Coronel, por ali apareciam e se regalavam com o prato que Zuza preparava para a janta. No almoço, não havia movimento, pois, o pessoal comia nas empresas.

Dr. Rui Castro, tinha uma mesa reservada, em um dos cantos, onde podia apreciar a praça, ver e escutar o mar. Mainha, normalmente, sentava um tempo com ele e conversavam, quando não jantavam junto. Falavam de tudo, mas tinham uma especial preocupação com a saúde da cidade. Vacinação,  a vinda de um barco da Secretaria da Saúde, com estrutura para atendimento dentário e oftalmológico, medicamentos, ortopedia e por aí iam.  Eram muitas ideias, que gradualmente, conseguiam que fossem realizadas.

Quem aparecia no final de dia, ocasionalmente, era Janaína na volta do trabalho. Sentava-se com Mainha e o doutor e também participava de várias dessas ideias. Mainha, muitas vezes, saia da mesa e deixavam os dois conversando. Dava gosto de ver a conversa alegre, a troca de olhares amorosos. Para Mainha, estava claro que os dois estavam apaixonados.

- Dr. Rui, como veio para aqui em Areia Santa? – perguntou em uma das ocasiões Janaína.

- Uma hora dessas eu te conto.

Porém, numa dessas conversas, Mainha contou ao doutor, que teve conhecimento por um morador da Vila do Encantado, que pescadores encontraram Mereciano no cais em Fortaleza, e que em alto e bom tom, falou que voltaria a Areia Santa para levar Janaína, caso contrário a mataria e ao doutor, pois, não podia imaginar os dois vivendo juntos.

Mainha, salientou que não colocava fé na informação, por quem havia vindo. Agostinho, no seu meio, é uma pessoa que não goza de confiança no que fala. É alguém amargurado com a vida, pelos insucessos que teve no amor e no trabalho, e sente prazer em ver pessoas desnorteadas e sofrendo, com os boatos que gosta de repassar.

- Porém doutor, é conveniente tomar cuidado. Cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Vou repassar essa informação para Janaína – ressaltou Mainha.

A informação ficou martelando na cabeça de Rui. O temor não era por ele, mas por Janaína. Não se perdoaria se algo acontecesse com ela. Bastava, a dor da perda que sofreu de um ente querido, aos seus cuidados.

Com isso evitava Janaína e não dava espaço aos sentimentos, que sabia que os dois nutriam pelo outro. À noite, o sono se tornava difícil com a lembrança de seu sorriso, dos olhos, dos lábios dizendo seu nome.

Janaína, por seu lado, também sofria. Procurou Mãe Cida e pediu que jogasse os búzios. Ela dizia que haveria uma grande reviravolta em sua vida. Não conseguia prever se seria algo bom ou ruim. Com isso, Janaína continuava na angústia em relação ao doutor e a Mereciano.

Passado mais de dois meses do acontecido com os encantados, Mainha apareceu em meio de uma manhã na clínica, nervosa interrompeu a consulta que Dr. Rui estava fazendo e contou:

- Mereciano acabou de desembarcar. Foi para a casa da mãe. Vou providenciar um pessoal para te proteger.

- Não quero nada disso. Tomarei cuidado.

No dia seguinte da chegada, Mereciano seguiu para a clínica.

- Quero fala com o dotô.

- Está atendendo, quando acabar o senhor entra – respondeu Jussara.

Entrou apavorada na sala de atendimento e informou o doutor da visita. Ele tratou de acalmá-la e que logo a seguir o atenderia. Jussara, deu um jeito de mandar recado para Mainha, mas, esta já sabia, pois muitos o viram indo para a clínica. Tratou de seguir para lá levando, dois dos seus funcionários que eram pau para qualquer obra.

O homem que diz “dou” não dá

Porque quem dá mesmo não diz

O homem que diz “vou” não vai

Porque quando foi já não quis

O homem que diz “sou” não é

Porque quem é mesmo é “não sou”

O homem que diz “estou” não está

Porque ninguém está quando quer

Coitado do homem que cai

No canto de Ossanha, traidor

Coitado do homem que vai

Atrás de mandiga de amor

 

16 – O ENCONTRO

Janaína, que estava no escritório da empresa do Coronel Cupertino, onde trabalhava, recebeu o recado da ida de Mereciano para a clínica. Ficou em grande desassossego. Recolheu-se a um canto e rezou para sua protetora, Iemanjá.

Tia Délia, o viu saindo, não sabendo para onde ia. Contara, na noite anterior, que viera para solucionar assunto pendente. Queria dar um fim nele. Quando contaram para onde o filho fora, ela acendeu uma vela e se ajoelhou em frente ao pequeno altar que tinha em casa. Lá estavam Iemanjá, Olodumaré e em um espaço especial Nossa Senhora e o grande Oxalá, Jesus Cristo.

Corisco, que estava com Mainha, tratou de pegar sua peixeira e com ela foi para a clínica. Oxente, lembrou todo o trabalho que tiveram para preparar a casa e montar a clínica. Ela não poderia ir água abaixo, por causa de uma pessoa. Estava pronto para o que desse e viesse.

Um povaréu se formou na praça. Mainha se postou na porta e não deixou ninguém entrar, só o Corisco que foi ver se estava tudo bem. Mereciano aguardava na sala de espera. Várias pessoas, que aguardavam sua vez, apresentavam olhares de preocupação. Mereciano parecia tranquilo.

Quando a pessoa que estava sendo atendida saiu, Corisco entrou rapidamente na sala.

- Doutô, qué que eu fique aqui junto do sinhô.

- Não Corisco, obrigado. Fique tranquilo, tudo vai terminar bem.

Jussara fez Mereciano entrar na sala, logo a seguir puxou seu terço e começou a rezar.

- Olá, Mereciano, tudo bem? Sente. Em que posso te atender?

- Doutô foi mal, aquela noite eu tava com os olhos cheios de ódio. Tu não tinha feito nada pra tirá Janaina d’eu, não tinha culpa das coisas. E se o coração da Janaína parou de batê por mim, também não posso fazê nada, ninguém manda no coração de ninguém. Nesse tempo fora, eu passei a frequentar o Terreiro de Mãe Dulcimar, onde tenho participado ativamente. Lá eu pude me aconselhá e pensá. Acabei sabendo que tem fuxico que eu vou volta prá matá os dois. Fica sabendo que isso não vai acontece. Num posso muda o sentimento de ninguém, não posso matá uma pessoa que ainda tenho muito querê. Me desculpá.

Rui viu um homem, falando com a sinceridade do coração. Quanto deve ter sofrido. Como deve ter sido difícil vir falar com ele, ser observado por toda a cidade. É um homem bom, que ficou cego pela paixão. Sentimento que não permite ver a realidade, mas somente o que as emoções desejam. Teve vontade de levantar e abraçá-lo, mas por aqueles lados, abraço de homem para homem, só com o pai, filho, casamento e velório.

- Mereciano, eu lhe quero bem, pode contar comigo.

Quando ele saiu, houve um desafogo entre as pessoas.  O viram descer a praça, com os ombros caídos, mas com a cabeça levantada. Tinha outro olhar, de paz consigo e com seus santos. A praça se esvaziou, só os comentários é que não.

Mainha entrou na sala do doutor e este contou a conversa que tiveram. Ela se sentiu aliviada, pois, estava numa gastura danada. Agora, não via a hora de encontrar Janaína e contar o que houve. Ela precisava se libertar do medo, do temor.

 

Você que sabe demais

Meu Pai mandou lhe dizer

Que o tempo tudo desfaz

A morte nunca estudou

E a vida não sabe ler

 

17 – O AMOR

Nos dias seguintes Areia Santa parecia uma cidade mais alegre e cheia de luz. Pelo menos aos olhos de Janaína e Rui. Janaína passou a aparecer todos os finais de dias na mercearia, para conversar com Mainha e principalmente com Rui. Agora, além dos risos, dos olhares, haviam pequenos toques de mão. Havia uma cumplicidade nos seus encontros. Eles irradiavam felicidade. Entretanto, uma barreira se colocava entre eles, pelo respeito, pelo receio, por várias razões que a razão não conseguia explicar. Havia uma tênue separação, composta de conceitos que necessitavam ser jogados por terra. Eles inclusive se tratavam com formalismo.

- Doutor, estou encasquetada, como veio parar aqui em Água Santa? – pergunto Janaína.

- Eu tinha um consultório em São Paulo com uma boa clientela. Era casado.  Cresci profissionalmente. Tinha financeiramente uma boa situação. Meu sogro, também era médico, e me apoiou muito em minha carreira. Tudo ia maravilhosamente bem. Tivemos um filho, Samuel. Quando, com sete anos, ele rapidamente adoeceu.  Era meningite aguda, mesmo tendo sido vacinado de pequeno. A doença evoluiu rapidamente. Meu sogro que estava em viagem, retornou rapidamente. Quando chegou, não havia o que fazer. Em quatro dias veio a falecer.

- Perder um filho é uma dor muito grande. Imagino quanto maior, por ele estar em tuas mãos.

- Janaína, nesse momento, começou o grande calvário de minha vida. Minha mulher me culpou pela morte, mesmo meu sogro tendo dito, que eu havia feito tudo correto. Fora uma fatalidade. Eu também comecei a me culpar, tentando encontrar no que errei. Eu o adorava. Minha vida girava em torno dele. Brincávamos, corríamos e riamos muito. Minha mulher em alguns momentos ficava enciumada, pela atenção minha ao garoto e a retribuição que ele dava. Quando ela o perdeu, sentiu o quanto deixou de dar e que não mais poderia dar. O sentimento de culpa que caiu sobre ela, foi canalizado para mim. Tornou-se fria, seca, chorando pelos cantos e manifestando que eu havia matado seu filho. Saiu a separação, deixei tudo para ela.  O casamento durou mais de 10 anos, foram anos maravilhosos. Eu não quis nada do que tínhamos.

Eu mal comia, morria aos poucos, não tinha vontade de viver. O sentimento de culpa em mim era maior que a razão, me considerava o principal responsável, apesar de todos dizerem que fora uma fatalidade. Eu pensava que deixara a vida de meu filho escapar pelas minhas mãos. Só pensava onde e quando eu errara.  Não queria viver. Não queria sair de casa.

Pouco a pouco com ajuda de meu irmão e de amigos médicos e psiquiatras, fui saindo do buraco em que me meti. No início, através de medicamentos para controlar a depressão, vitaminas para repor o que perdia, injeções para recompor minha condição física, foram aos poucos me tirando daquela letargia, do desânimo que me dominava. Foram oito meses para sair do inferno e retornar a vida.

O medo de sair de casa foi sendo suplantado, a vontade de morrer, foi sendo substituída por pequenas alegrias que a vida me apresentava, no amor das pessoas, no apoio, na vida que se mostrava a minha volta, na natureza que sempre adorei.

Resolvi, após longas conversas com meu psicólogo, meu irmão e minha cunhada, que tinham medo das minhas reações, sair de viagem. Decidi correr o país pelo litoral, pois, sempre fui amarrado no mar e deixar me levar. Ser o que a vida viesse a me oferecer.

No Espírito Santo, encontrei uma comunidade budista, onde fiquei um bom tempo. Aprendi a me reequilibrar, a meditar, o que tem me ajudado.

Assim, depois de dez meses, cheguei por aqui. Encontrei, neste local, uma paz que me reconforta, e pessoas amigas. E agora um objetivo de vida.

Lágrimas se formaram nos olhos de Rui, que contava isso tudo olhando para o infinito. Ao terminar, volveu seus olhos para Janaína, com um olhar de quem pedia desculpa a vida, e encontrou no dela, lágrimas e um sorriso de compreensão. Ela se levantou da cadeira, deu volta a mesa, pegou seu rosto entre as mãos e delicadamente depositou um beijo em seus lábios. O abraçou, prendendo sua cabeça em seu peito e com um carinho na cabeça, disse:

- Tu é um homem bom, um homem de amor.

Fez um carinho em seu rosto e saiu. Mainha que tudo via, à distância, tinha os olhos marejados e um sentimento de amor que queria explodir em seu peito. Desejou ardentemente, que o doutor fora feliz e tinha certeza que Janaína era a mulher certa para ajudá-lo.

 

Ouve como o silêncio

Se fez de repente

Para o nosso amor

 

18 – OBALUAIÊ

O Padre Inácio, resolveu com as mulheres da Legião, fazerem uma quermesse, seria em um final de semana que tinha um feriado na segunda. Era necessário angariar dinheiro para uma série de reparos a serem feitos na igreja.

A cidade vivia um clima tranquilo. Três meses se passaram desde a noite fatídica.  Um barco, com estrutura para atendimento dentário e oftalmológico, estava certo que viria no próximo mês e ficaria uma semana e meia aportado na cidade. A notícia correu entre a população, inclusive do arredor.  Mainha, ficou responsável de estruturar o atendimento do pessoal de bordo, em relação ao almoço e janta. Ela e o Rui estudavam o esquema que fariam para viabilizar os óculos, que fossem prescritos.

O momento, pensou Padre Inácio, era propício para uma quermesse, com bingos, barraquinhas de comidas e um belo arrasta pé. Mainha ofereceu, por sua conta, a contratação do grupo musical. A população se reuniu para preparar os enfeites.

A notícia correu pelo litoral, da mesma forma que a festa do padroeiro, muitos vieram e acamparam nas proximidades. Com isso, a cidade foi tomada de alvoroço com tanta gente, já no início da semana da quermesse.

Houve pessoas, que aproveitando a vinda a Areia Santa, resolveram se consultar com o doutor.  Diziam que além de bonito, era bom no que fazia. Rui teve uma semana atribulada, mal vendo Mainha, que estava envolvida nos preparativos, inclusive de salgados e doces para venda nas barraquinhas. Sua casa fora tomada por mulheres, tanto da Legião, como não. Janaína, também evaporara.

No sábado do início da quermesse, Rui teve bastante trabalho, inclusive, avisou que atenderia domingo à tarde. Pensou em resguardar a manhã de domingo, pois desejava se divertir na quermesse.

À noite, se preparou. Fez a barba, tomou um belo banho e se perfumou. Colocou uma roupa passada e que sabia que lhe caía bem. De repente parou e percebeu, que estava fazendo tudo aquilo porque queria encontrar Janaína e impressioná-la.  Pensou, que sem-vergonha estou sendo e riu.

Se o doutor se preparou, Janaína, não ficou por menos. Quando a viu, conversando com algumas pessoas, acreditou ter visto um anjo caído do céu. Seu coração disparou e sentiu um vazio no estômago. Como poderia ser? Estava cansado de se encontrarem. Ela estava simplesmente linda. O cabelo solto com uma tiara enfeitada de pequenas flores, um vestido branco, tomara que caia, ressaltando a beleza da sua pele, que contrastava com o branco da vestimenta, um olhar cheio de brilho e um sorriso que cabia o que há de bom no mundo.

Como se houvesse um ímã os atraindo, foram ao encontro um do outro com sorrisos de alegria.

- Pensei que o doutor não viesse, com tanto serviço que está tendo.

- Não poderia perder a festa, fora que não teria a oportunidade de te ver tão linda.

Ela corou, lhe deu a mão e o puxou rindo e falando:

- Bora ver as barracas.

De mãos dadas, passaram por elas, cumprimentando, fazendo um gracejo, beliscando alguma das guloseimas. Em uma barraca, meninas, vendiam pequenos cravos feitos de papel. Lindos, pareciam originais. Rui comprou um e colocou no cabelo de Janaína.

- Não há lugar melhor para ficar.

Os dois já eram o grande comentário da noite. Foram dançar. Dançaram duas músicas seguidas. Foram até a mesa de Caetano e Rosário, que levavam o pequeno Rui (puseram seu nome em agradecimento) nascido na tão falada noite. Estácio e Jussara estavam juntos. Com Jussara tentou uma dança, e ela lhe deu, novamente, um nó nas pernas. Foi só risada.

Uma sequência de músicas lentas começou a ser tocada. Com Janaína foi dançar. Rosto com rosto, corpo com corpo. O perfume dela. O perfume dele. Olharam-se nos olhos e se beijaram. Aquele momento era como se a música era só para eles, o brilhar das inúmeras lampadinhas serviam para expor seus rostos e o brilho dos olhares, a brisa envolvendo os cabelos de Janaína como uma carícia. A mão dele pressionando levemente suas costas. O roçar dos seios e das pernas de Janaína mostrava ser realidade e não sonho o que acontecia. O mundo parou só havia eles. A festa era deles. Assim parecia, pois, algumas pessoas, pararam de dançar e se encantaram com o querer dos dois.

Rui pegou sua mão e a tirou da dança e saíram caminhando, com o braço em torno de seu ombro. Foram para a casa do doutor. Ela entrou como que realizando um sonho de algo que sempre ansiou. A levou para o quarto, a abraçou, beijou nos lábios entre abertos, onde línguas se tocaram e sabores novos foram provados. Ela desabotoou sua camisa, que foi ao chão, e correu a mão pelo peito, ombro e pescoço. Pequenos beijos foram depositados. Ele soltou seu vestido, que escorregou pelo corpo, depositado aos pés. Lá estava ela, linda, maravilhosas. Pequenos seios e mamilos intumescidos. Beijos, carícias. Sua mão desceu e lentamente foi retirando a calcinha branca que vestia. Um pequeno novelo cobria seu sexo. Ela tirou o restante da roupa e observou a beleza do seu corpo e seu sexo, mostrando firmemente o desejo que o tomava. Deitaram na cama, ao longe o ruído da festa, mas, entre eles só se ouvia as palavras e os gemidos de desejo. Lentamente a possuiu. A marca do momento em pequena mancha no lençol. Foram da terra ao céu. Beijavam-se e sorviam seus corpos, matando a sede de desejo e amor a tanto tempo represados. O mundo se bastou entre as paredes daquele quarto.

 

No terreiro de Mãe Cida, começaram o som dos atabaques, do adja, o repique do agogô e o abê. As êbomim e as abiã, iniciam o acompanhamento nas palmas. Os filhos e filhas do terreiro, com suas guias, nas cores de seus orixás, se põem a dançar, dispondo o cavalo para ser montado pelo santo. Vão sendo incorporados.

De repente Obaluaiê aparece com sua vestimenta de palha e búzios, o azó-iko e dança opanijé. Saudações são exclamadas:

- Atotô Obaluaiê.  

Veio comemorar. Pipocas são lançadas.

Para mais alegria da festa, Iemanja também incorpora, com seu abebé nas mãos.

É a alegria por Janaína, de quem é madrinha. Também veio festejar.

- Odoia, Yemanjá, odoia

A noite é de festa, os orixás estão felizes. A lua branqueia a areia e as águas do mar. Os barcos no seu doce balanço, como criança em colo de mãe. Noite calma. Brisa leve.

- Saravá!

O canto continua:

- Vou chamar minha mãe, eu vou. Vou chamar minha mãe, eu vou. Na beira do mar.

Vou chamar minha mãe, eu vou. Vou chamar minha mãe, ela é Iemanjá, a rainha do mar.

 

 

 

domar