sábado, 4 de maio de 2024

PRÁ FRENTE BRASIL 1960/70

 

 

Estava aguardando o bonde, 35-LAPA-PRAÇA DO CORREIO, como faço diariamente, às 7,15 h na Praça Marechal Deodoro, para ir ao trabalho. O bonde vem da Lapa, passando pela Av. Francisco Matarazzo, General Olímpio da Silveira e depois, Av. São João até chegar a Praça dos Correios. Dalí ao escritório, na Libero de Badaró, são cinco minutos de caminhada.

Parou a meio fio, um carro de polícia, desceram dois indivíduos, que perguntaram seu era Clóvis Barros dos Santos, com minha concordância, convidaram-me para uma ida a delegacia próxima, atordoado e meio que empurrado entrei no veículo.

Ao chegar à delegacia, informaram que o Dr. Delegado saíra para uma averiguação e não deveria demorar e eu teria que aguardar. Só que me colocaram em uma cela para aguardar.

- Estou preso por quê? O que aconteceu?

- Você não está preso. Só por segurança, aguardará. O Dr. Delegado vai te explicar.

- Posso dar um telefonema para o escritório, estão aguardando que eu apareça para trabalhar?

- Isso você pede ao Dr. Delegado.

Na cela, lembrei da minha chegada em São Paulo, há 6 meses, em fevereiro de 1962 vindo de Franca, onde morava com meus tios Abelardo e Dina. Fiquei impressionado com as cidades, que avistávamos à medida que chegávamos pela Via Anhanguera. O tamanho e a quantidade de prédios. As cidades próximas, já impressionavam, como Campinas e Jundiaí.  Atualmente, São Paulo é a segunda cidade em população, no Brasil, perdendo por pouco para o Rio de Janeiro, situação essa que está prestes a se alterar.

Meus tios assumiram minha criação, desde os catorze anos, pela morte dos meus pais, em um acidente de carro. Tio Abelardo é irmão de mamãe. Não tinham filhos e me criaram como se fosse. Tenho grande respeito, admiração e carinho por eles.  Os considero como meus segundos pais.

Quando acabei de me formar bacharel em direito, na primeira turma da Faculdade de Direito de Franca, titio considerou ser conveniente que viesse estagiar em um grande escritório de advocacia em São Paulo, o que me daria experiência e currículo.

Cheguei de ônibus na Rodoviária Júlio Prestes, que fica na Av. Duque de Caxias.  A rodoviária havia sido recém inaugurada. Possuía cobertura em acrílicos coloridos o que dava um aspecto moderno. Depois, com o tempo, soube o quanto a sua localização, levou a acelerar a deterioração dos bairros próximos, pelo trânsito, meliantes, pequenos comércios e hotéis.

Cheguei com a indicação, de meu tio, de uma pensão para homens, na R. Vitorino Carmilo, de propriedade de uma amiga conterrânea, com quem já havia se correspondido e estava guardando uma vaga. Fui de táxi, conforme orientação. A dona da pensão, Dona Ana, me recebeu com muito carinho. Era um casarão assobradado, tendo inúmeros quartos. O meu, era no andar de cima, tinha dois beliches, portanto dividiria com mais três rapazes.

Era um casarão da época em que o Bairro de Campos Elíseos e um pedaço da Barra Funda, foram bairros de moradia dos Barões do Café.  Campos Elíseos foi o primeiro bairro planejado de São Paulo, para ser um pedacinho de Paris, basta ver o nome aportuguesado da famosa avenida Champs Élyseés, pelos arquitetos Nothmann e Glete, que hoje são nomes de ruas na região. Outra vantagem, é que estava razoavelmente perto da Estação da Luz, por onde muitos dos cafeicultores se dirigiam a suas fazendas no interior.

- Temos café da manhã, das 6,30 h até as 9,00 h. O café da manhã está incluso na diária, almoço e janta você decide se quer, naturalmente pagando uma taxa extra. Informou-me os horários do almoço e do jantar, caso fosse do meu interesse.

- Obrigado, Dona Ana. Tenho uma entrevista amanhã e conforme for o esquema de trabalho decido.

Os colegas de quarto, também vieram do interior, e trabalhavam em atividades distintas. Com o Januário, o mais, expansivos dos três entabulei uma conversa, onde foi me dado dicas da cidade.

No dia seguinte, pela manhã, peguei o bonde, conforme orientação dos colegas de quarto, que me deixaria próximo à Rua Líbero de Badaró. O endereço era o Edifício Conde Prates, uma das belezas arquitetônicas de São Paulo, de frente para o Vale do Anhangabaú e o Teatro Municipal, com 33 andares.

Os elevadores eram automáticos. Quando abriam a porta, um alto-falante informava que estar subindo ou descendo. Não havia ninguém cuidando dentro. Você apertava o botão e lá ia ele.

Eu tinha que ir no 16º.  Fiquei apavorado, me imaginando fechado no elevador, caso parasse. E se eu estivesse só? Por sorte entraram mais pessoas. Fui com medo. Durante a subida, ouvi a conversa de dois rapazes, dizendo que no dia anterior, houvera problema em um dos elevadores, ficando parado dez minutos. Eu estava me borrando. Basta saber que quando terminei a entrevista, desci os 16 andares pela escada. Mal sabia que teria que me acostumar, pois, seria meu martírio diário.

Era um escritório de advocacia grande. Impressionava pela sua suntuosidade. Uma ampla sala de espera, móveis e alguns painéis em Cerejeira, poltronas de couro marrom com o encosto alto, garçom oferecendo água e cafezinho.  Minha entrevista era com o Dr. Abílio Monteiro Junior, um dos sócios e amigo de juventude de meu tio. Primeiro tive que passar por sua secretária Dona Margarida, que me recebeu com simpatia, perguntando do meu tio, pois, já falara com ele inúmeras vezes por telefone. A entrevista com Dr. Abílio foi rápida e formal. Disse que poderia começar como estagiário no dia seguinte, me encaminhando de volta para Dona Margarida, que me indicou a documentação a trazer. Já estou por lá há 6 meses.

 

- Vamos, o Dr. Delegado chegou – disse o investigador abrindo a porta da cela.

O delegado estava sem paletó, com a gravata frouxa, as mangas da camisa enrolada, um revólver na cintura, fumando cigarro, tendo um cinzeiro, na mesa cheio de bitucas. Tinha uma pasta na mão que devia conter informações a meu respeito. Foi direto para o assunto.

- Houve um roubo, antes de ontem à noite, na casa do Comendador Nagib Almeida Fuad e as provas apontam o senhor como culpado.

- Impossível ser eu Doutor. Moro numa pensão na R. Vitorino Carmilo, jantei no local e fui para cama, em quarto que divido com mais três rapazes, que podem atestar que dormi lá.

- Já estivemos verificando. Você pode muito bem ter saído de mansinho de madrugada, sem eles verem, tendo feito uma cópia da chave da frente.

- Isso é um absurdo doutor. Como as provas apontam para mim?

- Você foi visto, saindo com a filha do Dr. Nagib, possivelmente levantando informações para o crime.

- Filha do Dr. Nagib, quem?

- Não se faça de tonto, Maria Alice.

- Ah, sim, sai algumas vezes com ela. Não ligara o nome, pois, só se referia como pai.  Somos somente amigos.

- Não foi o que disse o seu irmão.

- Ele nos viu uma vez voltando do cinema, isso não prova nada.

- Estamos investigando, enquanto isso você permanece detido.

- Sou advogado, trabalho em um escritório de advocacia, posso ligar para meu chefe e expor o que está acontecendo e por qual razão não apareci para trabalhar?

- Pode.

Ligue para Dona Margarida. Expus o que estava acontecendo e que estava na Delegacia do Campos Elíseos.

- Falei com o Dr. Abílio, que está ao meu lado. Está saindo para uma audiência e logo a seguir segue para aí.

Na volta para a cela, pude relembrar como conheci Maria Alice.

 

No primeiro dia de trabalho Dona Margarida informou que o escritório tem como horário de trabalho da 8,00 h às 18,00 com duas horas de almoço e meio-dia no sábado, ou caso o funcionário queira, uma hora de almoço e está dispensado de vir no sábado. Optei por essa possibilidade.

No início, comia sanduiche nos vários bares que havia na região. Sanduíche de linguiça de Atibaia, na rua São Bento, cachorro-quente com dupla salsicha, no molho de mostarda e uma caçulinha, no Largo do Café, sanduiche de almondega com molho de tomate, no começo da avenida São João e outros mais. 

Depois, pouco a pouco, fui conhecendo, por indicações, pequenos restaurantes onde podia comer o prato do dia a um preço não muito elevado. É um esquema que não tínhamos no interior. Os pratos variavam conforme o dia da semana, segunda-feira, virado paulista, terça, bife a rolê, quarta, feijoada, quinta, macarrão com frango, sexta, peixe frito.

Tendo o sábado livre, eu aproveitava e saía no mesmo horário da semana e ia para o centro. Só que a pé, o que levava em torno de meia hora.  No caminho, parava no Rei do Mate, na Avenida São João, quase esquina com a Ipiranga e tomava um mate com leite. Delícia espumosa.

A parte da cidade em que fica o escritório é chamado de centro velho. Compreende a Praça João Mendes, da Sé, Pátio do Colégio (onde foi fundada a cidade), as Ruas Direita, São Bento e Praça Patriarca. O centro bancário, fica nesse miolo, assim como, o Largo de São Francisco com a Faculdade de Direito. Aliás, a região aonde se deu o início da cidade.

A separação do centro velho para o novo é o Vale do Anhangabaú, que se atravessa pelo Viaduto do Chá e o Santa Efigênia. O Viaduto Santa Efigênia, sai do Largo São Bento, no final da rua do mesmo nome e o Viaduto do Chá, da Praça Patriarca, praticamente na metade da Rua São Bento. Essa linha reta formou a base do triangulo, que ia até a Praça da Sé, no qual por muitos anos se desenvolveu a vida econômica e cultural da cidade.

A rua São Bento vai do Largo, de mesmo nome, até o Largo de São Francisco, onde temos a faculdade de direito. Pelo Viaduto do Chá, chegamos ao Teatro Municipal, que tem em frente o Mappin, que anteriormente estivera no centro velho, na Praça Patriarca, sendo a maior loja de departamentos de São Paulo, a Mesbla na rua 24 de Maio, sua grande concorrente, a Rua Barão de Itapetininga, local das lojas de calçados para homens e onde, se situam os mais renomados alfaiates. Dava gosto andar por ali, vendo as vitrines de calçados, ternos e camisas.

 As ruas paralelas, 7 de Abril, 24 de Maio, assim como a Barão de Itapetininga, que iniciam do lado do Teatro Municipal, terminam na Praça da República, um pulmão verde, com lago, no meio do concreto da cidade, contendo lojas finas, joalherias, edifícios requintados, cinemas e o tradicional colégio Caetano de Campo. No domingo abriga uma feira com filatelistas, numismáticos (colecionadores de moedas), pintores.

 Do outro lado da praça está a Rua do Arouche, onde se encontram as lojas de calçados femininos. Há Inúmeros cinemas nessa região. É a Cinelândia paulistana. Alguns bem conhecidos como Metro, República, Marabá, Ipiranga, Marrocos e Paissandu.

Todo final de semana fui para esta região, desbravando, chegando aos bairros próximos como Liberdade, Vila Buarque, Santa Cecília. À tarde, assistia a um filme e depois comia algo barato na região, como um kibe no Kiberama ou um brotinho nas inúmeras pastelarias existentes, a maioria em mãos de japoneses. 

Era muito comum ir ao Salada Paulista, que fica na Avenida Ipiranga, ao lado do cinema com o mesmo nome. O prato vem com duas salsichas e uma porção de salada de batata no meio. Pedia um refrigerante, para economizar em relação ao chope.  Come-se de pé no balcão. Há poucas mesas.

O Campos Elíseos, o bairro em que estou morando, possuí inúmeros casarões da época dos barões do café, mas no momento em franca deterioração. Houve forte influência, para isso ocorrer, da Estação Ferroviária Júlio Prestes, construída em 1930 em desuso no momento, e agora, também a nova estação rodoviária, que trouxeram para a região diversos pequenos comércios e hotéis. Encontram-se casarões, alugados, em alguns casos, transformando-se em cortiços, ou como o nosso, em pensões.

O que tem retido a aceleração da deterioração, é estar a sede e a residência do Governo do Estado no Palácio Campos Elíseos, na Av. Rio Branco, além de ter próximo, o tradicional Liceu Sagrado Coração de Jesus, onde filhos da elite e da burguesia que se forma em São Paulo estudam.

O Palácio de Campos Elísios é lindo e pomposo, foi construído em finais do Sec. XIX, no estilo que dominava a Belle Époque, vindo o material para sua construção do exterior. No bairro ao lado do nosso, a Barra Funda, também encontramos residências em deterioração, vindas do período áureo.

Foi nas caminhadas tratando de conhecer a região e os entornos que acabei conhecendo Maria Alice. Ocorreu no magnífico Parque da Água Branca, localizado na Avenida Francisco Matarazzo, um verdadeiro oásis de 150.000 m2, arborizado em quase toda a sua totalidade, com tanques de peixes e viveiros de aves e onde se realizam as exposições e feiras agropecuárias da cidade.

No dia que a conheci, estava havendo uma exposição de cavalos Quarto de Milha. Na arena, existente no meio do parque, houve provas envolvendo as habilidades da raça.  Fiquei um bom tempo assistindo, depois, fui apreciar os animais nas diversas baias dispersas pelo parque.

Notei, em uma delas uma família, pai, mãe, filha e filho conversando com a pessoa que devia cuidar do animal. O filho estava com roupa de montaria. Provavelmente, se apresentou com o cavalo e pelo visto não estava muito satisfeito. O que me chamou a atenção foi a sua irmã. Sim, era irmã, pois escutei chamá-la dessa forma, como o casal mais velho eram os pais. Ela apaziguava a discussão. A família tinha características libanesas. Discutiam, o que parecia ser o resultado da apresentação do animal. Maria Alice, como se chamava a filha, era a que acalmava a todos, principalmente o pai, que discutia com o filho de uma forma enérgica. Não era uma família de pessoas altas. O rapaz era o mais alto, quem sabe com 1,70m, os outros menores e atarracados. O evento deve ter sido de gala, pois as mulheres estavam muito bem vestidas e o pai de terno e gravata.

Segui minha caminhada, usufruindo da beleza do parque e dos seus inúmeros recantos. As construções tinham a pompa do início do século XX. Soube que o parque fora inaugurado em 1929.

Estava observando os pássaros nos viveiros, quando percebi Maria Alice, quase ao meu lado, embevecida com eles.

- São lindos, mas deveriam estar soltos – disse eu puxando conversa.

- Sim, mas muitos não estariam vivos nesta cidade onde a quantidade de árvores diminui. São poucos oásis de verde como este na cidade.

A profusão de cores e cantos era empolgante. Como na minha cidade havia muitos pássaros, passei a nomear alguns deles e a chamar atenção para a beleza de outros.

- Veja aquele casal com bicos vermelhos e uma faixa da mesma cor nos olhos, é o bico-de-lacre. Na minha terra muita gente chama de bico de lata. Veja a fêmea voou para o ninho feito de palha, naquele canto.

Ela se encantava e eu ia lhe chamando a atenção, para os que conhecia e apresentava seus nomes. Era empolgante observar sua alegria com as cores e os cantos. Seus olhos reluziam, seu rosto resplandecia alegria. Ela tinha uma beleza sóbria, mas um olhar que dava brilho ao rosto. O cabelo era castanho escuro, cumprido, preso em um rabo de cavalo. Algumas mechas se soltavam e ela tinha um jeito gracioso de empurrá-las para trás da orelha. Sua voz era baixa e suave, mas firme, dando força as palavras com o olhar e uma leve movimentação das mãos.

Caminhamos por alguns recantos do parque, nos encantando com as flores e as árvores. Nas conversas acabei informando morar próximo, nos Campos Elíseos e ela retorquiu que morava no mesmo bairro.

Olhou o relógio e apressada:

- Tenho que ir. Não sei se você gosta, mas domingo às 16,00 h, no Theatro Municipal, que eu não sei se você conhece, terá apresentação de um quarteto de cordas. Tenho uma amiga que se apresentará e estou com entradas gratuitas. Podemos nos encontrar por lá.

No domingo seguinte, lá estava eu na porta do Theatro Municipal. Uma magnífica construção do início do século XX, inaugurado em 1911 e inspirado na Opera de Paris, que na época foi construído para atender as elites paulistanas que queriam rivalizar com os grandes centros culturais.

Ela desceu de um carro, com motorista, com outra moça, de mais ou menos a sua idade. Estava linda em um vestido amarelo florido e sua amiga não ficava por menos em um azul-claro, ambos fazendo jus à tarde ensolarada de primavera.

- Esta é minha prima Elisa, este é o Clóvis de quem lhe falei.

Ao entrar no teatro, fiquei embasbacado com a magnífica escadaria na sua entrada, a beleza da sua construção e o apuro das poltronas e dos camarotes. Soube que tem mais de 1500 lugares. Nunca tinha estado em algo igual. Pisar onde grandes bailarinos, companhias de ópera estiveram e a famosa Semana Modernista de 1922 ocorreu, deu-me uma sensação de alegria.

Pude observar como as duas se deliciavam com a apresentação, trocando cochichos e pequenos risos. Ela só teve uma pequena frase durante o espetáculo comigo:

- Está gostando?

Após o conserto, Maria Alice propôs tomarmos o bonde na Praça Patriarca, que fica perto, descermos na Praça Marechal Deodoro e irmos a uma pizzaria que conhece na região.

A conversa entre os três foi muito agradável, cheia de risos referente a lembranças de momentos que ela e a prima viveram juntas e de fatos que contei da minha juventude. Fiquei sabendo que ela havia terminado, no ano anterior, o ginasial no Colégio Boni Consillii, localizado em um lindíssimo prédio, construído no início do século e que conheci nas minhas caminhadas, localizado na Alameda Barão de Limeira. Quando estávamos na sobremesa, saboreando deliciosos pudins, Elisa perguntou:

- Como ficou a situação com o teu pai em relação aos teus estudos.

- Péssima. Estou participando em um cursinho preparatório, administrado pelo Centro XI de Agosto, para prestar exames no final do ano. Quero fazer direito no Largo de São Francisco. Meu pai, quer que faça um curso de normalista, que segundo ele é o mais adequado para uma mulher. Ele quer minha vida determinada por ele, como o fazem os pais com todas as mulheres da família. Obriga que participe nos eventos sociais da comunidade, para encontrar um marido casar. Eu não quero. Primeiro me formar em direito, onde posso trabalhar por nós mulheres.

- Fico admirada com tua coragem. Eu não tenho conseguido enfrentar meus pais. Ultimamente, vivem convidando o Farid, que você conhece bem, para aparecer em casa. Ele aproveita e tenta me cortejar. Gosto dele, mas não gosto dessa imposição. Acaba inibindo meus sentimentos, que até poderiam crescer em relação a sua pessoa. Estou conseguindo sair sozinha, porque estou contigo.

- Temos que batalhar por nossos direitos como mulheres. Não somos objetos de negociação entre famílias. Meu pai me ameaça deserdar. Tenho um dinheiro que minha vó me deixou, para quando necessário, na busca dos meus caminhos e não os que os meus pais quiserem. Ela era uma visionária. Faço dezoito daqui a alguns meses e posso tomar posse desse dinheiro e ter alguma independência. Naturalmente, terei que trabalhar para complementar o meu sustento.

Fiquei chocado com aquela conversa. Sei muito bem, como as moças são tolhidas nos seus desejos pelos planos dos pais. Lá na minha cidade, isso também acontece. Muitos casamentos arranjados. Maria Alice deixou claro a prima, que o clima com seu pai e seu irmão era péssimo. O irmão seguia a mesma mentalidade machista do pai. A única que lhe apoiava, e mesmo assim, com muito receio era a mãe.

No caminho de volta para casa, perguntei:

- Topam ir ao cinema a semana que vem?

- Clóvis, eu tenho que voltar para casa, não poderei ir – retorquiu Elisa.

- Quando você vai? – perguntou Maria Alice.

-  Quarta que vem.

- Que tal virmos na terça aqui na praça e tomamos um sorvete e curtimos um pouco os jardins? Tem uma sorveteria ótima do lado de lá da praça.

- Eu trabalho. Pode ser a sete da noite?

- Tudo bem.

Na quarta à noite, nos deliciamos com os sorvetes. Nessa noite a conversa girou mais entre Maria Alice e eu, como se elas tivessem um acordo, para poderem me conhecer melhor. Nossos olhares, viviam se encontrando e algumas vezes em nossa conversa havia pequenos toques no braço. Era como uma corrente elétrica descarregada em mim.

- Já são oito horas, precisamos ir.

- Posso acompanhá-las?

- Sim, mas até uns quarteirões antes de casa.

Para ela, assim como para mim, o desejo que o caminho não chegasse ao fim era evidente. Ao final me despedi de Elisa e perguntei a Maria Alice:

- Vamos ao cinema sábado.

- Eu topo, podemos nos encontrar no ponto do bonde.

- Que tal às 3,00 h.?

- Combinado.

Passei os dias, ansiosamente esperando pelo fim de semana. Lembrei de cada riso que demos, dos olhares que se cruzaram, dos pequenos toques nos braços, nas mãos. Será que eu estava apaixonado. Ideia que eu tirava da cabeça, pois, havia um universo nos separando. 

Minha condição financeira, os costumes da família na busca de um marido dentro da sua classe social. Eu dizia para mim, não seja tonto. Ela é só uma pessoa educada e que deseja um pouco de espaço fora dos grilhões familiares.

No dia, cheguei antes da hora e fiquei esperando. Ela finalmente apareceu no horário combinado. Usava uma calça jeans, com a boca da barra um pouco mais larga. Era raro se ver mulheres usando calças compridas, mas ela estava linda, com uma blusa xadrez, por dentro da calça e uma jaqueta de couro.

- Você está linda!

- Obrigado, mas esta roupa já deu pano para manga. Meu pai não acha adequada uma moça de família usar uma calça deste tipo, para sair socialmente. Por ele as mulheres ainda deveriam andar a cavalo com aquelas ultrapassadas selas em que é necessário sentar de lado. Quando estava saindo me questionou. Por um lado, a discussão foi boa, pois, ele acabou não me cobrando aonde iria e com quem.

Pegamos o bonde e fomos para o centro. Ela falava com empolgação do filme e contou detalhes do cinema que iríamos. O centro de São Paulo, era a grande Cinelândia. Havia dezenas de cinemas, como Metro, Marabá, Ipiranga, República, Art-Palácio, Marroco, Olido, Coral e outros mais.

Ela continua no bonde:

- Veja o absurdo, uma advogada não pode ir aos tribunais de calça comprida, mesmo que seja um terninho, elegantemente costurada para ela. Nós mulheres temos muitos direitos a conquistar. Não pleiteio direitos iguais aos homens, mas sim, direitos para as mulheres com justiça, quando adequados, iguais ou superiores aos homens.

Resolvemos assistir Bonequinha de Luxo com a Audrey Hepburn no cine Ipiranga. Inclusive ficamos impressionados, pois havia uma foto em tamanho original dela segurando a piteira, como no filme, colada em uma estrutura de madeira, dando a impressão dela estar presente. 

O cinema era imponente, tinha um enorme saguão com uma grande escadaria com os corrimões e luminárias metálicas que levava a plateia superior. As paredes eram sinuosas, revestidas de mármore. Ele fora construído em inícios de 1940 e tinha capacidade para 2.000 pessoas, divididas em plateia, balcão e pullmann. Soube desses setores, porque Maria Alice nos levou para tomarmos o elevador para o setor pullman.

Ir ao cinema é um programa social, se reveste de formalismo, comum as classes mais abastadas. Muitos homens de paletó e gravata e as mulheres arrumadas para um evento. Maria Alice chamava atenção, pois sua roupa demonstrava informalidade, mas ela não se importava com os olhares, agindo com total espontaneidade e segurança.

O setor onde ficamos, acabou sendo agradável e adequado, pois, as poltronas eram largas e confortáveis e por muitas pessoas não conhecerem aquela área, havia poucos assistentes no local.

Antes do início do filme, tivemos que assistir dois trailers de futuras apresentações e um aborrecido e malfeito documentário do Primo Carbonari, em preto e branco.

Quando o filme começou, ela se aninhou perto de mim e colocou sua mão sobre a minha. Eu na hora, como se uma campainha tivesse tocado, olhei para ela, que olhou para mim e a beijei. Fui as nuvens, seu perfume, a maciez dos lábios e da língua. Delícia passar a mão em seu rosto, entre os cabelos. Mal assistimos ao filme, foi uma sessão de beijos e carinhos. Não sabíamos que aqueles seriam os primeiros e os últimos beijos que daríamos, por muito tempo.

Ao sair do cinema, a convidei para tomarmos um chá na Confeitaria Vienense, que fica na R. Barão de Itapetininga. Um elevador de portas pantográficas, com detalhes em latão polido, fez o percurso lentamente em meio a rangidos, nos levou até o magnífico salão do início do século. Pedimos chá, alguns salgados e bolos, que Maria Alice escolheu, pois, tinha experiência das vezes que veio com sua mãe. Havia um piano e violinos, que corriam de mesa em mesa, encantando os clientes. O lugar era lindo, as pessoas estavam elegantemente vestidas e é claro, que Maria Alice chamou a atenção com sua vestimenta. Nem por isso deixamos de usufruir, com os toques das mãos sobre a mesa, os violinos a nossa volta e nossos olhares de carinho. Custou-me um bom pedaço do meu salário, mas, foi lindo, me senti nas nuvens e Maria Alice me disse, que das vezes que esteve na Confeitaria, esta ficará marcada no seu coração. Sentia-se feliz.

Não pudemos ficar o tempo que gostaríamos, pois, ela não poderia chegar muito tarde em casa. Voltamos de bonde. No caminho manifestou, novamente, o descontentamento com o espaço que as mulheres têm na sociedade. Ganham bem menos que os homens e ainda ao chegar em casa, tem mais um árduo período de trabalho. Precisam de período maior de licença maternidade, ou seja, há muita coisa para batalhar.

Descemos um ponto antes, para podermos caminhar até sua casa por ruas menos usuais, mas não adiantou. Estávamos a dois quarteirões de sua casa, no ponto em que nos despediríamos, um Aero Willys, vermelho com capota branca, encostou no meio fio, próximo de nós.

- É o meu irmão – me disse Maria Alice.

- O que você está fazendo, com um Zé Mané, andando na rua a esta hora.

- Estou vindo do cinema, encontrei com Clóvis, meu amigo, e estamos voltando juntos. Ele está fazendo o obséquio de me acompanhar.

-Você deveria ir ao cinema com amigas ou pessoas do nosso relacionamento e não só, e voltando a esta hora.

- É primavera e o dia ainda está claro e já estou chegando em casa.

- Sobe que acabo de te levar.

- Não, obrigada. Vou a pé, estamos próximos.

Maria Alice, ficou bem contrariada de encontrar o irmão, pois, iria fazer a caveira dela junto ao pai. Ao nos despedir, dei o telefone do escritório, para que pudesse ligar marcando um novo encontro.

Fui embora para casa pisando nas nuvens, relembrando os beijos e um pouco contrariado, pelo encontro com seu irmão, que demonstrou má vontade ao nos ver juntos.

Na segunda-feira, ao esperar o bonde para o trabalho, fui preso.

 

Finalmente o Dr. Abílio chegou. Contei sobre a acusação do delegado e  qual era meu envolvimento com Maria Alice, só não falei dos beijos. Ao par de minhas informações, conversou com o delegado.

Depois de quase uma hora retornou.

- Vou embora?

- Não.

- Mas como?

- Vou te explicar. A polícia já sabe que não foi você que roubou a casa do comendador Fuad. Tanto que estão te tratando diferente dos presos comuns. Cela separada, almoço, lanche. Mas, não é essa a questão. Eles sabem que o assaltante foi o famoso Gino Meneghetti. Ocorre que os jornais anunciaram que o assaltante já foi preso, e se encontra nesta delegacia, tanto que tem vários reportes na porta querendo notícias. O Delegado não tem permitido, não quer te expor. Espera que o tal do Meneghetti se sinta tranquilo, relaxe e com isso eles possam pegá-lo.

- Quem é esse sujeito?

. Ele foi um assaltante muito famoso nas décadas de 1930 e 1940, tendo sido inúmeras vezes preso e fugido. Chegou no Brasil em 1913, com 35 anos, já fichado na Interpol, pela sua vida de crimes na França e na Itália. Em 1914 foi preso e condenado a 8 anos de prisão na Cadeia da Luz. Pela sua índole, sofreu vários castigos. Foi colocado em uma solitária, que era um poço redondo e profundo. Galgou o poço, tirou a tampa, atravessou o pátio e dizem que tirou a roupa e atravessou o Tamanduateí a nado, andou pelas ruas nu, até chegar à casa de um parente.

É tido como o grande ladrão, o gato dos telhados, pois se locomove por eles com grande facilidade.  Assalta casas comerciais e mansões luxuosas na região da Paulista e Jardins, arrombando cofres e roubando joias.  Nunca roubou um pobre, um operário. Ele diz que só gosta de tirar dos ricos, e tirar joias que são bens supérfluos.

- Como o Senhor sabe tanto dele?

- A imprensa, o meio jurídico, o povo, não há quem não tenha lido sobre as suas peripécias. Adquiriu a imagem de Robin Hood do asfalto. A imprensa o adora. Chegou a afrontar a polícia, em um cerco de 200 homens composto do corpo de bombeiros, polícia militar e guarda civil, que ocorreu nas ruas dos Andradas e dos Gusmões, centro da cidade. Do telhado, por onde tentou escapar, ele gritava para a multidão: Io sono Meneghetti. Il Cesare. Il Nero de San Paolo (Eu sou Meneghtti! O Cesar! O Nero de São Paulo). Foi preso e condenado a 45 anos, depois diminuído para 25 anos. 

Ficou 18 anos em uma cela blindada no Carandiru. Era famoso, recebia muitas visitas. Gritava da cela: "Io sono un uomo!" ("eu sou um homem!"). Quando saiu, foi preso em 60 dias. Passou, a viver de prisões e fugas. Contam, não sei se é verdade, ter ido a uma coletiva de imprensa do chefe de polícia, sem bigode, sentou-se ao lado do delegado que prometia prendê-lo em dois dias. Ao sair entregou bilhete a um repórter – “Porque não me prendeu. Eu era a pessoa ao lado de chapéu e roupa clara à esquerda”



- Pelo visto o cara é fogo. Querem me deixar aqui, como, um tipo de isca?

- Isso mesmo. Ele está com idade, 74 anos, mas, continua assaltando. Informaram-me que já sabem onde ele se esconde e estão de campana para pegá-lo. É questão de horas.

Creio que esta noite você sai. Chegando ao escritório, lembre-se a desculpa é que um parente seu passou mal e você teve que viajar ao interior e eu autorizei a viagem. Só Dona Margarida sabe de tudo.

- Meu nome apareceu por causa do irmão da Maria Alice?

- Sim. Ele quis prejudicar o possível namoro da irmã com alguém que não é do meio social deles. O delegado já percebeu isso.

Depois de cerca de três horas, fui solto com pedidos de desculpa.

Ao chegar na pensão, com os amigos de quarto, precisei contar que fui confundido em um roubo com o famoso bandido Meneghetti, simplesmente por que era amigo da filha do Comendador. Quando viram estarem errados me soltaram.

No dia seguinte fui para o escritório como, normalmente fazia. Dona Margarida, recebeu-me com um sorriso agradável e um olhar maternal. Perguntou sobre meu tio, e passou-me o trabalho do dia.

Nas duas semanas seguintes aguardei que Maria Alice telefonasse, mas isto não aconteceu. Por dentro me senti machucado, ela fora o meu primeiro amor. Tivera inúmeros namoricos em Franca. Nenhum envolvido de carinho, como eu sentia por ela naquele momento. Creio que seus sentimentos por mim, também, eram verdadeiros. Era uma dor que não parava, podia estar trabalhando, no bonde, na cama, onde fosse.

Resolvi no final de semana passar em frente de sua casa e quem sabe vê-la. Qual não foi minha surpresa ao ver a casa vazia. Havia uma moça lavando a calçada.

- Aqui não é a casa do Comendador Fuad?

- É sim, mas eles mudaram, esta semana.

- Sabe para onde foram?

- Foram para um bairro chamado Jardins.

Aquele mesmo final de semana, resolvi conhecer os Jardins, para onde o pessoal de posses estava se mudando. Eles ficam na encosta da Avenida Paulista em direção oeste, para as margens do rio Pinheiros, ou seja, em sentido contrário ao centro da cidade.

 Encontrei os bairros Jardim Paulista, Jardim Paulistano, Jardim Europa e Jardim América, sendo todos generalizadamente chamados de Jardins.  Ruas arborizadas, grandes terrenos e enormes mansões. Muitas ruas curvilíneas, para desestimular o trânsito de carros. Foi impossível encontrar a residência dos Fuad.

Conclui que estava apaixonado. Entretanto, no meio da tristeza, pensei, se ela não me procurou, foi por não ser possível. Recordo, que seu pai até a ameaçou mandar para a casa de uma tia na França, onde poderia terminar os estudos. Coloquei na cabeça, que deveria guardar os sentimentos que senti quando juntos e os atuais, em um canto do coração, como uma experiência magnífica, mas com um final de dor. Fora como um “Sonho de uma noite de verão”.

Só restou me lançar com empenho no trabalho. No tempo livre, resolvi fazer curso de Inglês e de Francês. Era mais uma forma de ocupar o tempo e os pensamentos.

O clima político, estava muito tumultuado no país, isto gerava um ambiente de apreensão e tensão no escritório. Importantes empresas e clientes, requeriam constantemente, junto a diretoria, reuniões para melhor entender o que poderia ocorrer e tomar medidas.

Em 1961 o presidente eleito, Jânio Quadro, renunciou a um governo de 5 anos, que só durou 7 meses. Dizem que esperava ser aclamado de volta pelo povo, pelo congresso e pelas forças armadas e conseguir retornar com poderes maiores. Não foi o que ocorreu. O normal seria o vice-presidente Jango Goulart assumir, porem havia fortes pressões contra ele, por ter relações com sindicatos trabalhistas, muitos deles em mão de comunistas. Ele estava em viagem à China, em uma missão oficial. Propagava-se o medo que o país se tornasse comunista. 

No fim permitiram a sua posse, mas não mais em um governo presidencialista e sim parlamentar, o que tolhia a sua liberdade, pois, a força estava junto ao primeiro-ministro. Em 1963 há um plebiscito para o povo votar a favor ou contra o parlamentarismo. Graças a uma forte campanha, o povo vota a favor do presidencialismo, dando plenos poderes, novamente, ao presidente Jango.

Durante esse período em que o caldeirão político estava quente, fui gradualmente crescendo no escritório, Dr. Abílio foi me dando espaço nas ações envolvendo fusões, compra e venda de empresas. Haviam dois clientes antigos, amigos dos sócios, para os quais, ainda atendíamos a área trabalhista. Esse trabalho ficou comigo e outro colega. Era uma demanda pequena que desenvolvíamos com facilidade, fora que era mais um aprendizado.

É um período de muitas greves e passeatas. Em uma ocasião, estava a caminho da Av. Rio Branco, para uma audiência trabalhista, quando no cruzamento da Av. Ipiranga com a Av. São João, havia uma grande balbúrdia, pois, os estudantes, estavam em frente ao City Bank, que fica em uma das esquinas, pichando e quebrando os vidros. De repente subindo a Av. São João, vindo do Vale do Anhangabaú, chega a cavalaria. Os estudantes começam a jogar bolinhas de gude, para os cavalos escorregarem e caírem, entretanto, uma boa carga desses animais, vencem essa tentativa dos estudantes e os policiais começam a descer o cassetete em quem encontram pelo caminho. Correria de estudantes e de transeuntes, buscando lugares para se abrigarem ou fugir. Sou um deles, entrei em uma loja de produtos esportivos, que há na Av. São João, quase no cruzamento, em frente ao City Bank, assim como outras pessoas. Rapidamente, descem as portas de aço e permanecemos até que o barulho da movimentação terminasse. Esse era um dos climas comuns da cidade.

Em 31 de março de 1964, alegando conter o avanço do comunismo, há um golpe e os militares assumem o poder, prometendo eleições para 1966. Termina o pluripartidarismo e cassa direitos políticos, assim como do ex-presidente Juscelino Kubitschek. Sanções atingem intelectuais, lideranças sindicais, estudantis e de funcionários públicos. O clima no escritório ficou de cabeça para baixo, pois o novo governo apresenta atos institucionais, normas, exceções. Tivemos que nos debruçar, a cada documento que saía e estudar como agir, nas áreas judiciais, criminal, trabalhista e empresarial. Prisões ocorriam.

O escritório, passou a ser enormemente demandado pelos clientes. Nessa ocasião, deixamos de atender causas trabalhistas. Fiquei inteiramente na parte de empresas, no tocante a fusões, ampliações, compra e vendas. Meus conhecimentos de inglês e francês em muito me ajudaram, pois, lidávamos com algumas multinacionais.  Com isso, tive uma significativa melhora salarial. Aluguei um pequeno apartamento, no bairro de Higienópolis, próximo da Pç. Marechal Deodoro, onde costumeiramente pego a condução. Nas férias, por duas vezes, aluguei um apartamento em Santos, na praia do José Menino, e fui com o tio e a tia passar quinze dias. Depois foram mais uma quinzena em Franca.

Nesse tempo todo, Maria Alice não me saía da cabeça. Tive dois namoros, mas não evoluíram, pois me deixava levar por sua lembrança. Dois anos se passaram, mas, ela permanecia presente. Precisava esquecê-la e seguir a vida em frente. Fiz várias especializações na área do direito.

Formamos um grupo de amigos, homens, mulheres, casais, sendo alguns deles homossexuais. Começamos com o pessoal do escritório e posteriormente, agregando o amigo do amigo. Passamos a ir ao cinema e ao teatro. Ao final, uma pizza, muita cerveja, e nessas discussões, consertávamos o país, depúnhamos e colocávamos pessoas no governo.

Nos anos, a seguir de 1964, houve inúmeras manifestações, o teatro passou a levar peças de contestação, denunciando o momento, às vezes não de forma direta, mas, nas suas entrelinhas. Ocorreram atos terroristas. A situação política estava tensa. O Ato Institucional nr. 1 combateu fortemente os movimentos sociais que se manifestavam através dos estudantes e das ligas camponesas. Os opositores eram julgados em IPMs (Inquérito Policial Militar). Muitas pessoas foram arroladas. Diziam serem cerca de 10.000. 

A esperança estava nas eleições que eram esperadas para outubro de 1965. O que não ocorreu, pois, novos atos surgiram, até que o nr. 3 definiu a criação do bipartidarismo, (ARENA E MDB) e eleições indiretas para presidente, governadores e prefeitos. Muita insatisfação na classe política, principalmente, nos que esperavam poder concorrer. Veio o governo do Marechal Costa e Silva.

A minha vida profissional estava bastante puxada. O escritório vivia uma demanda grande de serviço. Pouco tempo sobrando para o laser, trabalhando até tarde e muitas vezes aos sábados. Fora, que o clima não era propício para as conversas que tecíamos nos encontros entre amigos no passado, eles rarearam e acabaram.

Era final de 1967, em um final de tarde, quando ia pela Rua São Bento em direção ao Largo de São Francisco, ou melhor, a R. Riachuelo, que fica logo atrás da Faculdade de Direito, onde há um sebo, e periodicamente garimpo livros, quando observo uma grande balbúrdia na praça, logo entendo o que está se passando. Os estudantes da faculdade estão fazendo um protesto e a polícia apareceu. Alguns fugiram para a Rua São Bento com policiais no encalço. Vejo Maria Alice na frente do bloco. Na rua São Bento que sempre está cheia, há um princípio de pânico, as pessoas correm de um lado para o outro.

Quando Maria Alice está próxima, correndo, olhando para trás, a seguro com força. Sua primeira reação é querer se soltar. Olha assustada para mim e relaxa. A puxo pelo braço e entramos em uma loja de roupas femininas. Pego uma saia que estava na arara, passo a ela e faço que a levante a altura de seu rosto. Eu com outra saia na mão, me coloco entre ela e a porta. Os policiais notaram que alguém entrara no estabelecimento, dão uma vista de olhos, somente algumas mulheres e um homem de terno analisando peças de roupa. Voltam para a rua.

Passado algum tempo, nos olhamos, rimos, aguardamos um tempo, e saímos para a rua aonde não há mais presença de policiais e seguimos em direção ao Largo São Bento, sentido oposto ao Largo São Francisco.

Ela está linda, com o rosto ainda afogueado, os cabelos se soltando do rabo de cavalo, vestindo jeans, camiseta e uma camisa por cima amarrada na cintura. Nesse momento, tenho uma vontade enorme de abraçá-la e beijar, mas tenho que me conter. Ela me conta que o grêmio da faculdade, onde participa, estavam fazendo um protesto, com a presença de alguns artistas e políticos, que fariam discursos.

- São quase sete horas, aceita jantar comigo?

Concordou e seguimos para o Guanabara, no Vale do Anhangabaú, descendo pelas escadas rolantes da Galeria Prestes Maia, que liga a Praça Patriarca ao vale. Na caminhada, para não chamar a atenção de alguns policiais que por ali continuavam, digo:

- Pegue no meu braço, como se fossemos um casal.

Pedimos dois chopes e uns petiscos. Contei que fora preso como isca para facilitar a prisão do Meneghetti, sendo solto dois dias depois e fiquei, ansiosamente, no aguardo do seu telefonema, até que duas semanas depois, resolvi passar em frente à sua casa, mas haviam se mudado. Cheguei a tentar encontrar a casa nos Jardins.

- Fiquei sabendo pela Dora, a empregada com que você conversou, da tua visita. Ocorre, que papai, ameaçou em me mandar para a França, na casa de uma tia, caso não parasse de te encontrar, ou até o que era pior, intervir junto a um dos sócios do escritório de advocacia em que você trabalhava. Não queria te prejudicar, me afastei.

Nossas mãos se encontraram, assim como nossos olhares.

- Eu não consegui te esquecer, eu te amo.

- Eu também – ela respondeu.

Jantamos um pintado na brasa, com arroz à grega e molho tártaro, mais alguns chopes e muitas lembranças. Ela contou, que começou a faculdade de letras na PUC, por pressão do pai, que queria mandá-la para o exterior. Fez dois meses, saiu, pois, não era o que queria, e voltou ao preparatório para o vestibular de direito e entrou.

Apresentou ao pai o que fizera, após sua inscrição na USP na Faculdade do Largo de São Francisco. Seu pai ficou possesso com ela, pois, o havia desrespeitado, fazendo algo que não era aprovado por ele e por passar um ano o enganando. Por sorte, teve o apoio da mãe, pois pelo pai, ela deveria estar pensando em encontrar um marido, na comunidade, e casar. Houve muita discussão. 

Como ela passou no vestibular com ótimas notas, isto ajudou na discussão e o pai acabou cedendo. Agora, estava no último ano, participando do Departamento Jurídico XI de Agosto, atendendo pessoas carentes. Ela e uns amigos estavam pensando em abrir um escritório, no próximo ano. Diz que saiu de casa há dois anos, o que gerou outra polêmica, e divide um apartamento na Alameda Santos, nos Jardins, com a Elisa, sua prima, que conheci, no passado, que também, contrariou os pais quanto ao casamento e hoje estuda medicina.

Não resistindo mais, mudei para uma cadeira ao lada da sua e a beijei. Ela retribuiu e com isso matei a saudade daqueles lábios macios, do correr da sua mão pelo meu rosto, a maciez dos cabelos.

- Clóvis, sonhei com este momento. Vamos até o meu apartamento. Seremos só nós, pois, minha prima foi até a casa dos pais no interior, até o final de semana.

Foi uma noite maravilhosa, de carinhos, amor, sussurros, gemidos e prazeres. Naquela noite só havia espaço para a ânsia de abraçar, amar, viver. Foi uma noite em que deixamos de estar na terra com suas realidades e nos abrigamos no paraíso do amor.

Começamos a nos ver com alguma periodicidade, saindo para o cinema ou teatro, botecos com amigos. Muito deles tinham posições radicais em relação ao governo e as medidas sociais necessárias a serem tomadas. Havia alguns, que sabíamos a boca pequena, que pensavam se lançar na luta armada, medida em que a maioria era contra.

Maria Alice e mais três colegas, finalmente resolveram abrir o escritório de advocacia.  Como eram muito conhecidos entre os alunos, o centro acadêmico e os professores, somado aos relacionamentos que possuíam, teriam em pouco tempo uma clientela. O escritório foi aberto na Avenida da Liberdade, estando próximo, portanto, da faculdade e do fórum, com a facilidade de transporte.

Foram dias maravilhosos. No escritório aumentaram os clientes que passei a atender pessoalmente, o que me leva a sair todas as noites entre 20,00 e 21,00 h. Nos encontrávamos em algum lugar para jantar, no centro. Como o escritório dela era na Liberdade, inúmeras vezes, comemos nos restaurantes japoneses que haviam em quantidade no bairro. Preferíamos os que tinham uma pequena saleta somente com um tatame, para sentar. 

Ouvia seus relatos empolgados, da estruturação do escritório, alguns casos que apareciam, as dificuldades iniciais, mas o grande prazer que os quatros estavam tendo no trabalho. Isso tudo no meio de beijos e abraços.

Havia noites, que dizia ter compromissos advindos da época da faculdade, do atendimento que faziam gratuitamente. Eu temia que estivessem confabulando assuntos políticos. Mal sabia que esses encontros, muito em breve impactariam em nosso relacionamento.

Nos finais de semana, ela vinha para o meu apartamento, sendo alternado com o dela, quando sua prima não estava na cidade. Aproveitávamos para ir ao teatro, que na época vivia uma explosão de criatividade, principalmente com peças que tinham forte cunho político ou social. Vimos o Rei da Vela, Galileu Galilei no Teatro Oficina, no Arena a Primeira Feira Paulista de Opiniões, que chegou a ser censurada, gerando manifestos nos diversos teatros de Rio e São Paulo, Roda Viva de Chico Buarque e direção de José Celso, que virou um símbolo de resistência, mas que sofreu uma invasão do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) com agressão ao elenco, na sua apresentação no Teatro Ruth Escobar em São Paulo, que tinha a Marília Pera, fazendo o papel, que no Rio, era da Marieta Severo. Voltaram a apresentar em Porto Alegre, mas houve um novo incidente, gerado pelo mesmo grupo, e a peça deixou de continuar a sua apresentação. 

Também, assistimos peças que não tinham cunho de protesto, mas nas quais, a magia do teatro, nos transportava para histórias e encenações incríveis.  A cena teatral fervia de lançamentos. A delícia estava no retorno a casa, onde vivíamos sonhos, paixões e muito desejo.

Em outubro de 1966 tivemos a eleição indireta do General Costa e Silva, que assumiu em março de 1967, tratando de implementar uma série de medidas econômicas, pois passávamos por um mal momento. O clima político agravava-se, havendo em junho de 1968 um atentado a bomba no QG do 2º exército, situado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, levando a morte de uma sentinela e o ferimento a outros seis soldados.

Os movimentos estudantis, tiveram um forte incremento a partir de março de 1968, como reflexo da morte de um estudante no Rio de Janeiro, tendo reflexo também em São Paulo. Protestos ocorriam, e eu notava que Maria Alice devia estar atuando ativamente neles, pois, aumentaram as noites que não podíamos nos encontrar, por estar ocupada. 

Em junho, no Rio, aconteceu a Passeata dos Cem Mil, com a participação de estudantes, artistas e intelectuais. O governo reagiu com força, proibindo passeatas, invadindo faculdade. Pelos comentários de Maria Alice, soube de vários conhecidos seus que se lançaram na clandestinidade na busca de uma ação armada. O clima estava feio, muita tensão no ar, muito medo. Ela vivia tensa, preocupada, irrequieta.

- Esta tua atuação está te fazendo mal, fora que ainda pode haver medidas de repressão que te atinjam. Desenvolva o escritório advocatício e lute juridicamente pelos que necessitarem de apoio nos momentos de prisão.

- É o que tenciono. Alguns professores nos alertaram ser esse o melhor caminho, por temerem uma forte repressão por parte do governo.

Após esta conversa, nossos encontros foram diminuindo. Um dia, chego em casa e vejo que ela passara por lá e retirado tudo que era seu, até escova de dente e havia trazido tudo que era meu que estava no seu apartamento. Demonstrava que queria desaparecer com qualquer coisa que podia nos ligar.

Fiquei um tempo sem saber dela, extremamente preocupado. Sua prima também não tinha notícias. Em um final de tarde, a caminho da condução, uma mulher se emparelha ao meu lado, olho, era ela, com uma boina encobrindo os cabelos. Chego a levar um susto.

- Finalmente você apareceu.

- Olhe para frente, posso estar sendo seguida. Por favor, me escute. Não fale nada. Estamos temendo que o governo tome medidas drásticas querendo calar a opinião pública. Já estiveram no escritório nos chamando para depor, porém, em depoimentos nada agradáveis, com ameaça física. Sabemos de alguns amigos presos, ou desaparecidos, pois, não se consegue saber onde estão. Portanto, pensando em você, prefiro me separar, romper qualquer elo que tenhamos. Esperemos a situação acalmar e voltamos a nos ver. Diga que só tivemos encontros fortuitos, não havendo afetividade entre nós. Era só sexo. Saiba que eu te amo.

- Também te amo – nem sei se ela ouviu, ao desapareceu na multidão.

O trabalho no escritório seguia a toda, no mesmo ritmo que a tensão que corria na sociedade. Meus nervos estavam a flor da pele, pensando o que ela poderia estar passando.

Em 13 de dezembro de 1968 é promulgado o Ato Institucional nr. 5, autorizando fechar o Congresso e as Assembleias. Podiam, a título de segurança nacional intervir nos estados e municípios. Censura prévia a todos os meios de comunicação, incluindo música, teatro e cinema, suspender funcionários públicos, políticos e juízes, mesmo que eleitos legalmente, caso tivessem características subversivas. Suspender os direitos políticos por dez anos.

Pessoas foram presas, cassadas, procuradas. Uma cortina de medo caiu sobre a sociedade. Os comentários eram diversos. Pessoas desaparecidas, que não se sabia onde estavam. Falava-se a boca pequena em tortura. Pensei que Maria Alice, com a preocupação que manifestou, há tempo, estivesse fora do país, àquela altura. Pensei em procurar algum dos seus amigos ou até sócios do escritório, mas desisti quando em uma manhã, saindo de casa para trabalhar, dois sujeitos me retiveram dizendo serem da polícia. Fui encapuzado e colocado em uma perua Veraneio, que ficaram famosas pelo uso intensivo pelo pessoal da repressão.

Cheguei no local, fizeram subir escadas e quando em uma sala, na frente de um delegado, tiraram meu capuz, consegui vislumbrar por um pedaço de janela, que estava no Largo General Osório, portanto, estava no DOI-CODI (Departamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna), local que tinha fama que a todos fazia tremer. Quem entrava, não sabia quando sairia.

O objetivo deles eram informações de Maria Alice. Informei:

- Tivemos alguns encontros esporádicos, não havendo nenhum relacionamento afetivo entre nós. E há mais de seis meses não a vi mais e nada sei dela.

- Era só sexo?

- Sim.

- Essas esquerdistas gostam de dar – riu um deles.

- O que o senhor faz?

- Sou advogado no escritório Pervenire & Associados, onde trabalho das nove da manhã às nove da noite, não tendo tempo para mais nada. Ela era uma comodidade, marcávamos um horário e nos encontrávamos e fazíamos sexo.

- Onde?

- No meu apartamento.

O interrogatório seguiu nessa linha, com eles repetindo perguntas visando me confundir e de repente escapar algo. Foram pelo menos duas horas. Então fui retirado da sala e levado para uma cela, sem nenhuma explicação. Ouvia pessoas falando, gritando e até chorando. Como estava no final do corredor, ninguém passava por lá. Depois de duas horas, me levaram de volta a sala em que estive, onde um novo delegado me interrogou, fazendo as mesmas perguntas, buscando algum possível deslize.

Fui solto, eram quase sete horas da noite. Sai do prédio, agradecendo o ar que estava respirando, andando meio tonto, pela tensão que passei e a adrenalina que estava baixando. Segui em direção a Estação da Luz. No caminho encontrei um telefone público e liguei para Dr. Abílio, após passar pela Dona Margarida. Ao contar o que me aconteceu, ele disse:

- Eu esperava que isso ocorresse, pela tua relação com ela. Ainda bem que só foi isso. Vai para casa, descansa e chega amanhã a hora que achar conveniente.

Ao chegar em casa, grande surpresa. A porta estava arrombada e o apartamento todo revirado. Enquanto estava preso, reviraram o imóvel na busca de algum rastro dela. Ainda bem que Maria Alice fora esperta para isso.

Politicamente muita coisa aconteceu naquela época. Costa e Silva teve um AVC, tivemos três militares governando o país, até que, em eleição indireta, elegeram o General Médici.

Não tive outro remédio que seguir minha vida. Trabalho, estudo e lazer, quando dava. Muita lembrança de Maria Alice, muita incerteza de como estaria, poderia ter sido presa, torturada e até morta.

Um dia andando na rua São Bento, para buscar meu carro no estacionamento que ficava por trás da Faculdade de São Francisco (nesta época era o feliz proprietário de um fusca), alguém esbarrou em mim, entregou um envelope e disse, muito baixo:

- Para você, mais tarde leia. Não deixem perceber.

Imaginei de quem poderia ser, pela forma que recebi. A repressão estava a toda. Haviam batidas, pela polícia e pelo exército, inclusive nas ruas, principalmente à noite.

O bilhete estava datilografado e dizia:

“Estou bem em Santiago do Chile, dando aulas de inglês e francês. Aqui também somos monitorados. Siga tua vida, pois mereces amor e tranquilidade. M”

Apesar do nosso amor, uma grande separação física se interpôs entre nós. Seu rosto, olhar, o tom de voz, o brilho dos olhos, não me saíam do pensamento, mas, iam se esvaindo. Precisava esquecer e continuar vivendo. Assim foi.

Dois anos depois conheci Gabriela, que também era advogada, mas de outro escritório e após um ano casamos. O primeiro ano foi maravilhoso, porém no começo do segundo, começamos a nos desentender, quando, resolvi abrir um escritório de advocacia com um colega, e não quis tê-la como sócia, pois, se o entendimento em casa estava ruim, não queria levar esse clima para o trabalho. Inaugurei o escritório em outubro de 1972 e me desquitei em novembro, ainda não havia o divórcio.

Inúmeras vezes tive vontade de viajar a Santiago do Chile para vê-la, mas tínhamos claras informações que havia por parte do nosso governo um acompanhamento dos refugiados brasileiros e seus contatos no país. Santiago era a capital do exílio brasileiro. Havia em torno de 4.000 refugiados, entre estudantes, professores, políticos e profissionais liberais. Em 1970, Eduardo Frei, perde as eleições para Salvador Allende. Dizem que a anterior, ele ganhou, graças a um grande apoio da CIA. Para os refugiados, que saíram em grande leva após o AI 5, em dezembro de 1968, o clima de aceitação para estudo e trabalho no Chile era favorável, tanto no governo de Frei quanto no de Allende.

Allende, foi o primeiro socialista marxista eleito como presidente da república, na América Latina e tenta socializar a economia do país, com fortes medidas nas áreas social, agrícola, industrial e mineral. Interesses de grandes empresas foram afetados, gerando reações, através de medidas e bloqueios econômicos pelos Estados Unidos. Um clima político tumultuado propicia conflitos na sociedade que culminam, com apoio da CIA, em setembro de 1973 em um golpe de estado, no qual Allende morre, defendendo o Palácio de La Moneda, sede do governo.

Começa uma forte repressão, com muitas prisões, torturas e mortes. Exilados brasileiros se veem no meio dessa situação, tendo que buscar exílio em embaixadas ou fugas do país. Embaixadas, são cercadas pelas forças do governo, para dificultar a busca de exílio.

Maria Alice não me saí da cabeça. Como estaria, conseguira exílio em alguma embaixada, saíra do país? As notícias que chegavam só relatavam a repressão das autoridades, informações de centenas de pessoas presas, e inúmeras torturas. Era difícil encontrar notícias, mesmo de estrangeiros, que trabalhavam e estudavam no país.

Aqui no Brasil, o trabalho estava a toda. Vivíamos um boom econômico e uma euforia nacional com a copa do Mundo ganha em 1970. O governo propagava esse bom momento pelos meios de comunicação.  Era a hora do “Pra Frente Brasil” e o “Ame-o ou Deixe-o”. Entretanto, as informações que chegavam sigilosamente dos porões da repressão, das delegacias e dos presídios eram horríveis.

Paralelamente, havia a luta contra a guerrilha. Informações claras eram difíceis. A imprensa estava censurada.  O jornal “O Estado de São Paulo” publicava trechos dos Lusíadas, nos espaços das notícias censuradas e o “Jornal da Tarde” receitas culinárias. Era uma forma irônica, de demonstrar a censura e de solucionar os vetos que ocorriam em cima da hora de sair os jornais.

Eu e meu sócio trabalhávamos intensamente, numa carga horária insana, pois, tínhamos que firmar o escritório. Estávamos em franco crescimento, tendo que contratar uma secretária para cada um de nós. Fora dois “boys” para buscar, levar processos e garimpar informações nos fóruns. O escritório era na rua 7 de Abril, no chamado centro novo.

Era novembro de 1973, quando do Dr. Abílio Monteiro Junior, que foi o meu chefe, quando iniciei minha carreira e que muito me ensinou e ajudou, me ligou convidando para almoçarmos. Fomos no Itamarati, na R. José Bonifácio, em frente da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, local muito frequentado por professores da faculdade e advogados da região.

O encontro foi extremamente agradável e cheio de recordações, de situações, clientes e das conversas, principalmente no fim do expediente.  Muitos de nós tomávamos uma saideira, antes de ir para casa. No meio da conversa me disse:

- Como sei do teu interesse pela Maria Alice Fuad.

Na hora gelei, esperava uma notícia nada agradável, por ser o que mais ouvíamos nessa época dos que lutavam, dentro ou fora do país, pelo estado nada democrático que se vivia.

- Sim, tenho interesse. Como o senhor sabe, pelo que me ocorreu, ela foi meu primeiro amor.

- Por isso mesmo quis conversar contigo.

- Diga.

- Ela conseguiu se refugiar na Embaixada da França em Santiago e com isso, agora está vivendo em Paris.

- Como soube dessa informação.

- O pai dela, conversou com um dos nossos sócios, que tinha conhecidos na França e conseguiu agilizar a sua saída do Chile.

- Ufa, que alívio.

Esta é a notícia que tive dela em 1973.

A minha vida profissional continuou intensa. O escritório continuou crescendo. Engatei novo namoro, mas, durou somente 14 meses. Outros ocorreram, mas também de períodos curtos. Ela não me saía da cabeça e quando as relações tomavam caminhos mais sérios, eu desistia.

De tempo em tempo, tirava, dez ou quinze dias de férias. Às vezes, meus tios viajavam comigo. Uma boa parte dos feriados eu ia visitá-los. Acabou me ocorrendo fazer uma viagem à França para encontra-la, estávamos em 1975. Procurei Elisa, sua prima, e expus minha ideia. Fiquei sabendo, que estava dando aulas de inglês, francês para estrangeiros e português. Estava envolvida em uma ONG visando atender brasileiros exilados, mas, que ampliou o leque para exilados no geral. Acabou me desaconselhando ir, pois, ela começara, há seis meses, um relacionamento com um dos colegas da ONG. Esta informação me desaminou, além de me jogar para baixo. Para tirá-la da cabeça resolvi fazer a viagem para a Espanha.

Já estava com 33 anos, minha vida amorosa não engatava. Eram casos fortuitos de mero sexo e namoros que não se prolongavam. Os amigos diziam que eu estava bichado. Acabei, comprando um bom apartamento na Vila Romana. De vez em quando, chamava os amigos e as esposas para um churrasco. Sentia a vida vazia, faltando um pedaço. O pedaço que sentia faltar era Maria Alice. Estava ficando com obsessão por ela. Algumas vezes, fazendo sexo com alguém e fantasiando ser com ela.

Em 1974 o presidente foi o Geisel, e começou-se a falar em um encaminhamento, lento e gradual, do país para a democracia. Vivíamos um período inflacionário e o crescimento da dívida externa. O governo dele até 1979 viveu intensamente esses problemas. Medidas heterodoxas foram tomadas, após o avanço significativo da oposição, MDB na época contra a ARENA, nas eleições de 1974. Para conter a oposição surgiu o senador biônico, aumento do mandato do presidente, manutenção da eleição indireta para governadores, aumento das bancadas de deputados, onde o governo tinha maioria. O governo teve, inclusive, que lidar com a linha dura do governo, após a morte do jornalista Wlademir Herzog e do metalúrgico Manuel Fiel Filho, nas dependências do DOI-CODI, levando a substituição do ministro do Exército.

Vivíamos o final do “Milagre Brasileiro”. Mundialmente, houve uma grande crise petrolífera em 1973. Geisel assumiu com inflação de 15,5% e saiu com 40,8%. Em dezembro de 1977 foi sancionada a lei do divórcio, sendo que aproveitei para pedir o meu. Com a inflação em alta surgiram fortemente os movimentos sindicais, principalmente no ABCD (Santo André, São Bernardo, São Caetano do Sul e Diadema) e a projeção do sindicalista Lula.

Respirava-se na sociedade ares de abertura política, de novos tempos, de retorno dos exilados. Figueiredo assumiu em março de 1979 e em agosto de 1979 promulgou a lei de anistia de forma geral, ampla e irrestrita. Políticos e personalidades principiaram a retornar como Luiz Carlos Prestes, Fernando Gabeira, Betinho, Leonel Brizola, Miguel Arraes e outros. O país vivia uma inflação galopante e um aumento significativo da dívida externa, com negociações com FMI.

Este era o grande momento em que Maria Alice, se não estivesse presa em compromissos, sejam profissionais ou amorosos poderia retornar. Resolvi procurar sua prima Elisa, para saber qual era a sua ideia em relação ao retorno. Informou, que há tempo terminara sua relação com o francês, e que vivia constantemente perguntado por mim. Elisa dizia que eu era o grande amor dela. Esta informação abriu uma grande esperança no meu coração.

- Não quis te contatar este tempo todo, pois, dizia ter te propiciado muitos dissabores e como sua vida ainda é incerta, tem medo de se aproximar e te causar mais dor.

Alguns dias depois Elisa me liga:

- Ela está voltando! Quando tiver notícias do retorno te informo.

Ansiava por sua volta, pensava nela constantemente. Tinha insônias pelo tumultuar dos meus pensamentos e sentimentos. Pedi a Elisa que me desse seu endereço, queria escrever.

- Aguarde, pois no máximo em duas semanas estará de volta e no momento não sei seu endereço, pois, estava se mudando.

Como eu reagiria ao vê-la, e ela? Será que a chama que permaneceu acessa durante a nossa separação, quando estivermos juntos terá o mesmo brilho, a mesma intensidade? Elisa dizia que sim, pois, em todos os contatos entre elas, Maria Alice sempre queria saber de mim.

-Clóvis, ela chega quinta feira no voo da Air France 4650, chegando em Guarulhos.

- Posso ir contigo esperá-la?

- Claro, vamos juntos.

Já podem imaginar. Não dormi direito aquela noite. Mal almocei. Seguimos para o Aeroporto de Guarulhos, logo depois do almoço, pois o voo estava previsto para as 16,00 h. Precaução, pois quem conhece o trânsito de São Paulo, sabe que pode levar 45 minutos, como duas horas.

A ala de desembarque estava lotada de pessoas, imprensa, curiosos, apoiadores políticos. Avistamos a distância os pais de Maria Alice, seu irmão e alguns parentes. Fiquei receoso de me aproximar. Não queria ser um mal-estar, no momento de reencontro de pais e filha.

Principiou o rebuliço, pois saíram primeiro, políticos e intelectuais que estavam no exílio. A grande multidão e a imprensa se lançaram sobre eles. Tinha bandinha tocando, faixas, camisetas, balburdia de alegria. A área foi ficando mais livre.

Eis que surge Maria Alice. Um pouco mais magra, um rosto mais marcado pela vida, mas o mesmo olhar e sorriso. O cabelo estava curto, mas com mecha que caia sobre os olhos e que ela graciosamente afastava. Vestia  jeans, com uma camiseta azul clara e uma blusa, presa a cintura.

Viu os pais e correu para eles. Abraçou, chorou, riu, os familiares a acolheram com alegria. Seu irmão, com a filhinha de poucos anos no colo a abraçou. Ela feliz pegou a sobrinha, beijou a cunhada, que já conhecia do passado. Elisa se aproximou dela e abraçou no meio daquela balburdia. Quando tudo se acalmou, ela parou e olhou em torno e me viu a distância, correu em minha direção e caímos em um abraço envolvido de choros, risos e muitos beijos.

Elisa depois me contou: Os pais de Maria Alice ficaram olhando para o nosso encontro. Ela se aproximou deles e disse que depois de 17 anos finalmente estávamos juntos. Ele é o Clóvis da malfadada noite do roubo em sua casa nos Campos Elíseo.

- Tio e tia, ele é seu futuro genro.

Elisa me levou até eles e me apresentou.

O pai Fuad, olhou em meus olhos, com um olhar que prescrutava o fundo do meu ser. Permaneci com a mão estendida. Pensava em recolhe-la, quando ele a segurou, me puxou e me abraçou, sem dizer nada. Tão logo soltou de minha mão, a esposa me abraçou, deu um beijo em cada lado do meu rosto e com lágrimas nos olhos me disse:

- Seja bem-vindo a família, meu filho!

 

Aerai