segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

IRMÃO CONTRA IRMÃO



INTRODUÇÃO

Estamos vivendo um momento de grande bipolaridade. Muitos pedindo ações mais radicais, como intervenção militar. Para melhor avaliar o que pensar e fazer, contarei uma história que ocorreu durante a Guerra Civil Espanhol, que aconteceu entre 1936 e 1939. Esta foi uma guerra que dividiu um país ao meio, desfazendo e separando famílias, amigos, pais, filhos e irmãos, por posições políticas e religiosas. Fruto de uma grande bipolaridade.

 

IRMÃO CONTRA IRMÃO

Ramon Porell, dirigia seu carro pelas estradas do interior da Espanha a caminho da casa que fora de seus pais. É começo de 1978. Havia dois anos que o ditador Franco morrera e a Espanha vivia novos tempos, anistiando os perdedores da guerra e que se refugiaram em outros países. Ramon está com 53 anos, sendo a primeira vez, que volta a seu país. Como será recebido pelo irmão, a quem não vê, há cerca de 40 anos? Haverá possibilidade de diálogo entre eles? Suas vidas foram divididas pela guerra e pela desgraça que se abateu sobre a família.

A estrada serpenteia campos pedregosos, que se perdem aos pés das serras, com alguns rebanhos de bois, ovelhas e cabras. Veem-se olivais, de tempo em tempo videiras e muitas amendoeiras. Aqueles campos, trazem com força as imagens da sua infância, quando com o irmão Isidro, corriam por eles, procurando caracóis, colocando armadilhas para lebres e outros pequenos animais. Lembranças de quando o pai os levava a caçar javali, que era preparado pela mãe em um farto almoço de domingo, com arroz com caracóis, saladas da horta, chouriços e o bom vinho produzido pelo vizinho, Dom Agustin. Eram uma família, feliz e alegre, até que uma nuvem de dor e incertezas se abateu sobre eles.

Para enfrente a Igreja de São Nicolau e da Virgem das Dores, na entrada da cidade. Uma construção com características românicas, toda em pedra. A visão é maravilhosa, pois, há milhares de andorinhas, pousadas nos telhados, nos beirais, nos nichos e na torre do campanário. A igreja parece uma noiva coberta de enfeites. Relembrando os tempos de infância, não resiste. Desce do carro, grita para assustar os pássaros, que se elevam aos céus formando rodamoinhos que se entrelaçam entre si, cobrindo o sol pela sua quantidade. Espetacular. Pouco a pouco, voltam aos seus lugares. Recorda da mãe indo à missa, do pai participando da semana santa. A festa dos santos no início de fevereiro, quando uma grande paella era servida para toda a comunidade. Como uma grande família, cada uma levava um prato de doces ou salgados e garrafas de vinho, partilhando com os vizinhos.

Toma a rua principal da cidade. Uma placa indica: População 308 habitantes. Um terço de quando ali vivia. Depois da guerra, muitos jovens tiveram que se mudar para cidades maiores em busca de trabalho. Foi o início da grande saída do campo, que levou o país a ter o que se chama “Espanha Vazia”. Cidades e cidades, que foram esvaziadas e algumas abandonadas. Passa em frente da venda do Manolo, onde se ouve uma zarzuela tocando alta em um rádio. Era o local, onde a comunidade, se encontrava para beber, jogar cartas e em vários finais de semana haver um bingo.

O calçamento é de pedra, assim como os velhos casarios e a maioria das casas. Pelo caminho passa em frente a antigos armazéns com seus sistemas de polia para descarga das mercadorias, hoje abandonados, algumas cisternas em modelo árabe, cobertas por uma pequena abóboda de argamassa e ladrilhos onde se acumula a água das chuvas, portas antigas de madeira escovada, que dão acesso a antigos pátios. Por ser pequena a cidade, a sua chegada chama atenção das pessoas, que param para olhar, quando não, chamam os vizinhos.

Chega à casa dos pais. Uma casa antiga de pedras, com janela à direita, tendo uma porta em uma reentrância na parede, formando um degrau em relação à rua e proteção para a chuva, possibilitando ver a grande largura da parede. É geminada a outras casas, que possuem a mesma construção e aparência.

Passou anos, esperando por esse momento, pensando o que fazer, o que dizer e agora, sente-se perdido. Como será a recepção do irmão? Como iniciar a conversa? Bate palmas.

Seu irmão abre a porta. É dois anos mais velho e mais alto. Tem os cabelos brancos desgrenhados e a barba por fazer, calça surrada e uma camisa listrada, que se nota, foi vestida para recebe-lo. Tem um olhar gélido e a fisionomia fechada, o rosto duro de um homem do campo com claras marcas feitas pela vida. Não há sorriso entre eles. Um simples aperto de mão e o convite para entrar.

Senta, vou passar um café.

A casa não tem mais a aparência da casa da mãe. Que saiba, o irmão não casou. Poucos móveis, nenhum enfeite, somente uma foto do casamento dos pais em uma moldura oval. A casa está limpa. Sente um frescor comum as casas de pedras, feitas para abrandar o calor no verão e proteger do inverno, que pode chegar a menos 10 graus.

Na família, tudo principiou a se desequilibrar quando da queda da monarquia e ascensão da república em 1931. Fora promulgada uma nova constituição, propondo reformas sociais, econômicas e a separação da igreja do governo, criando um estado laico. Nisso, começaram os grandes conflitos com a igreja e os poderes constituídos, com suas estruturas arcaicas. Os latifúndios estavam em mãos de famílias nobres ou tradicionais e ordens eclesiásticas, que cediam parte dos seus campos, para lavradores ou parceiros em condições precárias, em uma situação feudal. Nas cidades, empregadores que não ofereciam condições e salários adequados. Nas minas de carvão, além do problema da remuneração, o trabalho era insalubre, inseguro e excessivo em carga horária.

Enquanto isso, nas capitais e nas maiores cidades, ocorria grande efervescência política, onde ideias tradicionais confrontavam com novos movimentos de esquerda, que fervilhavam na Europa, como o comunismo, o socialismo, o anarquismo, a democracia e outros mais. Esta ebulição se espalhou pelo país e chegou aos pequenos povoados. Lembra Ramon que Isidro, seu irmão, esbravejava ser um absurdo o que ocorria. Inclusive, tentaram queimar a igreja da cidade, mas, muitas pessoas intervieram, inclusive seus pais. Era histórica e possuía uma imagem do Crucificado que possuía grande valor artístico.

Ramon respondia:

Ocorre isto, porque a igreja sempre esteve do lado dos ricos. Algumas, inclusive, possuem terras nas quais trabalham um povo explorado.

Daqui a pouco vou te ver correndo atrás de padres para fuzilar gritou Isidro.

Nunca! Temos que batalhar por melhorias, mas não perseguindo ou matando nossos irmãos respondeu

Era uma constante discussão entre os irmãos, que possuíam opiniões contrárias. Ocorria, o mesmo, com amigos e familiares. As reuniões no bar do Manolo, escassearam. Reuniam-se os grupos contrários em dias distintos, para não terminarem em briga.

Precisamos de ordem, mesmo que seja debaixo do tacão de uma autoridade. De que vale a democracia com desordem? perguntava Isidro.

A democracia permite a busca do que é melhor para o povo e não só para as elites retrucava Ramon.

O pai, Salustiano, tinha que pedir, inúmeras vezes, que se calassem e se respeitassem, assim como, a ele e a mãe, Encarnação. Eles concordavam que os ricos e a igreja estavam errados, mas viviam pedindo a Deus, por paz. Viviam um conflito entre a instituição e a fé.

A cidade que antes, era de harmonia, passou a se calar, apagar, pelo medo. A qualquer momento, pessoas podiam ser acusadas por professar opiniões contrárias e muitas vezes por simples inveja ou fruto de desavenças.

Em janeiro de 1936 houve novas eleições, vencidas pela esquerda, levando a um aumento nos conflitos do povo com as instituições, queimando igrejas, perseguindo padres e freiras, prisão de nobres, industriais, comerciantes e pessoas ditas de direita. Houveram fuzilamentos, sem julgamentos, na calada da noite. O governo não estimulava esses atos, mas, não os coibia, fora os enfrentamentos que havia entre os diversos grupos.

Esta situação, levou a que em julho de 1936, ocorresse uma sublevação militar, em Marrocos, protetorado espanhol, comandada por Francisco Franco, tendo ao seu lado a “Guarda Moura”, legião estrangeira formada por soldados muçulmanos marroquinos, que possuíam forte treinamento militar em razão das constantes guerras na região. Diziam ser uma “Cruzada” contra ateus e comunistas. A sublevação não teve sucesso em toda a Espanha.

O país nesse momento ficou dividido e começou uma GUERRA CIVIL. De um lado o Bando Nacional e de outro o Bando Republicano. Os sublevados obtiveram, o apoio da Itália fascista de Mussolini, da Alemanha nazista de Hitler e o apoio velado de Salazar, ditador de Portugal. Os republicanos, por sua parte, contaram com o apoio da Rússia e de uma série de idealistas do mundo inteiro, das mais diversas conotações políticas, que seguiram para Espanha no objetivo de lutar contra o fascismo, formando as chamadas Brigadas Internacionais. As grandes potências se manifestaram neutras.

O clima na família Porell piorou, quando, chegaram à cidade, em março de 1937, vários grupos de refugiados que escaparam das atrocidades ocorridas na estrada de Málaga para Almeria, fugindo dos nacionalistas, que batalhavam pela cidade de Málaga. Pediam abrigo para descansarem, roupa, comida e ajuda para chegarem a Barcelona, que na época estava nas mãos dos republicanos. O pai, a mãe e Ramon saíram a rua para receberem essas pessoas. Ao final, acolheram em sua casa, um grupo composto de mãe, avô e dois filhos pequenos.

Isidro, se pôs contra de imediato.

Como vocês recebem um grupo de comunistas foragidos? É uma loucura, um absurdo! Que arquem com seus atos.

Seus pais respondiam:

É gente como nós, que está pagando com suas vidas, simplesmente, por estarem no meio de uma guerra.

Ele continuava discutindo com os pais, com o irmão, que também saíra em ajuda. Saiu de casa, dizendo que não voltaria, até que, aquelas pessoas fossem embora. Foi dividir suas reclamações junto a amigos, que pensavam igual.

A família facilitou água e sabão para se lavarem, roupas que tinham ou conseguiram com os vizinhos, sapatos, pois os deles estavam estraçalhados, tanto que alguns, tinham os pés em sangre. Ofereceram o pouco de comida que tinham, mais alguma que amigos, também dividiram. Comiam desesperadamente. Via-se que há vários dias não comiam ou mal comiam. Puseram cobertas no chão e os acomodaram, como possível. Se espalhando pelos cantos, quando não juntos.

Na manhã seguinte, um café aguado, pão e alguns pedaços de toucinho. Manola, como se chamava a mãe, contou morarem em Málaga, que o marido estava na frente de batalha, ficando ela, o sogro, a sogra e três crianças.

Mas só está seu sogro e duas crianças, e os outros? perguntou Encarnação.

Já lhe conto. Ocorre que os fascistas começaram a tomar áreas dos republicanos, como Sevilha, Ronda e Granada, e a população começou a fugir para Málaga, que ainda estava nas mãos dos republicanos. Fugiam, porque diziam que os nacionalistas fuzilavam aos homens que encontravam, não importando a idade e nem se participaram no conflito ou em movimentos. Falavam que os moros da Guarda Marroquina, matavam as crianças, velhos e abusavam das mulheres, principalmente as mais jovens. Em pouco tempo, havia o dobro de pessoas na cidade, pelas ruas, praças, igrejas, onde fosse possível ficarem. Faltava comida e água. A cidade começou a ser constantemente bombardeada. Dormíamos vestidos para podermos correr aos abrigos quando chegavam os aviões. Os fascistas se aproximavam da cidade.

No dia 7 de fevereiro, principiou o pânico a se espalhar, com a informação que os fascistas e a Guarda Mora estavam tomando a cidade, matando e abusando de qualquer um. As pessoas, pegavam o que podiam em suas casas, colocavam em malas, bolsas, sacos, no que pudessem carregar. Poucos tinham carros, que saiam atulhado de móveis, cadeiras, colchões, roupas, o que cabia, como se quisessem levar parte de suas vidas. Outros se valiam de burros, cavalos, carriolas e bicicletas. Nós que não tínhamos nenhuma forma de transporte, levávamos nossas coisas em sacos, na cabeça, pendurados nas costas, seguros pelas mãos. As crianças levavam pequenas malas ou bolsas. Elas têm entre 5 e 8 anos.

A multidão seguia para Almeria. Apesar da estrada ter 220 km, era a saída que se apresentava. A voz de Manola começa a tremer, seu rosto se crispa e lágrimas começam a sair. Soluça, não consegue continuar. Para, respira e recomeça:

Na estrada parecia uma procissão. Era uma grande fila de pessoas. No começo não haviam ataques, mas logo ao amanhecer, chegaram os aviões. As pessoas, que andavam, começaram a correr, muitas caiam, mães gritavam pelos filhos e eles por elas. Muitos velhos mal conseguiam caminhar, quanto mais correr. Malas, objetos eram largados de qualquer forma, o importante era preservar a vida. Ouviam-se gritos, choros, alaridos. Começaram os bombardeios. Os aviões descarregavam as bombas, recarregavam e voltavam para continuar. A estrada fica entre a serra e muito próxima do mar. Vários navios chegaram e também começaram a bombardear. Rochas caiam pela estrada atingindo pessoas que corriam, quando muitos se desencontravam e se perdiam.

Manola, para e chora. Seus filhos que estão próximos também choram. Seu sogro tem o olhar parado, parece não estar ali. Notam-se lágrimas em seu rosto escorrendo. Ela, retoma:

São imagens, sons e cheiros que não me saem da cabeça. Ao final de cada bombardeio o ar estava impregnado de enxofre e sangue. Havia muito sangue pelo chão de pessoas e animais. Corpos estraçalhados. Crianças perdidas. Pais desesperados buscando seus filhos. Velhos que se postavam no chão e preferiam esperar a morte a terem que correr ou andar.

Quando os barcos estavam mais próximos da costa, metralhavam as pessoas. Podia se ver os marinheiros nos convéns e às vezes, ouvir seus gritos. Vi mães mortas com seus filhos de meses no colo. Uma que não me sai da memória, com peito fora da blusa para dar de mama, morta, e a criança caída ao lado chorando. A grande maioria eram mulheres, crianças e velhos. Que valor militar tínhamos? Era uma chacina. Eram bárbaros. Não é possível acreditar, que eram espanhóis matando espanhóis. Irmãos matando irmãos.

Os aviões iam e vinham descarregando bombas, os navios bombardeando e metralhando. Se há inferno, aquilo era o inferno. Corpos por todos os lados, pedaços de vida em malas, bolsas largadas pelo caminho. Muitas, muitas crianças perdidas, chorando. Pais desesperados procurando seus filhos quando não, os encontravam mortos. As pessoas não podiam cuidar das outras, pois estavam cuidando de se salvar e manter sua família unida.

Chora Manola, choram todos em volta. Um sentimento de repulsa se espalha. Continua Manola:

Ali, morreu minha sogra por uma bomba que a pegou, pois, não conseguia correr e se deixou ficar onde estava. Ali perdi minha filha menor, Angelita, que se soltou de minha mão e não mais a encontrei. Chamei, gritei, procurei seu rosto entre as inúmeras crianças mortas que achava pelo caminho. Não a encontrei.

Grita e chora convulsionada:

São bárbaros. Somos todos irmãos. Que sede tinham de morte. Éramos mulheres, crianças e velhos, mulheres, crianças e velhos. Assassinos. Que país querem? Um país forrado de corpos e tingido de sangue dos irmãos?

Ramon, lembra, hoje, as palavras daquela mulher e seu rosto, onde o horror, o medo e o nojo estavam estampados. Crianças que choravam as lembranças recentes, um velho fechado na sua dor com um olhar perdido na inutilidade da vida.

Depois da guerra, soube mais dessa chacina ocorrida na estrada de Málaga para Almeria em fevereiro de 1937. Era uma corrente de mais de 50.000 pessoas fugindo, onde uma 5.000 eram crianças. Morreram de 3.000 a 5.000 pessoas. Bem mais que as 1.600 que morreram em Guernica, pelos bombardeios da Legião Condor alemã, que ficou imortalizada pelo quadro de Picasso. A chacina da estrada de Málaga para Almeria, conhecida como “La desbandá”, por muito tempo ficou encoberta pelo governo franquista, para não trazer à tona esta chacina vergonhosa e pelos republicanos, que foram criticados, por não enviarem reforços para Málaga, quando pediu ajuda.

Málaga caiu nas mãos dos nacionalistas em começos de fevereiro de 1937, com a ajuda de legiões do exército fascista da Itália de Benedito Mussolini.

 Após a família de Manola, nos dias seguintes, outras famílias apareceram, nas mesmas condições, fugindo dos avanços dos nacionalistas, que gradualmente tomavam regiões com apoio, além dos italianos, da aviação Condor da Alemanha Nazista. Estas pessoas, precisavam de acolhida e ajuda para chegarem à Valência ou Barcelona, ainda em mão republicanas.

Os conflitos da família com Isidro aumentaram, ao ponto dele sair de casa, ir para as montanhas e se ajuntar ao exército nacionalista, que vinha avançando. Problemas similares ao dos Porell, ocorriam em outros lares.

Em meados de 1938, os franquistas tomaram a região onde viviam. Muitas pessoas, envolvidas em movimentos de esquerda ou que perseguiram vizinhos com posições contrárias as suas, trataram de fugir. Houveram buscas de casa em casa. Ramon e seu pai, com muitos outros homens e jovens, foram presos. Presumidamente, seriam julgados, o que não era muito certo, alguns soltos, e a maioria, seria condenada à morte e sumariamente fuzilada.

No terceiro dia da tomada da cidade, que cada dia recebia mais grupos nacionalistas, chegou Isidro e seu pelotão. Foi a casa da mãe, encontrando-a desesperada pela prisão do pai e do irmão.

Tratou de ir à prisão, onde estavam, e conversou com o capitão que cuidava do assunto, dizendo quem era e argumentando:

Meu pai e meu irmão foram presos por engano.

Não foram, não. Eles acolheram muitos comunistas e os auxiliaram, dando estada, comida e ajuda na fuga respondeu o capitão.

Minha mãe, é católica fervorosa e meu pai participa das semanas santas. Ocorre, que ficaram com pena das famílias, que eram compostas de mulheres e crianças. Atenderam o mandamento de Cristo, de ajudar ao próximo. O fizeram por humanidade e não por política.

Mas teu irmão, sabemos por muitas pessoas da cidade, que estava envolvido com grupos de esquerda.

Ele só tem 17 anos. O grupo com quem se reunia, nunca empreendeu nenhuma ação política. Inclusive ele, meus pais e outros, quando quiseram queimar a igreja, não permitiram.

Tem razão, soubemos por muitos depoimentos dessa atuação. Vou soltá-los em confiança a você, mas cuide deles. Ficarei de olho, principalmente no teu irmão, pode haver uma semente de pensamentos vermelhos dentro do garoto. Os dois foram soltos.

Em casa, após a alegria da mãe em recebê-los, Isidro recomendou a seu irmão:

É melhor você ir embora. Entre meus companheiros muitos falam a teu respeito. Há inveja entre eles, porque o Capitão me tem estima e te soltou. Dizem que você é um vermelho e ainda te pegarão.

Após uma troca de ideias, ficou acertado, que ele iria, no dia seguinte, para as ruínas abandonadas de uma antiga casa de campo, que estava há uns 6 quilômetros da cidade e aguardaria a noite para fugir. Sem seu irmão saber, seu pai informou a Ramon, que outras pessoas estariam se reunindo ali, para fugirem juntas. No dia seguinte, Ramon, dando a entender que ia para o campo trabalhar, furtivamente se dirigiu para o local.

No meio da tarde, desse dia, Salustiano recebeu o recado, de um antigo companheiro, que sua mulher e dois filhos chegariam na madrugada daquele dia, e pedia que os ajudassem a fugir. No início da noite, correu para o refúgio onde estava o filho e explicou sobre essa família. Que aguardasse, assim, poderiam seguir com ele. Aproximadamente, às quatro da manhã, bateram em sua porta. Era a família que esperava. Só havia dois rapazes, com idades próximas a seu filho Ramon.

— Onde está sua mãe? — perguntou Salustiano.

— Ela tinha problemas nas pernas e no coração, no caminho, pelo cansaço e o medo, passou mal e morreu. Iriamos nos encontrar com outro grupo, mas com o atraso do seu mal estar e de enterrá-la no meio da serra, nos atrasamos. Então, nos recomendaram vir para aqui.

Após Encarnação, lhes dar algo de comer e beber no caminho, Salustiano rapidamente os levou para se encontrar com o grupo.

— Ramon, são só os dois. A mãe morreu no caminho. Onde estão os outros?

— Pai, como conheço o caminho, foi decidido que foram e eu iria depois diminuindo o número de pessoas juntas. Como o sol logo aparecerá, passaremos o dia escondidos e a noite sairemos.

No dia seguinte, ao chegar no agrupamento, Isidro, foi chamado pelo Capitão, que estava com alguns chefes de grupos e lhe disse:

— Seu irmão, ontem foi trabalhar, mas recebemos a informação que não voltou para casa à noite. Depois, soubemos por alguns depoimentos voluntários — disse rindo — que ele e outros planejam uma fuga.

Isidro sabia o que significava, depoimento voluntário, já havia participado de vários, em que por torturas obtinham informações.

Teu irmão é um comunista e você o está acobertando. Temos que ter a Pátria acima de qualquer coisa, até da família. Acima da Pátria, somente Deus. Você o tratou de libertar para que fugisse. Não estará você envolvido na fuga de outros, também?

Meu comandante, eu sempre mostrei minha lealdade nas batalhas que lutei. Coloquei a Pátria acima de tudo, inclusive da minha vida.

Prove tua lealdade. Trate de sabe onde ele e os outros possam estar, caso contrário, iremos atrás desta informação junto a teus pais.

Isidro saiu desesperado. Devido ao esquerdista do seu irmão, seus pais poderiam sofrer represálias e quem sabe torturas. Ocorreu uma ideia, como ficou combinado que seu irmão fugiria no dia anterior, dirá que após algumas verificações, soube que ele e outros, estão se reunindo nas ruínas da velha casa de campo. Pensou, quando chegarem não encontrarão ninguém, ou encontrarão outras pessoas, mas haverá vestígios de que estiveram por ali.

Feito isso foi para casa, pois se sentia cansado pelos dias de batalhas e andanças na serra, somado a forte tensão envolvendo seus pais e irmão. Chegando em casa encontrou Paco, amigo de infância que pertencia ao mesmo agrupamento. Convidou a entrar para tomar um copo de vinho. Sentaram a mesa para beberem, enquanto seu pai estava por lá e perguntou pela família a Paco, que respondeu com generalidades.

Paco virou para pai de Isidro e lhe disse:

- Dom Salustiano, colocaram teu filho na parede por causa de Ramon. Sabem que o comunista do teu filho está fugindo com outros e cobraram o Isidro para dizer onde estavam, ou vinham buscar a informação com o senhor e dona Encarnação. Teu filho acabou obtendo a informação. Serão presos nas velhas ruínas da casa de campo.

Isidro. notou na hora que seu pai ficou lívido e nervoso. Com uma desculpa da necessidade de cuidar de algo, saiu. Sentindo-se preocupado e tenso, tratou de terminar a conversa e foi procurar por sua mãe na vizinha, onde veio saber que seu irmão não tinha ido embora no dia anterior, mas sim, iria naquele. Desesperado, saiu rapidamente em direção as ruínas da casa de campo, onde já poderia ter chegado o pelotão em busca do pessoal, que por lá poderia estar escondido.

Ao se aproximar ouviu um tiro. Correu. Encontrou seu pai ferido no chão. E ouviu um dos soldados dizendo:

Esse velho filha da puta veio avisar os vermelhos para fugirem. Quando chegamos, estavam correndo para o campo. Pegamos ele que tentou fugir. Merece morrer.

E em frente de Isidro, que não teve tempo de intervir, meteu um tiro na cabeça do ferido.

Não, não, é meu pai.

Possesso se atirou contra o atirador, derrubando-o. Outros o seguraram.

Filho da puta é meu pai. Ele não é vermelho.

Para, não vem com lenga, lenga. Ele veio avisar para fugirem. Se não fosse por ele, teríamos presos todos.

Ramon, escondido com os dois rapazes, em uma passagem de água que ficava abaixo do nível da estrada, escutou e viu o que ocorreu. Sua reação foi de levantar e correr para o pai. Os jovens, percebendo o que iria fazer, o seguraram. Abafando o choro, colocando junto a boca uma sacola de pano que levava, se maldize por ser o causador da morte do pai. Chorou ódio contra o irmão que fazia parte dos assassinos. Chorou a dor que a mãe teria.

Conseguiu fugir de madrugada, indo para Barcelona e quando esta caiu nas mãos dos fascistas, se refugiou na França. Depois de um tempo, quando a França estava tomada pelos nazistas, conseguiu ir para a Inglaterra, onde vive até hoje.

Isidro, ao ver o pai ser morto, sentiu uma pontada de loucura. Fora ele que denunciaram a localização. Em uma forma de amenizar sua culpa, a transferiu para irmão. Não fora por ele com suas ideias esquerdistas, não haveria ocorrido o que ocorreu. Por culpa de seu irmão, o pai fora morto. Se não fora suas ideias revolucionarias, seus pensamentos liberais, e seu envolvimento com grupos contrários a guerra santa que libertava a Espanha, nada daquilo terá ocorrido.

Teve que encarar sua mãe e numa história um pouco alterada, contou a morte do pai. Encarnação, não gritou, não chorou. Entrou em um mutismo e num olhar perdido no nada, durante semanas. Só pediu ao filho, que trouxesse o corpo do pai, para ser decentemente enterrado e não jogado numa vala comum.

No enterro não foi ninguém da cidade. Não queriam serem vistos junto a uma pessoa, mesmo que morta, estigmatizada por suas opiniões e posições. Muitas outras mortes, por fuzilamento, ocorreram nas semanas seguintes. Depois, como um véu, baixou o silêncio na cidade. Ninguém queria relembrar qualquer fato do passado e principalmente os mais recentes.

Um grande ódio cresceu no coração dos dois irmãos, que até aquele momento, por cerca de 40 anos não mais se comunicaram. Ramon mandou algumas cartas a sua mãe, que raramente respondia. Queria que fosse morar com ele na Inglaterra, mas nunca respondeu aceitando. As cartas dela relatavam coisas do dia a dia, sem nenhuma importância e em nenhum momento os sentimentos que vivia. Recebeu, somente uma vez, carta do irmão, informando em uma linha que a mãe morrera, não dizendo quando e nem como.

Agora, ali estava Ramon, 40 anos depois, aguardando o irmão passar um café, no palco onde o esfrangalhar da família ocorreu. Uma foto do casamento dos pais numa moldura, em um dos cantos da sala, fez subir um nó na garganta, onde se acumulou em silêncio, com lágrimas que queriam escapar dos olhos.

— Ramon, aceita uma copita com o café?

— Sim.

Os dois tinham dificuldade de se olharem, de se falarem. Um silêncio pesado baixou no ambiente. Na cabeça de cada surgia, o que dizer, o que fazer. Ramon, que o havia procurado, resolveu começar:

— No dia da morte do pai, ele veio me avisar, que você, pensando que eu já havia ido, denunciou o nosso ponto de encontro. Só que sabia que eu ainda estava por lá. Era eu e mais dois jovens. Saímos rapidamente, mas logo chegou a tropa nos procurando. Não podíamos correr pelos campos, seríamos vistos. Nos escondemos em uma passagem de água antiga, que passa a maior parte do tempo seca e encoberta de mato, um pouco abaixo da estrada. Só quem conhece sabe onde está. Acredito que você a conhecia. Daquele ponto eu tinha total visão da frente das ruínas. Vi e ouvi o que aconteceu.

Nesse momento, os olhos de Isidro se arregalaram, pareciam querer sair da órbita. Não disse nada, mas o seu rosto e sua postura mostraram estar em choque. Ramon, notou o grande conflito que começou a ocorrer dentro dele e que se notava em todo o seu ser.

— Éramos jovens e nos deixamos levar pelas emoções e posições que considerávamos corretas. As minhas, por toda a minha vida, me deixaram tranquilas. Participei, ajudei, indiretamente lutei, mas em nenhum momento transgredi a dignidade de um ser humano. Não sei das tuas atitudes. As morais, boas ou más, estarão dentro de você e te perseguirão por toda a vida. As políticas, agora que a Espanha se abre, e que em algum momento, exporá suas feridas, a história julgará.

Isidro nada falava. Algumas gotas de suor escorriam pela sua fronte. Era palpável seu choque. O que imaginava ser somente um segredo seu, era conhecido pelo irmão. Escondera para a mãe, mentira para os vizinhos e obrigara o silêncio dos companheiros do pelotão. Naquele momento, sentimentos de vergonha, arrependimento e frustração correram pelos seus pensamentos e coração.

Retomando folego e coragem, Ramon, olhando fixamente o irmão, continuo:

Carreguei, por muito tempo, dentro de mim, ódio extremo por você, culpando-o pela morte do pai e a grande dor da mãe. Porém, o amadurecimento e o avaliar da história, estando fora, me permitiram ver, que interesses, que estavam acima dos desejos do povo, se valeram dos conflitos que haviam entre a população. Aproveitaram para dar margem de se expandirem e colocaram uns contra os outros, possibilitando em muitos momentos, que o lado bestial de muitos aflorassem.

Calou-se. O irmão com olhar para o chão, o corpo curvado pelo peso dos fatos, nada falava. Ramon, permaneceu um tempo calado, observando a mudança que se dava no outro. Sentia um grande alívio por conseguir dizer o que precisava, mas, ao mesmo tempo, uma tristeza, por ver alguém que por anos fora seu companheiro e a quem respeitava, por ser o mais velho, desfazendo-se a sua frente.

Venho para te dizer que te perdoou, como tratei de me perdoar. Quero morrer sem carregar este grande peso.

Isidro, continuou permanecendo quieto. Após um tempo, Ramon, não sabendo o que mais dizer, levanta e estende a mão se despedindo.

Ao entrar no carro, pelo retrovisor, vê um homem velho e acabado. Ali estava uma pessoa a quem não conhecia mais.

Espero, poder voltar um dia e abraçá-lo pensa.

EPÍLOGO

A guerra civil espanhol dividiu o país em dois, colocando amigos, famílias, filhos e irmãos em posições contrárias. Em uma Espanha de 25 milhões de pessoas, morreram durante a guerra cerca de 500 mil, segundo números oficiais. Após a guerra, no extermínio de pessoas com posições contrárias aos ganhadores, mais de 200 mil foram presas e sumariamente fuziladas. Fora as que permaneceram presas em campos de concentração ou em trabalhos forçados. Sem contar as centenas de milhares que se exilaram pelo mundo afora. A grande maioria eram jovens. Além da grande perda humana, houve a perda de potencialidade pessoal e profissional, afetando a futura recuperação do país. Ocorreram quebras significativas nas estruturas industriais, residências, hospitalares, nos campos e nos diversos fluxos que permitem um país viver.

Durante anos, o país viveu medo e fome. Medo por temerem que descobrissem relações de amizade, parentesco ou mesmo de atuação em atividades no período anterior. Medo de denúncias, às vezes, por desavenças passadas ou inveja.  Houve supressão das liberdades políticas e de informação.

A fome persistiu duramente nos anos 40. O sistema de racionamento, só veio a ser desativado completamente no começo dos anos 60, ou seja, mais de 20 anos após o fim da guerra.

Quando se pede intervenção militar, o que se pede, e sublevação a ordem constituída. Quem diz que todos aderirão? Podemos ter um conflito entre forças militares ou conforme a amplitude, uma guerra civil. A espanhola, usada aqui de exemplo, mostra aonde se pode chegar. Em todas as guerras, passadas e presentes, observamos que no homem, há uma besta humana, presa por uma simples tramela. Quando se solta quanta insensatez, desumanidade, quantas atrocidades.

A história contada é real e extremada. Esperamos que não tenhamos que passar por experiências similares.

  

sábado, 26 de novembro de 2022

SURPRESA

 


Estamos vivendo significativos impactos nos costumes, afetando os homens, na moral e na sua forma de ser. Estará ele se redescobrindo ou se distanciando da sua essência?

 

Nelson e Paula estavam na faixa dos trinta anos. Eram um casal cheio de amigos. Entre todos, tinham uma amizade mais estreita com Rubens e Sandra, que estavam na mesma faixa de idade e viviam as mesmas realidades. Afirmação profissional e financeira, postergando a vinda de filhos, para após a estabilidade de suas vidas.

Saiam com frequência para a noite e finais de semanas. Nelson e Paula possuíam um casamento de quatro anos, fruto de fortes sentimentos de amor entre eles, que surgiram após algumas frustradas ou descompromissadas relações. Sonhos, planos para a casa própria, filhos eram assuntos constantes em suas conversas.

Possuíam uma relação amorosa, sexual num bom entendimento. Provocavam-se com jogos eróticos, envolvendo roupas, momentos e locais. Nesses jogos, no objetivo de um maior estímulo, começaram a fantasiar histórias envolvendo pessoas que não possuíam rostos, mas comportamentos de erotismo e sexualidade. Num desses momentos, Nelson deixou escapar o nome da amiga Sandra, salientando sentir uma atração por ela. Ele e Paula, começaram andar por essa fantasia, onde em alguns momentos, também surgia a figura de Rubens, marido de Sandra.

A vida continuava com o dia a dia de trabalho, os relacionamentos e as amizades. Passado um tempo, Nelson começou a notar mudanças no comportamento de Paula. Estava mais amorosa, mais quente no sexo, mais sensual. Havia um novo brilho em seus olhos. Eram mudanças marcantes e isso começou a lhe incomodar. Notou que ao ligar para o seu escritório não estava e também não atendia o celular. Isso ocorria com frequência.

Em um dos dias resolveu ficar à espreita e segui-la. Ela foi a casa de Rubens e Sandra.

Não era possível! O estava traindo com um dos seus melhores amigos, nem levando em conta, a amizade com a esposa.  Já havia notado, algumas vezes, olhares de Rubens para sua mulher, mas, nunca, suspeitou que pudesse haver algo entre eles. Ficou paralisado, não tendo nenhuma reação no ato. Sua cabeça tornou-se um turbilhão.

Passou a ter dificuldades no trato do dia a dia e no relacionamento com esposa, inclusive no sexo. Paula, notava algo estranho e questionava.

Nelson, afinal, resolveu pôr a situação as claras. A seguiu em outro dia. Ela foi para seu apartamento.

 - Que hipócrita, está me traindo em nossa cama!

Aguardou um tempo e subiu. Entrou, pé ante pé, para não fazer ruido e foi até seu quarto, de onde vinham gemidos de prazer. Estava tudo na penumbra.

Notou o corpo de sua mulher nu sobre outro corpo. Foi buscando uma posição que melhor pudesse observar. As duas pessoas não notaram sua presença, pela penumbra. O pouco reflexo de luz o permitia ver lábios que se tocavam, beijos e línguas que se envolviam e corpos que se entrelaçavam. Não conseguia ver quem era. Moveu-se.

Surpresa! A outra pessoa era Sandra!

Instintivamente, acendeu a luz.

As duas mulheres assustadas se levantaram e o olharam.

Ele, meio zonzo, não conseguia pensar direito. Pela sua cabeça passava: sua mulher, Sandra, Nelson, os amigos, os corpos das duas suadas exalando sexo e erotismo. Não conseguia reagir.

Sua mulher após o susto, com um sorriso e um olhar malicioso, dirigiu-se a ele. Abraçando e beijando, começou a tirar sua roupa e a levá-lo para a cama.

- Vem junte-se a nós e realize teus sonhos eróticos.

Atordoado e nu, deitou-se entre elas.

Essa relação de prazeres e segredos durou mais de um ano, até que....... por razões profissionais, Rubens e Sandra se mudaram da cidade.

 

domingo, 13 de novembro de 2022

O VELHO GAUCHO – SEU NÔNO

 



Era um negro avançado na idade. Tinha os olhos esbranquiçados pela catarata, cabelos brancos ralos e barba amarelada de nicotina. Ninguém sabia ao certo sua idade. Muitos diziam estar nos noventa. Sua pele negra, era encarquilhada, mãos grandes que denotavam terem sido exigidas e uma tranquilidade no olhar e no falar. Era um gaúcho de quem sempre se ouvia palavras boas e sábias. Todos os conheciam por Seu
Nôno. Era encontrado com facilidade na venda e boteco do Genoíno, paraibano antigo no pedaço, bastante conhecido por vender fiado, mas que em determinados dias, quando a burra estava vazia e tinha contas para pagar, tornava-se mal-educado nas cobranças dos clientes pendurados. Depois passava, e se tornava um homem sorridente e brincalhão. No fundo, era um bom coração. Sua mercearia/boteco era a única naqueles rincões. Era bastante concorrida. Seu Nôno aparecia por lá umas horas antes do almoço, como dizia, para tomar uma canha e abrir o apetite, além de dar uma pitada no seu cigarro de palha. Hábitos, que apesar da idade, não havia perdido. Sempre havia por lá, uns trabalhadores do campo, que quando não traziam suas marmitas, aproveitavam o bom preço, do prato feito do boteco. Se encontravam, peões e motoristas de caminhões de bois, que normalmente, vinham lá das barrancas do Rio Paraná. Quando havia um barriga verde ou um gaúcho, rolava uma roda de chimarrão no meio das prosas. Cuia descansando, com água morna, para erva inchar, depois, lá ia a cuia e a bomba, tomando o cuidado para a roda ser à direita do cevador. O importante era ouvir o roncador no fim do mate. Quando era um tereré, o mais certo que eram paranaenses ou do Mato Grosso. Numa das tarde Seu Nonô resolveu ir à venda, no fim do dia, para tomar a fresca. Não fora pela manhã em razão do calor. Chegando, por lá havia uma fogueira onde espetos de carnes estavam assando. A roda estava animada. Eram peões que haviam trazido uma tropa de perto, e estavam aproveitando o pernoite. Prepararam o feijão-tropeiro e colocaram a carne na brasa. As bebidas, compravam no boteco do Genuíno. Uma viola tocava e uns e outros cantavam músicas que traziam a saudade de casa e do amor que por lá ficou. Chamaram Seu Nôno para se juntar. Os causos rodavam. Uns tristes, outros alegres, outros pícaros.

- Seu Nonô, vamos conversar, conta algo pra nós.

Após uma pigarreada começou:

— Bueno, nos meus vinte anos eu era um peão. Naquela época não tinha essa de caminhão. O gado era tocado de cima de lombo de cavalo, fizesse frio, chuva ou calor. Era um trabalho duro. No final do dia só restava estender a manta e dormir após uma talagada, um carreteiro ou um tropeiro de janta. A alegria era quando chegávamos nas corrutelas. Era uma festa, pois éramos uma novidade para eles. Quando podíamos, ficávamos mais de um dia. À noite, era fogueira, baile, gaita, uma branquinha, viola e dança. Numa delas, na fronteira de São Paulo com Mato Grosso, onde ficaríamos mais de três dias para descanso da jornada, nosso destino era Dourados, após, deixarmos os bois em um mangueirão, apeamos dos cavalos e logo vieram mulheres com moringas nos servir água fresca. Entre elas havia uma gaúchinha, minha conterrânea, de olhos azuis, cabelos negros como a graúna e um sorriso encantador, que olhou para mim e veio me servir. Seu nome era Rosita. Sua família era de Alegrete e estavam por lá.

- O senhor é gaúcho? Nem parece, perguntou um dos ouvintes.

Tchê não diga isso. São muitos anos longe daquelas plagas, mas, não deixo de ser, apesar de morar há muito tempo nestas bandas. Entonces, naquele dia, durante os momentos de descanso e na hora do almoço, que repartimos com algumas famílias da cidade, meus olhos e os da morena não paravam de se encontrar. À noite, foi armado um baile, com gaitero e viola. Veio gente de envolta, a pé, de cavalo, de carroça. Tinha farofa, carne de sol, pamonha, cachaça, chimarrão, tereré e muita alegria. Foi uma baita festa. Até assaram um capado. Dancei o quanto deu com a gauchinha. Ocasionalmente, tinha que trocar de par para não chamar muito a atenção, os pais da prenda estavam na festa e me olhavam enviesados. Ela tinha um corpo suave, minha mão de peão tinha que tomar cuidado, ela era macia como um pelego. Tinha um perfume de jasmim. Trazia uma margarida presa ao lado direito do cabelo, coisa de solteira. Seus olhos eram mais lindos que o céu numa campina em dia de sol. Tinha mãos delicadas, suave como penas de passarinho. Quando se encostava em mim, meu corpo todo se aquecia, minha boca ficava seca e eu perdia as palavras. Sua fala era macia, espanholada, o que me fazia rir muito.

Aquela noite fui deitar nas nuvens. Não conseguia dormir. Todo meu corpo parecia sentir a presença dela. Sua imagem não saia dos meus olhos.

No dia seguinte mal tive tempo de a encontrar, pois, tivemos que cuidar dos bois e da cavalhada. No final do dia sai a procura. A encontrei, perto de uma cacimba, pegando um balde de água. Ajudei, mas não me deixou chegar perto de sua casa. Seu pai notara que dançáramos muitas vezes na noite anterior. Marcamos um encontro mais a noite em um capoeirão perto do local. Uma alegria e uma dor no estômago. Fui me lavar, procurei a melhor camisa que tinha no meu bornal e uma calça menos suja. Passei um sebo nas botinas e tirei o pó do sombrero.

De vez em quando, Seu Nonô dava uma tragada no palheiro, uma bicadinha na branca e continuava sua história. A atenção era grande, e um sorriso se apresentou nos lábios de muitos prevendo o que vinha pela frente.

 

- Buenos, a prenda apareceu muy linda, em um vestido rodado rosa com uma blusa branca, mostrando a graciosidade dos ombros e com uma faixa na cintura. Trazia um olhar encabulado, que quando me mirava mostrava uma luz de ternura. Sua pele branca, contrastava com a minha morena de origem. Peguei suas mãos, senti ela tremer. Que diferença, as minhas ásperas da lida e a dela delicada como pétala de flor. Contei da minha vida sem parada, do pai e da mãe que ficaram em casa e do desejo de ter meu canto e alguém me esperando. Falou que seu pai era guasqueiro e desejava fazer vida no Mato Grosso, onde tinham alguns parentes. Os pais não gostaram de nós dois dançando tanto, na noite passada.

 

- Sou gaúcho como tu! É minha cor, ser um chiru?

 

Com os seus olhos úmidos de sentimento, disse me achar guapo e ter se encantado com meu trato, durante o baile. A conversa seguia, quando o cheiro de chuva chegou, e logo após, o céu começou a faiscar e veio uma chuvarada. Nos abrigamos debaixo de um cambará e trouxe a morena para junto do peito. Sua respiração ofegante, seus braços em torno de mim, tudo me levou a trazer sua boca para junto da minha. Posso dizer que beijo de china nenhuma chegou perto do sabor daquele. Era úmido de desejo, suave e cheio de calor. Deixei de ser eu, e me senti perdido, em um momento, fora do mundo. Algo corria por todo meu corpo e chegava no meu coração.

 

- Aí Seu Nonô! Passou a guria nos cobres! Muitos riram e fizeram chistes.

 

- Seu moço, aquilo era amor. Foi algo que nunca senti na vida. Uma vontade de colocar a prenda na garupa do meu bragado e buscar um canto para juntarmos os trapos e depois ter uns guris. Era amor. Nunca me senti tão forte, e ao mesmo tempo com medo de ter aquela vida junto da minha. Até a gauchinha ir para casa foram momentos de beijos, carinhos e promessas. E depois pra dormir?

Era a cabeça girando, cheia de ideias e desejos. A mulher que sempre sonhei. Foi uma noite larga.

 

- Seu Nonô. Falou com o sogrão? Foi cabra-macho?

 

- Não. Não havia combinado nada com a guria. Minha cabeça estava um tropel de ideias. Na tarde seguinte, que seria a última que ficaríamos por ali, após a lida do dia fui procurar a morena. Estava atrás de sua casa debulhando milho. O sol de final de tarde banhava seu rosto e transparecia suas formas, atravessando o vestido simples e fino, permitindo visualizar a rigidez de seus seios tentando perfurar o tecido. É uma imagem que nunca sairá de minha cabeça. Ficamos de nos ver mais tarde atrás do bamburral. Ela chegou, como a noite anterior, parecendo uma deusa, com seu cabelo em trança tendo flores em volta. Nossos beijos e carinhos tomaram ímpetos que levaram a nos deitar na relva, e sobe um céu estrelado nos entregamos ao amor. Ao final, o arfar de nossos peitos, tendo ao fundo o coaxar que vinha da sanga de água e o cantar dos grilos. A lua em quarto crescente havia despontado no horizonte, dividindo o céu com as estrelas. Contou que seu pai estava desconfiado com alguma coisa, falou a esmo que não gostava de sangue índio ou qualquer outro, pois, não dava bom futuro. Tratando de dar a entender que não gostara de mim. Combinei que acompanharia a entrega do gado, iria até em casa, receber o que de direito do patrão, pegar minhas coisas, despedir dos pais, e voltar para falar com os seus. Com seus consentimentos começaríamos nossa vida juntos. Em duas semanas estaria de volta. Na manhã seguinte, sob um frio madrugadeiro, com a faixa em volta da cintura contendo a longa faca de ponta e o amolador, a guaiaca, coberto de poncho pela friaca, sombrero, botas, nazarenas de ferro, junto com os outros toquei a tropeada para viagem. Não parecia estar montado no meu baio e sim em nuvens. Ela não saía da minha cabeça. Seus olhos, o sorriso e a maciez da pele. Lembrava o sabor dos lábios. Ah, e o calor do seu corpo junto do meu! Eram imagens, sentimentos que corriam desembestados por mim.

 

- Pai, mãe, vou me casar.

- Mas como meu filho, conta isso, diz mãe.

Falei da mulher que roubou meu coração. Contei toda a história. Foi alegria, emoção e tristeza que senti ao mesmo tempo, no pai e na mãe. Depois de alguns dias, com o dinheiro na guaiaca e meus poucos pertences na mala de garupa, me despedi. Um forte abraço do velho, bençãos, abraços e muitas lágrimas de minha mãe. Desejo de sorte dos irmãos.

- Volto com ela ou fico por lá e monto casa.

Seu Nonô, que já havia picado seu fumo com a faca que levava na cinta, durante a conversa, enrolou seu cigarro de palha, bebericou mais um trago, aspirou seu palheiro e soltou a fumaça. Todos ficaram em silêncio aguardando, ansiosos a continuidade da história.

Lá ia eu matutando, o que dizer:

- Seu Mariano, dona Rosa, gosto muito da sua filha e quero me casar. Venho buscar a autorização e benção. Sou trabalhador, posso logo ter minha casa. Nos primeiros momentos, fico em casa de pai, ou posso encontrar por aqui um lugar para morar.

Durante a viagem, fui imaginando miles de conversas com os velhos. Tinha hora que eu suava, hora que me dava vontade de chorar e em outras, eu ria de alegria com eles concordando. Imaginava a festa, a prenda dançando a noite toda nos meus braços. A alegria de todos. A noite, o amor. Aí, não posso nem falar o que passava pela cabeça.

Risos de todos, chacotas, comentários bons e outros apimentados.

- Seu Nonô quer uma carne?

- Gracias, mas não. Paisanos, tinham se passado cinco semanas. Quando cheguei não encontrei a família. Informaram que uma semana depois de partirmos, despediram dos amigos, contando que seguiriam o destino que haviam planejado. Ir pro Mato Grosso, quem sabe chegar até Cuiabá. Ustedes, entendam que na hora vi o mundo desmoronando de baixo dos pés. Tudo o que sonhei aquelas semanas, parecia água escorrendo pelos dedos. O amor, o casamento, a família, tudo naquele momento, se tornou bruma, não me permitindo ter alento para o amanhã. Foi uma noite longa com o peito apertado, lágrimas escorrendo pelo rosto e escuridão na alma. Estava derreado. Quando amanheceu, como o sol que despontava, a frouxidão da alma começou a se dispersar e com dor no coração resolvi procurar pela morena.

Sai a campear. Peguei o caminho provável, parando em cada corrutela e perguntando. Voltei por outras bandas. Rumbei pro sul do Mato Grosso, depois, voltei pro Norte, chegando a Cuiabá. Voltei por Goiás, pedaço de Minas, por São Paulo e o Paraná. Andei pelas coxilhas do Rio Grande. Foram cinco anos. Parando um pouco para algum trabalho. Aprendi doma de cavalos com um guarani quando entrei em terras paraguaias e virei domador, quando a lida exigia. Fui cacimbeiro, cuidei de cercas, de animais, no cerdear, tropeiro nos caminhos que precisava trilhar. Em algumas paragens, trabalhei em bolichos, esperando encontrar entre os viajantes, que por lá passavam, notícias que me dessem uma luz. Pelos caminhos encontrei muitos paisanos que me deram ajuda e notícias, mas muitos outros, que só na peleia acertamos diferenças. Quantas noites dormi borracho. Pousei em beira de estrada, ao relento, em galpões, em posteiros, em cima de cama de arreios, em qualquer paragem. A cada parada, sem resultado, o coração se encurtava. Era uma tristeza tão grande que por mais que o lugar fosse alegre e cheio, eu me sentia só. Não havia roda de gaiteiro ou de violão que me trouxesse sorriso. Qualquer tocar de cordeona me trazia um pesar na alma. Deitei em cama de chinas, onde o que fiz foi procurar olhares e bem-querer que só estavam dentro de mim. Antes do despertar da aurora tinha que ir, me afastar daquele corpo, daquele lugar, pois, a tristeza de não ser meu bem-querer, invadia minha alma e me sentia enraivecido comigo mesmo. Tomado de dor, me perdia na neblina do alvorecer, para seguir em uma busca inconstante. Não sabia o que fazer da vida. Virei um estradeiro sem rumo certo. Fui levando a vida como Deus quis.

Passados cinco anos, acabei voltando para casa de pai. Ele e mãe haviam morridos e meus dois irmãos casados. Um deles vivendo no local e o outro ido lá pras Minas Gerais. Não tinha mais nada a fazer por ali. Toquei meu caminho pro Mato Grosso.

Ao final, fiz parada com meus caraminguás em uma fazenda próxima à Aquidauana. Comecei de peão, realizei algumas domas, sabia um pouco de remédios, de benzeduras, cuidava de bicheiras. Coisas que aprendi com uns castelhanos, nas minhas andanças e com isso, atendia nos problemas corriqueiros. O patrão, que era da capital, mas passava muito tempo por lá, foi tomando confiança em mim. Acabei me arrinconando por lá. Como ele gostava de matear na boquinha-da-noite, eram horas de charla, trocando histórias e informações. Acabou me ensinando a administrar a fazenda, comprar e vender gado e cavalo, o que, com meu conhecimento não foi difícil. Fizemos um arreglo e acabei me transformado em seu braço direito.

Cuidava de tudo, inclusive dos empregados. Minha casa era na fazenda. De vez em quando visitava umas chinas. Churrasqueava com a peãozada, com muita roda de viola e cantoria. Carteava. Apesar de cercado de pessoas, ustedes não imaginam a dor da ausência de um amor para no final do dia abraçar, prosear sobre o dia e a gurizada. Na cama, poder estender a mão e sentir a maciez e o calor de um corpo querido de mulher.

Seus moços, quem tem, valora muito. No hay alegria maior na vida.  Ter uma família que encha o coração. Não se deixe ficar só, na vida. Hoje a mulher, os filhos, amanhã os companheiros ou companheiras deles, os netos. Todos são como gotas de chuva regando teu viver. O coração é como horta, precisa de semente, água e sol.

- Genoíno, traz mais uma canha, pediu Seu Nono, continuando a conversa. Em determinada época, apareceu por lá um peão chamado Raimundo. O muchacho era bom de trato e interessado. Não tinha poréns para nada. Como levava jeito com os cavalos, comecei a ensinar a arte da doma, que aprendi, no passado, com velho índio. O pessoal o respeitava nesse assunto. Era macanudo. Morava na fazenda durante a semana e no final da semana, com o resto do pessoal, era levado na carroceria de um caminhão para a cidade, onde tinha casa. Uma tarde, em que o mormaço estava forte, eu estava sesteando, tomando um amargo, ele me procurou, pois, recebera notícia que sua mãe estava mal, possivelmente necessitando ser levada para o hospital da cidade próxima.

- Como pensa em ir, visto que a fazenda fica a 6 km da cidade?

- O Joca vai me emprestar a moto.

E tu vai levar de moto ao hospital, se precisar?

Não sei, depois eu vejo.

Resolvi levar na caminhonete da fazenda. Morava com a mãe, a mulher e a filha em uma casa modesta, branqueada com janelas azuis, diferente da maioria da redondeza, o que demonstrava cuidados. A frente era florida e janelas com cortinas coloridas, o que, dava um belo contraste, mostrando mão feminina. A sala com móveis simples e bem arrumada. Tinha um rádio sobre um armário, toalhinha na mesa de centro e nos braços do sofá. Aguardei na sala, enquanto ele se dirigiu ao quarto para falar com a mãe, e sua mulher me oferecia um café, enquanto a filha de 4 anos, um encanto de guria, encarapitou no meu colo e tagarelava comigo. Voltou dizendo, que a mãe se encontrava melhor e que não queria ir para o hospital, pois estaria dando trabalho para o patrão dele.

Deixa eu prosear com ela.

- Permiso? - perguntei ao entrar no quarto.

- Se aprochega, seu moço.

Tossindo me perguntou:

O senhor é o chefe de meu filho?

- Ele trabalha comigo. É um ótimo peão.

- Puxou o pai.

No quarto, encontrei uma mulher de cabelos negros, com alguns brancos, entre meio, amarrados em coque. Pelo pouco que a penumbra permitia ver, notei um rosto brando, com sulcos adquiridos na vida, com aparência flaca. No ar havia um leve cheiro de água de jasmim, o que fazia com o fresco do quarto um ambiente agradável, que se quebrava por um leve tossir. Levantou o rosto, o que possibilitou iluminar seus olhos. Aquele olhar me deixou atarantado, minha cabeça girou como bagual no curral e pedaços da vida passaram pela cabeça, descompassando o coração. Meu corpo gelou, como se o minuano congelasse meus ossos.

Seu Nonô deu uma parada, fixou o olhar no vazio do horizonte, como se estivesse vendo a cena de novo. Um silêncio, só quebrado pelo crepitar do fogo, ressaltou a expectativa do relato. Cortou o seu naco de fumo no silêncio do momento, ajeitou na palha, pediu fogo, deu uma pitada e pigarreou. Alguns, viram lágrimas nos olhos do velho Nonô.

- Era ela, seu Nonô?

- Chê, era ela. O mesmo sorriso com uma covinha no canto, o mesmo olhar, o jeito de afastar o cabelo. Sua voz era madura, um pouco quebrada e arfada pela tosse. Paisano, era a minha Rosita!

Fôlegos se soltaram, pequenos risos, comentários, correram no grupo.

- Pela penumbra do local, ela não me reconheceu.

- Se a Senhora não for para o Hospital eu tenho que chamar o doutor aqui.

O filho e a mãe disseram que não precisava. Agradeciam a minha ajuda até ali. Para precaver, passei no doutor, que costumava atender o pessoal da fazenda, pedi que passasse por lá e que solicitasse na farmácia os remédios que precisasse, depois eu pagaria.

Voltei para casa, parecia ter saído de uma peleja. A dor vinha do coração, me dava como um nó nas tripas e terminava num amargo na boca. De outro lado, meus olhos, queriam escorrer pelo rosto as lágrimas que o tempo acumulou. Vivi momentos de alegria e de tristeza, naquela noite. Não dormi. Eram imagens e pensamentos galopando pela cabeça.

Ao voltar no dia seguinte, Raimundo me agradeceu, a não mais poder, pelo doutor e pelo tratamento. A mãe estava com pneumonia e o doutor receitou injeções, que o farmacêutico estava dando. Disse que iria pagar com trabalho. Informei que não, pois seria por conta da fazenda. Ficou constrangido com a resposta.

Por uns dias fiquei assuntando o rapaz. Seu rosto, onde via traços de Rosita, seus trejeitos, inclusive tinha um sorriso parecido. Seus olhos eram azuis como da mãe, mas tinha a pele morena e queimada dos campos. Despacito, fui me aprofundando com o muchacho. Soube que o pai fora caminhoneiro. Teve uma pequena carreta de gado. Quando a viagem era por perto, o colocava na boleia para irem juntos. Com que alegria contava daquelas viagens, ao lado dele, e dos momentos nas fazendas com os peões. Toda vez que seu pai voltava era só alegria. A mãe fazia um almoço para festejar, com ele e o pai tentado ajudar na cozinha, só atrapalhando e a mãe ralhando. Os dois faziam que brigavam e no fim se abraçavam e riam, contava ele. O pai era bem mais velho que a mãe. Segundo o que ela contava, era bem nova quando casou, forçada por seu pai. Não tinha amor pelo futuro marido. Engravidou logo que casou. Com o passar dos anos, pelos cuidados e o bem-querer que tinha por ela e por ele, surgiu uma semente de amor. Sempre lhe dizia:

-Case com quem amar. Casei forçada, apesar que peguei grande estima por teu pai, mas de jovem, meu coração sofreu muito por um amor que não pude ter, mas que sempre ficou guardado no fundo do meu coração. Hay lembranças que não se apagam.

- Creio ser por esse amor que às vezes vejo minha mãe com olhar perdido e com lágrimas.

Soube que seu pai falecera alguns anos atrás. A mãe vendera a casa e a carreta e se mudaram para a região, pois, sua mulher tem família por aqui e sempre quiseram morar por perto.

Empecei a ter um querer maior naquele peão, por ser filho de Rosita e por que podia ter sido meu filho. Eu o olhava na lida e além de ver a mãe eu me via nele, quando era jovem. Seu comportamento, o trato com os animais, a doma, o jeito de parar. Matutando aquilo tudo, fui me aperreando. Tive uma coraçonada. Resolvi conferir no seu registro de trabalho a data de nascimento. Contando os meses de gravidez, ele podia ser meu filho, pela proximidade da data que estive com Rosita! Aquela ideia começou a me deixar aperreado. Não me achava no direito de me intrometer, se era ou não, e nem de abalar a imagem que ele tinha do pai. Apesar da gana de saber, fui mantendo aquilo dentro de mim. Cada vez mais, eu e ele mantínhamos um entendimento, que parecia de pai e filho. Apesar da dúvida, eu estava feliz com a relação que tínhamos.

Um dia após tanto me convidar, aceitei almoçar em sua casa. Depois, me arrependi. Depois, me encorajei. Depois, fiquei com medo do choque que sua mãe poderia ter. Quem sabe, não me reconheça? Situação muy difícil. Entonces, após, uma grande batalha comigo mesmo, resolvi ir.

No dia, levantei com o estômago na boca, ansioso. Estava mais tenso que em doma de cavalo xucro. Parecia me sentindo como frenteando um estouro de boiada. Tratei de me pôr na estica. Peguei um bom troço de goiabada cascão, feita na fazenda, para regalo e não chegar com as mãos vazias.

Raimundo e a mulher me esperavam na porta e me fizeram sentar na sala.

- A mãe já vem, tá terminando o almoço. Vai ter costela na panela com arroz carreteiro. Depois um belo pudim, especialidade da velha.

- Que bueno.

A Flor, que no início estava vergonhosa, logo se aboletou no meu colo, mostrando desenhos que havia feito. Um encanto de guria. Quando me chamou de vô, querendo mostrar a sua arte, fiquei por dentro feliz.

Tomamos uma branquinha para abrir o apetite com uns torresmos. Reparei, em fotos em cima do armário e os mesmos cuidados na sala da outra vez.

- Seu Nôno esta e minha mãe.

Ela entrou na sala e quando ia me estender a mão, parou. Seus olhos se avivaram em um olhar de surpresa. Começou a perder a cor. Se segurou na mesa e sentou na cadeira, sem parar de me olhar e dos seus olhos começaram a correr lágrimas. Era um choro baixo, contido.

- Mãe, que foi? Não está bem?

Enquanto seu filho se abaixava junto a cadeira, a nora correu para buscar um copo d’água e a neta, vendo a vó chorar, também, começou a chorar e a chamar por ela. Tomou o copo d’água e se levantou.

Eu me aproximei, não podendo parar de mirar seu rosto. Os olhos, a boca, os traços era a Rosita das minhas lembranças. Ela se jogou em meus braços chorando e a aninhei em meu peito, e junto comecei a chorar. Em volta todos atontados sem entender o que ocorria.

- Minha linda, eu estradei um bom tempo te procurando. Fui por muy lejos. Nunca consegui te esquecer. Agora te encontrei.

Após um tempo abraçados e chorando, nos separamos com ela me dizendo o quanto sentiu a minha falta. Que seu pai, tão logo fui embora, resolveu se mudar, para que não pudéssemos nos encontrar.

- Filho, este é o grande amor que te disse ter tido na minha juventude.

Contou que rumaram para Cambé, norte do Paraná, onde seu pai tinha um amigo e queria que casasse com ele. Esse homem era Bernardo, pai de Raimundo. Era um viúvo, bem mais velho que ela e sem filhos.

- Pai, gosto de outro homem.

- Besteira. O que vale é o que eu decido, está decidido.

O pai a obrigou a casar, pois iria para a Amazônia, onde o governo estava dando transporte e terras. Era um lugar muy lejos e antes, queria deixar a filha encaminhada. Rapidamente se casou. Os pais se foram e nunca mais os viu. Pelo trabalho do marido, mudou várias vezes de cidade, o que deve ter dificultado minha procura. Bernardo morreu alguns anos atrás. Do meu lado falei da busca por cinco anos. Dos lugares que fui, das dores que senti. O quanto sofri na sua busca.

 O almoço foi cruzado de conversas, de risos, de momentos de silêncio, de umidade nos olhos. Depois no sentamos na sala. Trouxeram os avios de mate e a conversa se estendeu. Durante aquele tempo todo, eu tinha preso no peito a grande dúvida que gostaria de saber. Seria Raimundo meu filho?

Raimundo, a mulher e a filha resolveram sair para tomar sorvete, deixando que pudéssemos conversar. Sentei ao lado de Rosita e peguei suas mãos, olhando seus olhos, vendo uma luz como que me chamando. Quando falava observava o movimento dos lábios. Graciosos. Era a prenda que estava no meu coração. Não resistindo a beijei, delicadamente, até que em um anseio preso pelo tempo a abracei e nos perdemos no trocar de beijos, nos roçar dos lábios, pelo rosto, pescoço e cabelos.

- Aí seu Nonô, não deu moleza! Que paixão presa no peito!

- Bueno, dentro de mim, continuava aquela angustia, a grande dúvida, e não aguentando mais, perguntei:

- Tenho uma pergunta importante a te fazer, Raimundo é meu filho? Tem horas que acho que ele se parece comigo.

- Quando você se foi o pai queria que não te visse mais, eu lhe disse ter me deitado contigo e agora era sua mulher. Ele era esquentado, me bateu, me prendeu no quarto por quatro dias, enquanto tratava da mudança. Viajamos para Cambé, para encontrar o Bernardo, que era um amigo lá dos pampas, contou querer que eu casasse, mas que não era mais virgem. Bernardo era um homem só, de idade e não se importou com o fato. Casamos em poucos dias pela pressa que o pai tinha de viajar. Em poucas semanas soube que estava grávida. Não casei amando Bernardo, mas com o passar do tempo, pelo cuidado que tinha comigo e com o filho, foi nascendo uma semente de respeito e de amor

- Rosita, pela data que ele nasceu, pode ser meu filho, fruto do nosso amor!

- Eu poderia estar grávida de você, mas da surra que levei, eu sangrei, não sei se eu perdi um filho teu.  Gostaria muito que fosse teu filho. Queria ter um pouco teu comigo.

- Bueno amigos, na hora foi um desencanto, mas, eu que tinha tanto medo, de após pelejar a vida ficar só, acabei ganhando uma família. Depois de um tempo passamos a viver juntos. Não tive um filho de sangue, mas o Patrão do céu, me deu um filho do coração. Passamos a nos querer como pai e filho. Ele nunca veio a saber que poderia ter sido verdadeiramente, meu filho. Rosita, morreu há poucos anos. Que Deus a tenha. Dizem, que encontramos com que amamos, depois da morte. Não vejo a hora de me encontrar com ela. Tivemos mais netos, veio Bernardo, nome em homenagem ao pai de Raimundo e depois, aquele piá que vem ali, que leva o meu nome.

- Vamo vô, a mãe tá chamando, diz que o senhor tá demorando.

- Vamos sim Raimundo, dá a mão aqui pro vô.

Ele se levantou, baforou o cigarro e jogou a bituca no chão.

- Buenas amigos, esta é minha história. Se me dão licença, vou-me andando. Até mais ver.

O pessoal ficou olhando se ir, de mão dada com o neto, no seu caminhar lento e o guri alegremente lhe falando.  

Ficaram todos com os olhos parados nas lembranças. Em cada rosto um olhar de tristeza, de saudade, de amor ou tudo junto. Há quem diga que em muitos, haviam lágrimas.

 

 

 

E.F. MMMAA