INTRODUÇÃO
Estamos vivendo um momento de
grande bipolaridade. Muitos pedindo ações mais radicais, como intervenção
militar. Para melhor avaliar o que pensar e fazer, contarei uma
história que ocorreu durante a Guerra Civil Espanhol, que aconteceu entre 1936
e 1939. Esta foi uma guerra que dividiu um país ao meio, desfazendo e separando
famílias, amigos, pais, filhos e irmãos, por posições políticas e religiosas. Fruto
de uma grande bipolaridade.
IRMÃO CONTRA IRMÃO
Ramon Porell, dirigia seu
carro pelas estradas do interior da Espanha a caminho da casa que fora de seus
pais. É começo de 1978. Havia dois anos que o ditador Franco morrera e a
Espanha vivia novos tempos, anistiando os perdedores da guerra e que se
refugiaram em outros países. Ramon está com 53 anos, sendo a primeira vez, que
volta a seu país. Como será recebido pelo irmão, a quem não vê, há cerca de 40
anos? Haverá possibilidade de diálogo entre eles? Suas vidas foram divididas
pela guerra e pela desgraça que se abateu sobre a família.
A estrada serpenteia campos
pedregosos, que se perdem aos pés das serras, com alguns rebanhos de bois,
ovelhas e cabras. Veem-se olivais, de tempo em tempo videiras e muitas
amendoeiras. Aqueles campos, trazem com força as imagens da sua infância,
quando com o irmão Isidro, corriam por eles, procurando caracóis, colocando
armadilhas para lebres e outros pequenos animais. Lembranças de quando o pai os
levava a caçar javali, que era preparado pela mãe em um farto almoço de
domingo, com arroz com caracóis, saladas da horta, chouriços e o bom vinho
produzido pelo vizinho, Dom Agustin. Eram uma família,
feliz e alegre, até que uma nuvem de dor e incertezas se abateu sobre eles.
Para enfrente a Igreja de São
Nicolau e da Virgem das Dores, na entrada da cidade. Uma construção com
características românicas, toda em pedra. A visão é maravilhosa, pois, há
milhares de andorinhas, pousadas nos telhados, nos beirais, nos nichos e na
torre do campanário. A igreja parece uma noiva coberta de enfeites.
Relembrando os tempos de infância, não resiste. Desce do carro, grita para assustar os
pássaros, que se elevam aos céus formando rodamoinhos que se entrelaçam entre
si, cobrindo o sol pela sua quantidade. Espetacular. Pouco a pouco, voltam aos
seus lugares. Recorda da mãe indo à missa, do pai participando da semana santa.
A festa dos santos no início de fevereiro, quando uma grande paella era servida
para toda a comunidade. Como uma grande família, cada uma levava um prato de
doces ou salgados e garrafas de vinho, partilhando com os vizinhos.
Toma a rua principal da
cidade. Uma placa indica: População 308 habitantes. Um terço de quando ali
vivia. Depois da guerra, muitos jovens tiveram que se mudar para cidades
maiores em busca de trabalho. Foi o início da grande saída do campo, que levou
o país a ter o que se chama “Espanha Vazia”. Cidades e cidades, que foram esvaziadas e algumas abandonadas. Passa em frente
da venda do Manolo, onde se ouve uma zarzuela tocando alta em um rádio. Era o
local, onde a comunidade, se encontrava para beber, jogar cartas e em vários
finais de semana haver um bingo.
O calçamento é de pedra,
assim como os velhos casarios e a maioria das casas. Pelo caminho passa em
frente a antigos armazéns com seus sistemas de polia para
descarga das mercadorias, hoje abandonados, algumas cisternas em modelo árabe,
cobertas por uma pequena abóboda de argamassa e ladrilhos onde se acumula a
água das chuvas, portas antigas de madeira escovada,
que dão acesso a antigos pátios. Por ser pequena a cidade, a sua chegada chama
atenção das pessoas, que param para olhar, quando não, chamam os vizinhos.
Chega à casa dos pais. Uma
casa antiga de pedras, com janela à direita, tendo uma porta em uma reentrância
na parede, formando um degrau em relação à
rua e proteção para a chuva, possibilitando ver a grande largura da parede. É
geminada a outras casas, que possuem a mesma construção e aparência.
Passou anos, esperando por
esse momento, pensando o que fazer, o que dizer e agora, sente-se perdido. Como
será a recepção do irmão? Como iniciar a conversa? Bate palmas.
Seu irmão abre a porta. É
dois anos mais velho e mais alto. Tem os cabelos brancos desgrenhados e a barba
por fazer, calça surrada e uma camisa listrada, que se nota, foi vestida para
recebe-lo. Tem um olhar gélido e a fisionomia fechada, o rosto duro de um homem
do campo com claras marcas feitas pela vida. Não há sorriso entre eles. Um
simples aperto de mão e o convite para entrar.
— Senta, vou passar um café.
A casa não tem mais a
aparência da casa da mãe. Que saiba, o irmão não casou. Poucos móveis, nenhum
enfeite, somente uma foto do casamento dos pais em uma moldura oval. A casa está
limpa. Sente um frescor comum as casas de pedras, feitas para abrandar o calor
no verão e proteger do inverno, que pode chegar a menos 10 graus.
Na família, tudo principiou a
se desequilibrar quando da queda da monarquia e ascensão da república em 1931.
Fora promulgada uma nova constituição, propondo reformas sociais, econômicas e a
separação da igreja do governo, criando um estado laico. Nisso, começaram os
grandes conflitos com a igreja e os poderes constituídos, com suas estruturas
arcaicas. Os latifúndios estavam em mãos de famílias nobres ou tradicionais e
ordens eclesiásticas, que cediam parte dos seus campos, para lavradores ou
parceiros em condições precárias, em uma situação feudal. Nas cidades,
empregadores que não ofereciam condições e salários adequados. Nas minas de
carvão, além do problema da remuneração, o trabalho era insalubre, inseguro e
excessivo em carga horária.
Enquanto isso, nas capitais e
nas maiores cidades, ocorria grande efervescência política, onde ideias
tradicionais confrontavam com novos movimentos de esquerda, que fervilhavam na
Europa, como o comunismo, o socialismo, o anarquismo, a democracia e outros
mais. Esta ebulição se espalhou pelo país e chegou aos pequenos povoados.
Lembra Ramon que Isidro, seu irmão, esbravejava ser um absurdo o que
ocorria. Inclusive, tentaram queimar a igreja da cidade, mas, muitas pessoas
intervieram, inclusive seus pais. Era histórica e possuía uma imagem do
Crucificado que possuía grande valor artístico.
Ramon respondia:
— Ocorre isto, porque a igreja
sempre esteve do lado dos ricos. Algumas, inclusive, possuem
terras nas quais trabalham um povo explorado.
— Daqui a pouco vou te ver correndo atrás de
padres para fuzilar — gritou Isidro.
— Nunca! Temos que batalhar por melhorias, mas não
perseguindo ou matando nossos irmãos — respondeu
Era uma constante discussão
entre os irmãos, que possuíam opiniões contrárias. Ocorria, o mesmo, com amigos
e familiares. As reuniões no bar do Manolo, escassearam. Reuniam-se
os grupos contrários em dias distintos, para não terminarem em briga.
— Precisamos de ordem, mesmo que seja debaixo do
tacão de uma autoridade. De que vale a democracia com desordem? — perguntava
Isidro.
— A democracia permite a busca do que é melhor
para o povo e não só para as elites — retrucava Ramon.
O pai, Salustiano, tinha que
pedir, inúmeras vezes, que se calassem e se respeitassem, assim como, a ele e a
mãe, Encarnação. Eles concordavam que os ricos e a igreja estavam errados, mas
viviam pedindo a Deus, por paz. Viviam um conflito entre a instituição
e a fé.
A cidade que antes, era de
harmonia, passou a se calar, apagar, pelo medo. A qualquer momento, pessoas
podiam ser acusadas por professar opiniões contrárias e muitas vezes por simples
inveja ou fruto de desavenças.
Em janeiro de 1936 houve novas eleições,
vencidas pela esquerda, levando a um aumento nos conflitos do povo com as
instituições, queimando igrejas, perseguindo padres e freiras, prisão de
nobres, industriais, comerciantes e pessoas ditas de direita. Houveram fuzilamentos,
sem julgamentos, na calada da noite. O governo não estimulava esses atos, mas,
não os coibia, fora os enfrentamentos que havia entre os diversos grupos.
Esta situação, levou a que em
julho de 1936, ocorresse uma sublevação militar, em Marrocos, protetorado
espanhol, comandada por Francisco Franco, tendo ao seu lado a “Guarda Moura”,
legião estrangeira formada por soldados muçulmanos marroquinos,
que possuíam forte treinamento militar em razão das constantes guerras na
região. Diziam ser uma “Cruzada” contra ateus e comunistas. A sublevação não
teve sucesso em toda a Espanha.
O país nesse momento ficou
dividido e começou uma GUERRA CIVIL. De um lado o Bando Nacional e de outro o
Bando Republicano. Os sublevados obtiveram, o apoio da
Itália fascista de Mussolini, da Alemanha nazista de Hitler e o apoio velado de
Salazar, ditador de Portugal. Os republicanos, por sua parte, contaram com o
apoio da Rússia e de uma série de idealistas do mundo inteiro, das mais
diversas conotações políticas, que seguiram para Espanha no objetivo de lutar
contra o fascismo, formando as chamadas Brigadas Internacionais. As grandes
potências se manifestaram neutras.
O clima na família Porell
piorou, quando, chegaram à cidade, em março de 1937, vários grupos de
refugiados que escaparam das atrocidades ocorridas na estrada de Málaga para
Almeria, fugindo dos nacionalistas, que batalhavam pela cidade de Málaga. Pediam
abrigo para descansarem, roupa, comida e ajuda para chegarem a Barcelona, que
na época estava nas mãos dos republicanos. O pai, a mãe e Ramon saíram a rua
para receberem essas pessoas. Ao final, acolheram em sua casa, um grupo
composto de mãe, avô e dois filhos pequenos.
Isidro, se pôs contra de
imediato.
— Como vocês recebem um grupo de comunistas
foragidos? É uma loucura, um absurdo! Que arquem com
seus atos.
Seus pais respondiam:
— É gente como nós, que está pagando com suas
vidas, simplesmente, por estarem no meio de uma guerra.
Ele continuava discutindo com
os pais, com o irmão, que também saíra em ajuda. Saiu de casa, dizendo que não
voltaria, até que, aquelas pessoas fossem embora. Foi dividir suas
reclamações junto a amigos, que pensavam igual.
A família facilitou água e
sabão para se lavarem, roupas que tinham ou conseguiram com os vizinhos,
sapatos, pois os deles estavam estraçalhados, tanto que alguns, tinham
os pés em sangre. Ofereceram o pouco de comida que tinham, mais alguma que
amigos, também dividiram. Comiam desesperadamente. Via-se que há vários dias
não comiam ou mal comiam. Puseram cobertas no chão e os acomodaram, como
possível. Se espalhando pelos cantos, quando não juntos.
Na manhã seguinte, um café
aguado, pão e alguns pedaços de toucinho. Manola, como se chamava a mãe, contou
morarem em Málaga, que o marido estava na frente de
batalha, ficando ela, o sogro, a sogra e três crianças.
— Mas só está seu sogro e duas crianças, e os
outros? — perguntou Encarnação.
— Já lhe conto. Ocorre que os fascistas começaram
a tomar áreas dos republicanos, como Sevilha, Ronda e Granada, e a população
começou a fugir para Málaga, que ainda estava nas mãos dos republicanos.
Fugiam, porque diziam que os nacionalistas fuzilavam aos homens que
encontravam, não importando a idade e nem se participaram
no conflito ou em movimentos. Falavam que os moros da Guarda Marroquina,
matavam as crianças, velhos e abusavam das mulheres, principalmente as mais
jovens. Em pouco tempo, havia o dobro de pessoas na cidade, pelas ruas, praças,
igrejas, onde fosse possível ficarem. Faltava comida e água. A cidade
começou a ser constantemente bombardeada. Dormíamos vestidos para podermos
correr aos abrigos quando chegavam os aviões. Os fascistas se aproximavam da
cidade.
No dia 7 de fevereiro,
principiou o pânico a se espalhar, com a informação que os fascistas e a Guarda
Mora estavam tomando a cidade, matando e abusando de qualquer um. As pessoas, pegavam o que podiam em suas casas,
colocavam em malas, bolsas, sacos, no que pudessem carregar. Poucos tinham
carros, que saiam atulhado de móveis, cadeiras, colchões, roupas, o que
cabia, como se quisessem levar parte de suas vidas. Outros se valiam de burros,
cavalos, carriolas e bicicletas. Nós que não tínhamos nenhuma forma de
transporte, levávamos nossas coisas em sacos, na cabeça, pendurados nas costas,
seguros pelas mãos. As crianças levavam pequenas malas ou bolsas. Elas têm
entre 5 e 8 anos.
A multidão seguia para
Almeria. Apesar da estrada ter 220 km, era a saída que se apresentava. A voz de
Manola começa a tremer, seu rosto se crispa e lágrimas começam a sair. Soluça,
não consegue continuar. Para, respira e recomeça:
— Na estrada parecia uma procissão. Era uma grande
fila de pessoas. No começo não haviam ataques, mas logo ao amanhecer, chegaram
os aviões. As pessoas, que andavam, começaram a correr, muitas caiam, mães
gritavam pelos filhos e eles por elas. Muitos velhos mal conseguiam caminhar,
quanto mais correr. Malas, objetos eram largados de qualquer forma, o
importante era preservar a vida. Ouviam-se gritos, choros, alaridos. Começaram
os bombardeios. Os aviões descarregavam as bombas, recarregavam e voltavam para
continuar. A estrada fica entre a serra e muito próxima do mar. Vários navios
chegaram e também começaram a bombardear. Rochas caiam pela estrada atingindo
pessoas que corriam, quando muitos se desencontravam e se perdiam.
Manola, para e chora. Seus
filhos que estão próximos também choram. Seu sogro tem o olhar parado, parece
não estar ali. Notam-se lágrimas em seu rosto escorrendo. Ela, retoma:
— São imagens, sons e cheiros que não me saem da
cabeça. Ao final de cada bombardeio o ar estava impregnado de enxofre e sangue.
Havia muito sangue pelo chão de pessoas e animais. Corpos estraçalhados.
Crianças perdidas. Pais desesperados buscando seus filhos. Velhos que se
postavam no chão e preferiam esperar a morte a terem que correr ou andar.
Quando os barcos estavam mais
próximos da costa, metralhavam as pessoas. Podia se ver os
marinheiros nos convéns e às vezes, ouvir seus gritos. Vi mães mortas com seus
filhos de meses no colo. Uma que não me sai da memória, com peito fora da blusa
para dar de mama, morta, e a criança caída ao lado chorando. A grande maioria
eram mulheres, crianças e velhos. Que valor militar tínhamos? Era uma chacina.
Eram bárbaros. Não é possível acreditar, que eram espanhóis matando espanhóis.
Irmãos matando irmãos.
Os aviões iam e vinham
descarregando bombas, os navios bombardeando e metralhando. Se há inferno,
aquilo era o inferno. Corpos por todos os lados, pedaços de vida em malas, bolsas
largadas pelo caminho. Muitas, muitas crianças perdidas, chorando. Pais
desesperados procurando seus filhos quando não, os encontravam mortos. As pessoas
não podiam cuidar das outras, pois estavam cuidando de se salvar e manter sua
família unida.
Chora Manola, choram todos em
volta. Um sentimento de repulsa se espalha. Continua Manola:
— Ali, morreu minha sogra por uma bomba que a
pegou, pois, não conseguia correr e se deixou ficar onde estava. Ali perdi
minha filha menor, Angelita, que se soltou de minha mão e não mais a encontrei.
Chamei, gritei, procurei seu rosto entre as inúmeras crianças mortas que achava
pelo caminho. Não a encontrei.
Grita e chora convulsionada:
— São bárbaros. Somos todos irmãos. Que sede
tinham de morte. Éramos mulheres, crianças e velhos, mulheres, crianças e
velhos. Assassinos. Que país querem? Um país forrado de corpos e tingido de
sangue dos irmãos?
Ramon, lembra, hoje, as
palavras daquela mulher e seu rosto, onde o horror, o medo e o nojo estavam
estampados. Crianças que choravam as lembranças recentes, um velho fechado na
sua dor com um olhar perdido na inutilidade da vida.
Depois da guerra, soube mais
dessa chacina ocorrida na estrada de Málaga para Almeria em fevereiro de 1937.
Era uma corrente de mais de 50.000 pessoas fugindo, onde uma 5.000 eram
crianças. Morreram de 3.000 a 5.000 pessoas. Bem mais que as 1.600 que morreram
em Guernica, pelos bombardeios da Legião Condor alemã, que ficou imortalizada
pelo quadro de Picasso. A chacina da estrada de Málaga para Almeria, conhecida
como “La desbandá”, por muito tempo ficou encoberta pelo governo franquista, para
não trazer à tona esta chacina vergonhosa e pelos republicanos, que foram
criticados, por não enviarem reforços para Málaga, quando pediu ajuda.
Málaga caiu nas mãos dos
nacionalistas em começos de fevereiro de 1937, com a ajuda de legiões do
exército fascista da Itália de Benedito Mussolini.
Após a família de Manola, nos dias seguintes,
outras famílias apareceram, nas mesmas condições, fugindo dos avanços dos
nacionalistas, que gradualmente tomavam regiões com apoio, além dos italianos,
da aviação Condor da Alemanha Nazista. Estas pessoas, precisavam de acolhida e
ajuda para chegarem à Valência ou Barcelona, ainda em mão republicanas.
Os conflitos da família com
Isidro aumentaram, ao ponto dele sair de casa, ir para as montanhas e se
ajuntar ao exército nacionalista, que vinha avançando. Problemas similares ao
dos Porell, ocorriam em outros lares.
Em meados de 1938, os
franquistas tomaram a região onde viviam. Muitas pessoas, envolvidas em
movimentos de esquerda ou que perseguiram vizinhos com posições contrárias as
suas, trataram de fugir. Houveram buscas de casa em casa. Ramon e seu pai, com
muitos outros homens e jovens, foram presos. Presumidamente, seriam julgados, o
que não era muito certo, alguns soltos, e a maioria, seria condenada à morte e
sumariamente fuzilada.
No terceiro dia da tomada da
cidade, que cada dia recebia mais grupos nacionalistas, chegou Isidro e seu pelotão.
Foi a casa da mãe, encontrando-a desesperada pela prisão do pai e do irmão.
Tratou de ir à prisão, onde
estavam, e conversou com o capitão que cuidava do assunto, dizendo quem era e
argumentando:
— Meu pai e meu irmão foram presos por engano.
— Não foram, não. Eles acolheram muitos comunistas
e os auxiliaram, dando estada, comida e ajuda na fuga — respondeu o
capitão.
— Minha mãe, é católica fervorosa e meu pai
participa das semanas santas. Ocorre, que ficaram com pena das famílias, que
eram compostas de mulheres e crianças. Atenderam o mandamento de Cristo, de
ajudar ao próximo. O fizeram por humanidade e não por política.
— Mas teu irmão, sabemos por muitas pessoas da
cidade, que estava envolvido com grupos de esquerda.
— Ele só tem 17 anos. O grupo com quem se reunia,
nunca empreendeu nenhuma ação política. Inclusive ele, meus pais e outros,
quando quiseram queimar a igreja, não permitiram.
— Tem razão, soubemos por muitos depoimentos dessa
atuação. Vou soltá-los em confiança a você, mas cuide deles. Ficarei de olho,
principalmente no teu irmão, pode haver uma semente de pensamentos vermelhos
dentro do garoto. Os dois foram soltos.
Em casa, após a alegria
da mãe em recebê-los, Isidro recomendou a seu irmão:
— É melhor você ir embora. Entre meus companheiros
muitos falam a teu respeito. Há inveja entre eles, porque o Capitão me tem
estima e te soltou. Dizem que você é um vermelho e ainda te pegarão.
Após uma troca de ideias,
ficou acertado, que ele iria, no dia seguinte, para as ruínas abandonadas
de uma antiga casa de campo, que estava há uns 6 quilômetros da cidade e
aguardaria a noite para fugir. Sem seu irmão saber, seu pai informou a Ramon,
que outras pessoas estariam se reunindo ali, para fugirem juntas. No dia
seguinte, Ramon, dando a entender que ia para o campo trabalhar, furtivamente
se dirigiu para o local.
No meio da tarde, desse dia,
Salustiano recebeu o recado, de um antigo companheiro, que sua mulher e dois
filhos chegariam na madrugada daquele dia, e pedia que os ajudassem a fugir. No
início da noite, correu para o refúgio onde estava o filho e explicou sobre essa
família. Que aguardasse, assim, poderiam seguir com ele. Aproximadamente, às
quatro da manhã, bateram em sua porta. Era a família que esperava. Só havia
dois rapazes, com idades próximas a seu filho Ramon.
— Onde está sua mãe? —
perguntou Salustiano.
— Ela tinha problemas nas
pernas e no coração, no caminho, pelo cansaço e o medo, passou mal e morreu.
Iriamos nos encontrar com outro grupo, mas com o atraso do seu mal estar e de
enterrá-la no meio da serra, nos atrasamos. Então, nos recomendaram vir para
aqui.
Após Encarnação, lhes dar
algo de comer e beber no caminho, Salustiano rapidamente os levou para se
encontrar com o grupo.
— Ramon, são só os dois. A
mãe morreu no caminho. Onde estão os outros?
— Pai, como conheço o
caminho, foi decidido que foram e eu iria depois diminuindo o número de pessoas juntas. Como o sol logo
aparecerá, passaremos o dia escondidos e a noite sairemos.
No dia seguinte, ao chegar no
agrupamento, Isidro, foi chamado pelo Capitão, que estava com alguns chefes de
grupos e lhe disse:
— Seu irmão, ontem foi
trabalhar, mas recebemos a informação que não voltou para casa à noite. Depois,
soubemos por alguns depoimentos voluntários — disse rindo — que ele e outros
planejam uma fuga.
Isidro sabia o que
significava, depoimento voluntário, já havia participado de vários, em que por
torturas obtinham informações.
— Teu irmão é um comunista e você o está
acobertando. Temos que ter a Pátria acima de qualquer coisa, até da família. Acima da Pátria,
somente Deus. Você o tratou de libertar para que fugisse. Não estará você
envolvido na fuga de outros, também?
— Meu comandante, eu sempre mostrei minha lealdade
nas batalhas que lutei. Coloquei a Pátria acima de tudo, inclusive da minha
vida.
— Prove tua lealdade. Trate de sabe onde ele e os
outros possam estar, caso contrário, iremos atrás desta informação
junto a teus pais.
Isidro saiu desesperado. Devido ao esquerdista
do seu irmão, seus pais poderiam sofrer represálias e quem
sabe torturas. Ocorreu uma ideia, como ficou combinado que seu irmão fugiria no
dia anterior, dirá que após algumas verificações, soube que ele e outros, estão
se reunindo nas ruínas da velha casa de campo. Pensou, quando chegarem
não encontrarão ninguém, ou encontrarão outras pessoas, mas haverá vestígios de
que estiveram por ali.
Feito isso foi para casa,
pois se sentia cansado pelos dias de batalhas e andanças na serra, somado a
forte tensão envolvendo seus pais e irmão. Chegando em casa encontrou Paco,
amigo de infância que pertencia ao mesmo agrupamento. Convidou a entrar para
tomar um copo de vinho. Sentaram a mesa para beberem, enquanto seu pai estava
por lá e perguntou pela família a Paco, que respondeu com generalidades.
Paco virou para pai de Isidro
e lhe disse:
- Dom Salustiano, colocaram teu filho na parede por causa de
Ramon. Sabem que o comunista do teu filho está fugindo com outros e cobraram o
Isidro para dizer onde estavam, ou vinham buscar a informação com o senhor e
dona Encarnação. Teu filho acabou obtendo a informação. Serão presos nas velhas
ruínas da casa de campo.
Isidro. notou na hora que seu
pai ficou lívido e nervoso. Com uma desculpa da necessidade de cuidar de algo, saiu.
Sentindo-se preocupado e tenso, tratou de terminar a conversa e foi procurar
por sua mãe na vizinha, onde veio saber que seu irmão não tinha ido embora no
dia anterior, mas sim, iria naquele. Desesperado, saiu rapidamente em direção as ruínas da casa de
campo, onde já poderia ter chegado o pelotão em busca do pessoal, que por lá
poderia estar escondido.
Ao se aproximar ouviu um
tiro. Correu. Encontrou seu pai ferido no chão. E ouviu um dos soldados
dizendo:
— Esse velho filha da puta veio avisar os
vermelhos para fugirem. Quando chegamos, estavam correndo para o campo. Pegamos
ele que tentou fugir. Merece morrer.
E em frente de Isidro, que
não teve tempo de intervir, meteu um tiro na cabeça do ferido.
— Não, não, é meu pai.
Possesso se atirou contra o atirador,
derrubando-o. Outros o seguraram.
— Filho da puta é meu pai. Ele não é vermelho.
— Para, não vem com lenga, lenga. Ele veio avisar
para fugirem. Se não fosse por ele, teríamos presos todos.
Ramon, escondido com os dois
rapazes, em uma passagem de água que ficava abaixo do nível da estrada, escutou
e viu o que ocorreu. Sua reação foi de levantar e correr para o pai. Os jovens, percebendo
o que iria fazer, o seguraram. Abafando o choro,
colocando junto a boca uma sacola de pano que levava, se maldize por ser o causador da
morte do pai. Chorou ódio contra o irmão que fazia parte dos assassinos. Chorou
a dor que a mãe teria.
Conseguiu fugir de madrugada,
indo para Barcelona e quando esta caiu nas mãos dos fascistas, se refugiou na
França. Depois de um tempo, quando a França estava tomada pelos nazistas, conseguiu ir
para a Inglaterra, onde vive até hoje.
Isidro, ao ver o pai ser
morto, sentiu uma pontada de loucura. Fora ele que denunciaram a localização. Em
uma forma de amenizar sua culpa, a transferiu para irmão. Não fora por ele com
suas ideias esquerdistas, não haveria ocorrido o que ocorreu. Por culpa de seu irmão, o pai fora
morto. Se não fora suas ideias revolucionarias, seus pensamentos liberais, e
seu envolvimento com grupos contrários a guerra santa que libertava a Espanha, nada
daquilo terá ocorrido.
Teve que encarar sua mãe e
numa história um pouco alterada, contou a morte do pai. Encarnação, não gritou,
não chorou. Entrou em um mutismo e num olhar perdido no nada, durante semanas.
Só pediu ao filho, que trouxesse o corpo do pai, para ser decentemente
enterrado e não jogado numa vala comum.
No enterro não foi ninguém da
cidade. Não queriam serem vistos junto a uma pessoa, mesmo que morta,
estigmatizada por suas opiniões e posições. Muitas outras mortes, por
fuzilamento, ocorreram nas semanas seguintes. Depois, como um véu, baixou o
silêncio na cidade. Ninguém queria relembrar qualquer fato do passado e
principalmente os mais recentes.
Um grande ódio cresceu no
coração dos dois irmãos, que até aquele momento, por cerca de 40 anos não mais
se comunicaram. Ramon mandou algumas cartas a sua mãe, que raramente respondia. Queria que fosse
morar com ele na Inglaterra, mas nunca respondeu aceitando. As cartas dela
relatavam coisas do dia a dia, sem nenhuma importância e em nenhum momento os
sentimentos que vivia. Recebeu, somente uma vez, carta do irmão, informando em
uma linha que a mãe morrera, não dizendo quando e nem como.
Agora, ali estava Ramon, 40
anos depois, aguardando o irmão passar um café, no palco onde o esfrangalhar da
família ocorreu. Uma foto do casamento dos pais numa moldura, em um dos cantos
da sala, fez subir um nó na garganta, onde se acumulou em silêncio, com
lágrimas que queriam escapar dos olhos.
— Ramon, aceita uma copita
com o café?
— Sim.
Os dois tinham dificuldade de
se olharem, de se falarem. Um silêncio pesado baixou no ambiente. Na cabeça de
cada surgia, o que dizer, o que fazer. Ramon, que o havia procurado, resolveu começar:
— No dia da morte do pai, ele
veio me avisar, que você, pensando que eu já havia ido, denunciou o nosso ponto
de encontro. Só que sabia que eu ainda estava por lá. Era eu e mais dois
jovens. Saímos rapidamente, mas logo chegou a tropa nos procurando. Não
podíamos correr pelos campos, seríamos vistos. Nos escondemos em uma passagem
de água antiga, que passa a maior parte do tempo seca e encoberta de mato, um
pouco abaixo da estrada. Só quem conhece sabe onde está. Acredito que você a
conhecia. Daquele ponto eu tinha total visão da frente das ruínas. Vi e ouvi o
que aconteceu.
Nesse momento, os olhos de
Isidro se arregalaram, pareciam querer sair da órbita. Não disse nada, mas o
seu rosto e sua postura mostraram estar em choque. Ramon, notou o grande
conflito que começou a ocorrer dentro dele e que se notava em todo o seu ser.
— Éramos jovens e nos
deixamos levar pelas emoções e posições que considerávamos corretas. As minhas,
por toda a minha vida, me deixaram tranquilas. Participei, ajudei,
indiretamente lutei, mas em nenhum momento transgredi a dignidade de um ser
humano. Não sei das tuas atitudes. As morais, boas ou más, estarão
dentro de você e te perseguirão por toda a vida. As políticas, agora que a
Espanha se abre, e que em algum momento, exporá suas feridas, a história
julgará.
Isidro nada falava. Algumas
gotas de suor escorriam pela sua fronte. Era palpável seu choque. O que
imaginava ser somente um segredo seu, era conhecido pelo irmão. Escondera para
a mãe, mentira para os vizinhos e obrigara o silêncio dos companheiros do pelotão.
Naquele momento, sentimentos de vergonha, arrependimento e frustração correram
pelos seus pensamentos e coração.
Retomando folego e coragem,
Ramon, olhando fixamente o irmão, continuo:
— Carreguei, por muito tempo, dentro de mim, ódio
extremo por você, culpando-o pela morte do pai e a grande dor da mãe. Porém, o
amadurecimento e o avaliar da história, estando fora, me permitiram ver, que
interesses, que estavam acima dos desejos do povo, se valeram dos conflitos que
haviam entre a população. Aproveitaram para dar margem de se expandirem e
colocaram uns contra os outros, possibilitando em muitos momentos, que o lado
bestial de muitos aflorassem.
Calou-se. O irmão com olhar
para o chão, o corpo curvado pelo peso dos fatos, nada falava. Ramon,
permaneceu um tempo calado, observando a mudança que se dava no outro. Sentia um grande alívio
por conseguir dizer o que precisava, mas, ao mesmo tempo, uma
tristeza, por ver alguém que por anos fora seu companheiro e a quem respeitava,
por ser o mais velho, desfazendo-se a sua frente.
— Venho para te dizer que te perdoou, como tratei
de me perdoar. Quero morrer sem carregar este grande peso.
Isidro, continuou
permanecendo quieto. Após um tempo, Ramon, não sabendo
o que mais dizer, levanta e estende a mão se despedindo.
Ao entrar no carro, pelo
retrovisor, vê um homem velho e acabado. Ali estava uma pessoa a quem não
conhecia mais.
— Espero, poder voltar um dia e abraçá-lo — pensa.
EPÍLOGO
A guerra civil espanhol
dividiu o país em dois, colocando amigos, famílias, filhos e irmãos em posições
contrárias. Em uma Espanha de 25 milhões de pessoas, morreram durante a guerra
cerca de 500 mil, segundo números oficiais. Após a guerra, no extermínio de
pessoas com posições contrárias aos ganhadores, mais de 200
mil foram presas e sumariamente fuziladas. Fora as que permaneceram presas em campos
de concentração ou em trabalhos forçados. Sem contar as centenas de milhares
que se exilaram pelo mundo afora. A grande maioria eram jovens. Além da grande
perda humana, houve a perda de potencialidade pessoal e profissional, afetando
a futura recuperação do país. Ocorreram quebras significativas nas estruturas
industriais, residências, hospitalares, nos campos e nos diversos fluxos que
permitem um país viver.
Durante anos, o país viveu
medo e fome. Medo por temerem que descobrissem relações de amizade, parentesco
ou mesmo de atuação em atividades no período anterior. Medo de denúncias, às
vezes, por desavenças passadas ou inveja. Houve supressão das liberdades políticas e de
informação.
A fome persistiu duramente nos
anos 40. O sistema de racionamento, só veio a ser desativado completamente no
começo dos anos 60, ou seja, mais de 20 anos após o fim da guerra.
Quando se pede intervenção
militar, o que se pede, e sublevação a ordem constituída. Quem diz que todos aderirão?
Podemos ter um conflito entre forças militares ou conforme a amplitude, uma
guerra civil. A espanhola, usada aqui de exemplo, mostra aonde se pode chegar.
Em todas as guerras, passadas e presentes, observamos que no homem, há uma
besta humana, presa por uma simples tramela. Quando se solta quanta insensatez,
desumanidade, quantas atrocidades.
A história contada é real e
extremada. Esperamos que não tenhamos que passar por experiências similares.