Era um negro avançado na
idade. Tinha os olhos esbranquiçados pela catarata, cabelos brancos ralos e
barba amarelada de nicotina. Ninguém sabia ao certo sua idade. Muitos diziam
estar nos noventa. Sua pele negra, era encarquilhada, mãos grandes que denotavam
terem sido exigidas e uma tranquilidade no olhar e no falar. Era um gaúcho de
quem sempre se ouvia palavras boas e sábias. Todos os conheciam por Seu Nôno. Era encontrado
com facilidade na venda e boteco do Genoíno, paraibano antigo no pedaço,
bastante conhecido por vender fiado, mas que em determinados dias, quando a
burra estava vazia e tinha contas para pagar, tornava-se mal-educado nas
cobranças dos clientes pendurados. Depois passava, e se tornava um homem
sorridente e brincalhão. No fundo, era um bom coração. Sua mercearia/boteco era
a única naqueles rincões. Era bastante concorrida. Seu Nôno aparecia por lá
umas horas antes do almoço, como dizia, para tomar uma canha e abrir o apetite, além de dar
uma pitada no seu cigarro de palha. Hábitos, que apesar da idade, não havia perdido.
Sempre havia por lá, uns trabalhadores do campo, que quando não traziam suas
marmitas, aproveitavam o bom preço, do prato feito do boteco. Se encontravam,
peões e motoristas de caminhões de bois, que normalmente,
vinham lá das barrancas do Rio Paraná. Quando havia um barriga verde ou um
gaúcho, rolava uma roda de chimarrão no meio das prosas. Cuia descansando, com
água morna, para erva inchar, depois, lá ia a cuia e a bomba, tomando o cuidado
para a roda ser à direita do cevador. O importante era ouvir o roncador no fim
do mate. Quando era um tereré, o mais certo que eram paranaenses ou do Mato
Grosso. Numa das tarde Seu Nonô resolveu ir à venda, no fim do
dia, para tomar a fresca. Não fora pela manhã em razão do calor. Chegando, por
lá havia uma fogueira onde espetos de carnes estavam assando. A roda estava
animada. Eram peões que haviam trazido uma tropa de perto, e estavam
aproveitando o pernoite. Prepararam o feijão-tropeiro
e colocaram a carne na brasa. As bebidas, compravam no boteco do Genuíno. Uma viola
tocava e uns e outros cantavam músicas que traziam a saudade
de casa e do amor que por lá ficou. Chamaram Seu Nôno para se juntar. Os
causos rodavam. Uns tristes, outros alegres, outros pícaros.
-
Seu Nonô, vamos conversar, conta algo pra nós.
Após
uma pigarreada começou:
—
Bueno, nos meus vinte anos eu era um peão. Naquela época não tinha essa de
caminhão. O gado era tocado de cima de lombo de cavalo, fizesse frio, chuva ou
calor. Era um trabalho duro. No final do dia só restava estender a manta e
dormir após uma talagada, um carreteiro ou um tropeiro de janta. A alegria era
quando chegávamos nas corrutelas. Era uma festa, pois éramos uma novidade para
eles. Quando podíamos, ficávamos mais de um dia. À noite, era fogueira, baile, gaita,
uma branquinha, viola e dança. Numa delas, na fronteira de São Paulo com Mato
Grosso, onde ficaríamos mais de três dias para descanso da jornada, nosso
destino era Dourados, após, deixarmos os bois em um mangueirão, apeamos dos
cavalos e logo vieram mulheres com moringas nos servir água fresca. Entre elas
havia uma gaúchinha, minha conterrânea, de olhos azuis, cabelos negros como a
graúna e um sorriso encantador, que olhou para mim e veio me
servir. Seu nome era Rosita. Sua família era de Alegrete e estavam por lá.
- O senhor é
gaúcho? Nem parece, perguntou um dos ouvintes.
– Tchê não diga
isso. São muitos anos longe daquelas plagas, mas, não deixo de ser, apesar de
morar há muito tempo nestas bandas. Entonces, naquele dia, durante os momentos
de descanso e na hora do almoço, que repartimos com algumas famílias da cidade,
meus olhos e os da morena não paravam de se encontrar. À noite, foi armado um
baile, com gaitero e viola. Veio gente de envolta, a pé, de cavalo, de carroça.
Tinha farofa, carne de sol, pamonha, cachaça, chimarrão, tereré e muita
alegria. Foi uma baita festa. Até assaram um capado. Dancei o quanto
deu com a gauchinha. Ocasionalmente, tinha que trocar de par para
não chamar muito a atenção, os pais da prenda estavam na festa e me
olhavam enviesados. Ela tinha um corpo suave, minha mão de peão tinha que tomar
cuidado, ela era macia como um pelego. Tinha um perfume de jasmim. Trazia uma
margarida presa ao lado direito do cabelo, coisa de solteira. Seus olhos eram
mais lindos que o céu numa campina em dia de sol. Tinha mãos delicadas, suave
como penas de passarinho. Quando se encostava em mim, meu
corpo todo se aquecia, minha boca ficava seca e eu perdia as palavras. Sua fala
era macia, espanholada, o que me fazia rir muito.
Aquela
noite fui deitar nas nuvens. Não conseguia dormir. Todo meu corpo parecia
sentir a presença dela. Sua imagem não saia dos meus olhos.
No
dia seguinte mal tive tempo de a encontrar, pois, tivemos que cuidar dos bois e
da cavalhada. No final do dia sai a procura. A encontrei, perto de uma cacimba,
pegando um balde de água. Ajudei, mas não me deixou chegar perto de sua casa.
Seu pai notara que dançáramos muitas vezes na noite anterior. Marcamos um
encontro mais a noite em um capoeirão perto do local. Uma alegria e uma dor no
estômago. Fui me lavar, procurei a melhor camisa que tinha no meu bornal e uma
calça menos suja. Passei um sebo nas botinas e tirei o pó do sombrero.
De vez em quando, Seu Nonô dava uma tragada no palheiro, uma bicadinha
na branca e continuava sua história. A atenção era grande, e um sorriso se
apresentou nos lábios de muitos prevendo o que vinha pela frente.
- Buenos, a prenda
apareceu muy linda, em um vestido rodado rosa com uma blusa branca, mostrando a
graciosidade dos ombros e com uma faixa na cintura. Trazia um olhar encabulado,
que quando me mirava mostrava uma luz de ternura. Sua pele branca, contrastava com
a minha morena de origem. Peguei suas mãos, senti ela tremer. Que diferença, as
minhas ásperas da lida e a dela delicada como pétala de flor. Contei da minha
vida sem parada, do pai e da mãe que ficaram em casa e do desejo de ter meu
canto e alguém me esperando. Falou que seu pai era guasqueiro e desejava fazer
vida no Mato Grosso, onde tinham alguns parentes. Os pais não gostaram de nós
dois dançando tanto, na noite passada.
- Sou gaúcho como tu!
É minha cor, ser um chiru?
Com os seus olhos
úmidos de sentimento, disse me achar guapo e ter se encantado com meu trato,
durante o baile. A conversa seguia, quando o cheiro de chuva chegou, e logo
após, o céu começou a faiscar e veio uma chuvarada. Nos abrigamos debaixo de um
cambará e trouxe a morena para junto do peito. Sua respiração ofegante, seus
braços em torno de mim, tudo me levou a trazer sua boca para junto da minha.
Posso dizer que beijo de china nenhuma chegou perto do sabor daquele. Era úmido
de desejo, suave e cheio de calor. Deixei de ser eu, e me senti perdido, em um
momento, fora do mundo. Algo corria por todo meu corpo e chegava no meu
coração.
- Aí Seu Nonô! Passou
a guria nos cobres! Muitos riram e fizeram chistes.
- Seu moço, aquilo
era amor. Foi algo que nunca senti na vida. Uma vontade de colocar a prenda na
garupa do meu bragado e buscar um canto para juntarmos os trapos e depois ter
uns guris. Era amor. Nunca me senti tão forte, e ao mesmo tempo com medo de ter
aquela vida junto da minha. Até a gauchinha ir para casa foram momentos de
beijos, carinhos e promessas. E depois pra dormir?
Era a cabeça girando, cheia de ideias e desejos. A mulher que sempre
sonhei. Foi uma noite larga.
- Seu Nonô. Falou com o sogrão? Foi cabra-macho?
- Não. Não havia
combinado nada com a guria. Minha cabeça estava um tropel
de ideias. Na tarde seguinte, que seria a última que ficaríamos por ali, após a
lida do dia fui procurar a morena. Estava atrás de sua casa debulhando milho. O
sol de final de tarde banhava seu rosto e transparecia suas formas,
atravessando o vestido simples e fino, permitindo visualizar a rigidez de seus
seios tentando perfurar o tecido. É uma imagem que nunca sairá de minha cabeça.
Ficamos de nos ver mais tarde atrás do bamburral. Ela chegou, como a noite anterior,
parecendo uma deusa, com seu cabelo em trança tendo flores em volta. Nossos
beijos e carinhos tomaram ímpetos que levaram a nos deitar na relva, e sobe um
céu estrelado nos entregamos ao amor. Ao final, o arfar de nossos peitos, tendo
ao fundo o coaxar que vinha da sanga de água e o cantar dos grilos. A lua em quarto crescente havia
despontado no horizonte, dividindo o céu com as estrelas. Contou que seu pai
estava desconfiado com alguma coisa, falou a esmo que não gostava de sangue
índio ou qualquer outro, pois, não dava bom futuro. Tratando de dar a entender
que não gostara de mim. Combinei que acompanharia a entrega do gado, iria até
em casa, receber o que de direito do patrão, pegar minhas coisas, despedir dos
pais, e voltar para falar com os seus. Com seus consentimentos começaríamos
nossa vida juntos. Em duas semanas estaria de volta. Na manhã seguinte, sob um
frio madrugadeiro, com a faixa em
volta da cintura contendo a longa faca de ponta e o amolador, a guaiaca, coberto
de poncho pela friaca, sombrero, botas,
nazarenas de ferro, junto com os outros toquei a tropeada para viagem. Não parecia estar montado no meu baio e sim em nuvens. Ela não
saía da minha cabeça. Seus olhos, o sorriso e a maciez da pele. Lembrava o sabor dos lábios. Ah, e
o calor do seu corpo junto do meu! Eram imagens, sentimentos que corriam desembestados por mim.
- Pai, mãe, vou me casar.
- Mas como meu filho, conta isso, diz mãe.
Falei da mulher que roubou meu coração. Contei toda a história. Foi
alegria, emoção e tristeza que senti ao mesmo
tempo, no pai e na mãe. Depois de alguns dias, com o
dinheiro na guaiaca e meus poucos pertences na mala de garupa, me despedi. Um
forte abraço do velho, bençãos, abraços e muitas lágrimas de minha mãe. Desejo
de sorte dos irmãos.
- Volto com ela ou fico por lá e monto casa.
Seu Nonô, que já havia picado seu fumo com a faca que levava na cinta,
durante a conversa, enrolou seu cigarro de palha, bebericou mais um trago,
aspirou seu palheiro e soltou a fumaça. Todos ficaram em silêncio aguardando,
ansiosos a continuidade da história.
Lá ia eu matutando, o que dizer:
- Seu Mariano, dona Rosa, gosto muito da
sua filha e quero me casar. Venho buscar a autorização e benção. Sou
trabalhador, posso logo ter minha casa. Nos primeiros momentos, fico em casa de
pai, ou posso encontrar por aqui um lugar para morar.
Durante a viagem, fui imaginando miles de conversas com os velhos. Tinha
hora que eu suava, hora que me dava vontade de chorar e em outras, eu ria de
alegria com eles concordando. Imaginava a festa, a prenda dançando a noite toda
nos meus braços. A alegria de todos. A noite, o amor. Aí, não posso nem falar o
que passava pela cabeça.
Risos de todos, chacotas, comentários bons e outros apimentados.
- Seu Nonô quer uma carne?
- Gracias, mas não. Paisanos, tinham se passado cinco semanas. Quando cheguei não encontrei a família. Informaram que uma semana depois de partirmos, despediram dos
amigos, contando que seguiriam o destino que haviam planejado. Ir pro Mato
Grosso, quem sabe chegar até Cuiabá. Ustedes, entendam que na hora vi o mundo desmoronando de baixo dos pés. Tudo o
que sonhei aquelas semanas, parecia água escorrendo pelos dedos. O amor, o
casamento, a família, tudo naquele momento, se tornou bruma, não me permitindo
ter alento para o amanhã. Foi uma noite longa com o peito apertado, lágrimas
escorrendo pelo rosto e escuridão na alma. Estava derreado. Quando amanheceu,
como o sol que despontava, a frouxidão da alma começou a se dispersar e com dor no coração resolvi
procurar pela morena.
Sai
a campear. Peguei o caminho provável, parando em cada corrutela e perguntando. Voltei
por outras bandas. Rumbei pro sul do Mato Grosso, depois, voltei pro Norte,
chegando a Cuiabá. Voltei por Goiás, pedaço de Minas, por São Paulo e o Paraná.
Andei pelas coxilhas do Rio Grande. Foram cinco anos.
Parando um pouco para algum trabalho. Aprendi doma de cavalos com um guarani
quando entrei em terras paraguaias e virei domador, quando a lida exigia. Fui
cacimbeiro, cuidei de cercas, de animais, no cerdear, tropeiro nos caminhos que
precisava trilhar. Em algumas paragens, trabalhei em bolichos, esperando
encontrar entre os viajantes, que por lá passavam, notícias que me dessem uma
luz. Pelos caminhos encontrei muitos paisanos que me deram ajuda e notícias,
mas muitos outros, que só na peleia acertamos diferenças. Quantas noites dormi
borracho. Pousei em beira de estrada, ao relento, em galpões, em posteiros, em
cima de cama de arreios, em qualquer paragem. A cada parada, sem resultado, o
coração se encurtava. Era uma tristeza tão grande que por mais que o lugar
fosse alegre e cheio, eu me sentia só. Não havia roda de gaiteiro ou
de violão que me trouxesse sorriso. Qualquer tocar de cordeona me trazia um pesar
na alma. Deitei em cama de chinas, onde o que fiz foi procurar olhares e bem-querer que só
estavam dentro de mim. Antes do despertar da aurora tinha que ir, me
afastar daquele corpo, daquele lugar, pois, a tristeza de não ser meu
bem-querer, invadia minha alma e me sentia enraivecido comigo mesmo. Tomado de dor, me perdia na
neblina do alvorecer, para seguir em uma busca inconstante. Não sabia o que
fazer da vida. Virei um estradeiro sem rumo certo. Fui levando a vida como Deus
quis.
Passados
cinco anos, acabei voltando para casa de pai. Ele e mãe haviam morridos e meus
dois irmãos casados. Um deles vivendo no local e o outro ido lá pras Minas
Gerais. Não tinha mais nada a fazer por ali. Toquei meu caminho pro Mato
Grosso.
Ao
final, fiz parada com meus caraminguás em uma fazenda próxima à Aquidauana.
Comecei de peão, realizei algumas domas, sabia um pouco de remédios, de
benzeduras, cuidava de bicheiras. Coisas que aprendi com uns castelhanos, nas
minhas andanças e com isso, atendia nos problemas corriqueiros. O patrão, que era da
capital, mas passava muito tempo por lá, foi tomando confiança em mim. Acabei me arrinconando por
lá. Como ele gostava de matear na boquinha-da-noite, eram horas de charla,
trocando histórias e informações. Acabou me ensinando a administrar a fazenda,
comprar e vender gado e cavalo, o que, com meu conhecimento não foi difícil.
Fizemos um arreglo e acabei me transformado em seu braço direito.
Cuidava
de tudo, inclusive dos empregados. Minha casa era na fazenda. De vez em quando
visitava umas chinas. Churrasqueava com a peãozada, com muita
roda de viola e cantoria. Carteava. Apesar de cercado de pessoas, ustedes não
imaginam a dor da ausência de um amor para no final do dia abraçar, prosear
sobre o dia e a gurizada. Na cama, poder estender a mão e sentir a maciez e o
calor de um corpo querido de mulher.
Seus
moços, quem tem, valora muito. No hay alegria maior na vida. Ter uma família que encha o coração. Não se
deixe ficar só, na vida. Hoje a mulher, os filhos, amanhã os companheiros ou companheiras deles, os netos. Todos são como gotas de chuva regando teu viver. O
coração é como horta, precisa de semente, água e sol.
- Genoíno, traz
mais uma canha, pediu Seu Nono, continuando a conversa. Em determinada época, apareceu por lá um peão chamado Raimundo. O muchacho era bom de trato e
interessado. Não tinha poréns para nada. Como
levava jeito com os cavalos, comecei a ensinar a arte da doma, que aprendi, no
passado, com velho índio. O pessoal o respeitava nesse assunto. Era macanudo.
Morava na fazenda durante a semana e no final da semana, com o resto do
pessoal, era levado na carroceria de um caminhão para a cidade, onde tinha
casa. Uma tarde, em que o mormaço estava forte, eu estava sesteando, tomando um
amargo, ele me procurou, pois, recebera notícia que sua mãe estava mal,
possivelmente necessitando ser levada para o hospital da cidade próxima.
- Como pensa em ir, visto
que a fazenda fica a 6 km da cidade?
- O Joca vai me
emprestar a moto.
– E tu vai levar
de moto ao hospital, se precisar?
– Não sei, depois
eu vejo.
Resolvi
levar na caminhonete da fazenda. Morava com a mãe, a
mulher e a filha em uma casa modesta, branqueada com janelas azuis,
diferente da maioria da redondeza, o que demonstrava cuidados. A frente era
florida e janelas com cortinas coloridas, o que, dava um belo contraste, mostrando
mão feminina. A sala com móveis simples e bem arrumada. Tinha um rádio sobre um
armário, toalhinha na mesa de centro e nos braços do sofá. Aguardei na sala,
enquanto ele se dirigiu ao quarto para falar com a mãe, e sua mulher me oferecia um café,
enquanto a filha de 4 anos, um encanto de guria, encarapitou no meu colo e
tagarelava comigo. Voltou dizendo, que a mãe se encontrava melhor e que não
queria ir para o hospital, pois estaria dando trabalho para o patrão dele.
– Deixa eu prosear
com ela.
- Permiso? - perguntei ao entrar no quarto.
- Se aprochega, seu moço.
Tossindo
me perguntou:
– O senhor é o
chefe de meu filho?
- Ele trabalha
comigo. É um ótimo peão.
- Puxou o pai.
No
quarto, encontrei uma mulher de cabelos negros, com alguns brancos, entre meio,
amarrados em coque. Pelo pouco que a penumbra permitia ver, notei um rosto
brando, com sulcos adquiridos na vida, com aparência flaca. No ar havia um leve
cheiro de água de jasmim, o que fazia com o fresco do
quarto um ambiente agradável, que se quebrava por um leve tossir. Levantou o
rosto, o que possibilitou iluminar seus olhos. Aquele olhar me deixou
atarantado, minha cabeça girou como bagual no curral e pedaços da vida passaram
pela cabeça, descompassando o coração. Meu corpo gelou, como se o minuano
congelasse meus ossos.
Seu
Nonô deu uma parada, fixou o olhar no vazio do horizonte, como se estivesse
vendo a cena de novo. Um silêncio, só quebrado pelo crepitar do fogo, ressaltou
a expectativa do relato. Cortou o seu naco de fumo no silêncio do momento,
ajeitou na palha, pediu fogo, deu uma pitada e pigarreou. Alguns, viram lágrimas
nos olhos do velho Nonô.
- Era ela, seu Nonô?
- Chê, era ela. O
mesmo sorriso com uma covinha no canto, o mesmo olhar, o jeito de afastar o
cabelo. Sua voz era madura, um pouco quebrada e arfada pela tosse. Paisano, era a
minha Rosita!
Fôlegos
se soltaram, pequenos risos, comentários, correram no grupo.
-
Pela penumbra do local, ela não me reconheceu.
- Se a Senhora não
for para o Hospital eu tenho que chamar o doutor aqui.
O
filho e a mãe disseram que não precisava. Agradeciam a minha ajuda até ali.
Para precaver, passei no doutor, que costumava atender o pessoal da fazenda,
pedi que passasse por lá e que solicitasse na farmácia os remédios que
precisasse, depois eu pagaria.
Voltei
para casa, parecia ter saído de uma peleja. A dor vinha do coração, me dava
como um nó nas tripas e terminava num amargo na boca. De outro lado, meus
olhos, queriam escorrer pelo rosto as lágrimas que o tempo acumulou. Vivi
momentos de alegria e de tristeza, naquela noite. Não dormi. Eram imagens e
pensamentos galopando pela cabeça.
Ao
voltar no dia seguinte, Raimundo me agradeceu, a não mais poder, pelo doutor e
pelo tratamento. A mãe estava com pneumonia e o doutor receitou injeções, que o
farmacêutico estava dando. Disse que iria pagar com trabalho. Informei que não,
pois seria por conta da fazenda. Ficou constrangido com a resposta.
Por
uns dias fiquei assuntando o rapaz. Seu rosto, onde via traços de Rosita, seus
trejeitos, inclusive tinha um sorriso parecido. Seus olhos eram azuis como da mãe, mas
tinha a pele morena e queimada dos campos. Despacito, fui me
aprofundando com o muchacho. Soube que o pai fora caminhoneiro. Teve uma
pequena carreta de gado. Quando a viagem era por perto, o colocava na boleia
para irem juntos. Com que alegria contava daquelas viagens, ao lado dele, e dos
momentos nas fazendas com os peões. Toda vez que seu pai voltava era só alegria.
A mãe fazia um almoço para festejar, com ele e o pai tentado ajudar na cozinha,
só atrapalhando e a mãe ralhando. Os dois faziam que brigavam
e no fim se abraçavam e riam, contava ele. O pai era bem mais velho que a mãe.
Segundo o que ela contava, era bem nova quando casou, forçada por seu pai. Não
tinha amor pelo futuro marido. Engravidou logo que casou. Com o passar dos
anos, pelos cuidados e o bem-querer que tinha por ela e por ele, surgiu uma semente de amor.
Sempre lhe dizia:
-Case
com quem amar. Casei forçada, apesar que peguei grande estima por teu pai, mas
de jovem, meu coração sofreu muito por um amor que não pude ter, mas que sempre
ficou guardado no fundo do meu coração. Hay lembranças que não se apagam.
-
Creio ser por esse amor que às vezes vejo minha
mãe com olhar perdido e com lágrimas.
Soube
que seu pai falecera alguns anos atrás. A mãe vendera a casa e a carreta e se
mudaram para a região, pois, sua mulher tem família por aqui e sempre quiseram
morar por perto.
Empecei a ter
um querer maior naquele peão, por ser filho de Rosita e por que podia ter sido
meu filho. Eu o olhava na lida e além de ver a mãe eu me via nele, quando era
jovem. Seu comportamento, o trato com os animais, a doma, o jeito de parar. Matutando aquilo tudo,
fui me aperreando. Tive uma coraçonada. Resolvi conferir no seu
registro de trabalho a data de nascimento. Contando os meses de gravidez, ele
podia ser meu filho, pela proximidade da data que estive com Rosita! Aquela
ideia começou a me deixar aperreado. Não me achava no direito de me intrometer,
se era ou não, e nem de abalar a imagem que ele tinha do pai. Apesar da gana de
saber, fui mantendo aquilo dentro de mim. Cada vez mais, eu e ele mantínhamos
um entendimento, que parecia de pai e filho. Apesar da dúvida, eu estava
feliz com a relação que tínhamos.
Um
dia após tanto me convidar, aceitei almoçar em sua casa. Depois, me arrependi. Depois, me encorajei. Depois, fiquei com medo do choque que sua mãe poderia
ter. Quem sabe, não me reconheça? Situação muy difícil. Entonces, após, uma
grande batalha comigo mesmo, resolvi ir.
No
dia, levantei com o estômago na boca, ansioso. Estava mais tenso que em doma de
cavalo xucro. Parecia me sentindo como frenteando um estouro de boiada. Tratei
de me pôr na estica. Peguei um bom troço de goiabada cascão, feita na
fazenda, para regalo e não chegar com as mãos vazias.
Raimundo
e a mulher me esperavam na porta e me fizeram sentar na sala.
- A mãe já vem, tá
terminando o almoço. Vai ter costela na panela com arroz carreteiro. Depois
um belo pudim, especialidade da velha.
-
Que bueno.
A
Flor, que no início estava vergonhosa, logo se
aboletou no meu colo, mostrando desenhos que havia feito. Um encanto de guria. Quando
me chamou de vô, querendo mostrar a sua arte, fiquei por dentro feliz.
Tomamos
uma branquinha para abrir o apetite com uns torresmos. Reparei, em fotos em
cima do armário e os mesmos cuidados na sala da outra vez.
-
Seu Nôno esta e minha mãe.
Ela
entrou na sala e quando ia me estender a mão, parou. Seus olhos se avivaram em
um olhar de surpresa. Começou a perder a cor. Se segurou na mesa e sentou na
cadeira, sem parar de me olhar e dos seus olhos começaram a correr lágrimas.
Era um choro baixo, contido.
- Mãe, que foi?
Não está bem?
Enquanto
seu filho se abaixava junto a cadeira, a nora correu para buscar um copo d’água
e a neta, vendo a vó chorar, também, começou a chorar e a
chamar por ela. Tomou o copo d’água e se levantou.
Eu
me aproximei, não podendo parar de mirar seu rosto. Os olhos, a boca, os traços era a Rosita das
minhas lembranças. Ela se jogou em meus braços chorando e a aninhei em meu
peito, e junto comecei a chorar. Em volta todos atontados sem entender o que
ocorria.
- Minha linda, eu
estradei um bom tempo te procurando. Fui por muy lejos. Nunca consegui
te esquecer. Agora te encontrei.
Após
um tempo abraçados e chorando, nos separamos com ela me dizendo o quanto sentiu
a minha falta. Que seu pai, tão logo fui embora, resolveu se
mudar, para que não pudéssemos nos encontrar.
- Filho, este é o
grande amor que te disse ter tido na minha juventude.
Contou
que rumaram para Cambé, norte do Paraná, onde seu
pai tinha um amigo e queria que casasse com ele. Esse homem era Bernardo, pai
de Raimundo. Era um viúvo, bem mais velho que ela e sem filhos.
- Pai, gosto de outro homem.
- Besteira. O que
vale é o que eu decido, está decidido.
O
pai a obrigou a casar, pois iria para a Amazônia, onde o
governo estava dando transporte e terras. Era um lugar muy lejos e antes,
queria deixar a filha encaminhada. Rapidamente se casou. Os pais se foram e
nunca mais os viu. Pelo trabalho do marido, mudou várias vezes de cidade, o que
deve ter dificultado minha procura. Bernardo morreu alguns anos atrás. Do meu lado falei da busca por
cinco anos. Dos lugares que fui, das dores que senti. O quanto sofri na sua
busca.
O almoço foi cruzado de conversas, de risos,
de momentos de silêncio, de umidade nos olhos. Depois no sentamos na sala.
Trouxeram os avios de mate e a conversa se estendeu. Durante aquele tempo todo,
eu tinha preso no peito a grande dúvida que gostaria de saber. Seria Raimundo
meu filho?
Raimundo,
a mulher e a filha resolveram sair para tomar sorvete, deixando que pudéssemos
conversar. Sentei ao lado de Rosita e peguei suas mãos, olhando seus olhos,
vendo uma luz como que me chamando. Quando falava observava o movimento dos
lábios. Graciosos. Era a prenda que estava no meu coração. Não resistindo a
beijei, delicadamente, até que em um anseio preso pelo tempo a abracei e nos
perdemos no trocar de beijos, nos roçar dos lábios, pelo rosto, pescoço e
cabelos.
- Aí seu Nonô, não
deu moleza! Que paixão presa no peito!
-
Bueno, dentro de mim, continuava aquela angustia, a grande dúvida, e não
aguentando mais, perguntei:
- Tenho uma
pergunta importante a te fazer, Raimundo é meu filho? Tem horas que acho que ele se
parece comigo.
- Quando você se
foi o pai queria que não te visse mais, eu lhe disse ter me deitado contigo e
agora era sua mulher. Ele era esquentado, me bateu, me prendeu no quarto por
quatro dias, enquanto tratava da mudança. Viajamos para Cambé, para
encontrar o Bernardo, que era um amigo lá dos pampas, contou querer que eu
casasse, mas que não era mais virgem. Bernardo era um homem só, de idade e não
se importou com o fato. Casamos em poucos dias pela pressa que o pai tinha de
viajar. Em poucas semanas soube que estava grávida. Não casei amando Bernardo,
mas com o passar do tempo, pelo cuidado que tinha comigo e com o filho, foi
nascendo uma semente de respeito e de amor
- Rosita, pela
data que ele nasceu, pode ser meu filho, fruto do nosso amor!
- Eu poderia estar
grávida de você, mas da surra que levei, eu sangrei, não sei se eu perdi um
filho teu. Gostaria muito que fosse teu
filho. Queria ter um pouco teu comigo.
-
Bueno amigos, na hora foi um desencanto, mas, eu que tinha tanto medo, de após pelejar a vida
ficar só, acabei ganhando uma família. Depois de um tempo passamos a viver
juntos. Não tive um filho de sangue, mas o Patrão do céu, me deu um filho do
coração. Passamos a nos querer como pai e filho. Ele nunca veio a saber que
poderia ter sido verdadeiramente, meu filho. Rosita, morreu há poucos anos.
Que Deus a tenha. Dizem, que encontramos com que amamos, depois da morte. Não
vejo a hora de me encontrar com ela. Tivemos mais netos, veio Bernardo, nome em
homenagem ao pai de Raimundo e depois, aquele piá que vem ali, que leva o meu
nome.
- Vamo vô, a mãe tá
chamando, diz que o senhor tá demorando.
- Vamos sim
Raimundo, dá a mão aqui pro vô.
Ele
se levantou, baforou o cigarro e jogou a bituca no chão.
-
Buenas amigos, esta é minha história. Se me dão licença, vou-me andando. Até
mais ver.
O
pessoal ficou olhando se ir, de mão dada com o neto, no seu caminhar lento e o
guri alegremente lhe falando.
Ficaram
todos com os olhos parados nas lembranças. Em cada rosto um olhar de tristeza, de
saudade, de amor ou tudo junto. Há quem diga que em muitos, haviam lágrimas.
E.F.
MMMAA