sábado, 26 de novembro de 2022

SURPRESA

 


Estamos vivendo significativos impactos nos costumes, afetando os homens, na moral e na sua forma de ser. Estará ele se redescobrindo ou se distanciando da sua essência?

 

Nelson e Paula estavam na faixa dos trinta anos. Eram um casal cheio de amigos. Entre todos, tinham uma amizade mais estreita com Rubens e Sandra, que estavam na mesma faixa de idade e viviam as mesmas realidades. Afirmação profissional e financeira, postergando a vinda de filhos, para após a estabilidade de suas vidas.

Saiam com frequência para a noite e finais de semanas. Nelson e Paula possuíam um casamento de quatro anos, fruto de fortes sentimentos de amor entre eles, que surgiram após algumas frustradas ou descompromissadas relações. Sonhos, planos para a casa própria, filhos eram assuntos constantes em suas conversas.

Possuíam uma relação amorosa, sexual num bom entendimento. Provocavam-se com jogos eróticos, envolvendo roupas, momentos e locais. Nesses jogos, no objetivo de um maior estímulo, começaram a fantasiar histórias envolvendo pessoas que não possuíam rostos, mas comportamentos de erotismo e sexualidade. Num desses momentos, Nelson deixou escapar o nome da amiga Sandra, salientando sentir uma atração por ela. Ele e Paula, começaram andar por essa fantasia, onde em alguns momentos, também surgia a figura de Rubens, marido de Sandra.

A vida continuava com o dia a dia de trabalho, os relacionamentos e as amizades. Passado um tempo, Nelson começou a notar mudanças no comportamento de Paula. Estava mais amorosa, mais quente no sexo, mais sensual. Havia um novo brilho em seus olhos. Eram mudanças marcantes e isso começou a lhe incomodar. Notou que ao ligar para o seu escritório não estava e também não atendia o celular. Isso ocorria com frequência.

Em um dos dias resolveu ficar à espreita e segui-la. Ela foi a casa de Rubens e Sandra.

Não era possível! O estava traindo com um dos seus melhores amigos, nem levando em conta, a amizade com a esposa.  Já havia notado, algumas vezes, olhares de Rubens para sua mulher, mas, nunca, suspeitou que pudesse haver algo entre eles. Ficou paralisado, não tendo nenhuma reação no ato. Sua cabeça tornou-se um turbilhão.

Passou a ter dificuldades no trato do dia a dia e no relacionamento com esposa, inclusive no sexo. Paula, notava algo estranho e questionava.

Nelson, afinal, resolveu pôr a situação as claras. A seguiu em outro dia. Ela foi para seu apartamento.

 - Que hipócrita, está me traindo em nossa cama!

Aguardou um tempo e subiu. Entrou, pé ante pé, para não fazer ruido e foi até seu quarto, de onde vinham gemidos de prazer. Estava tudo na penumbra.

Notou o corpo de sua mulher nu sobre outro corpo. Foi buscando uma posição que melhor pudesse observar. As duas pessoas não notaram sua presença, pela penumbra. O pouco reflexo de luz o permitia ver lábios que se tocavam, beijos e línguas que se envolviam e corpos que se entrelaçavam. Não conseguia ver quem era. Moveu-se.

Surpresa! A outra pessoa era Sandra!

Instintivamente, acendeu a luz.

As duas mulheres assustadas se levantaram e o olharam.

Ele, meio zonzo, não conseguia pensar direito. Pela sua cabeça passava: sua mulher, Sandra, Nelson, os amigos, os corpos das duas suadas exalando sexo e erotismo. Não conseguia reagir.

Sua mulher após o susto, com um sorriso e um olhar malicioso, dirigiu-se a ele. Abraçando e beijando, começou a tirar sua roupa e a levá-lo para a cama.

- Vem junte-se a nós e realize teus sonhos eróticos.

Atordoado e nu, deitou-se entre elas.

Essa relação de prazeres e segredos durou mais de um ano, até que....... por razões profissionais, Rubens e Sandra se mudaram da cidade.

 

domingo, 13 de novembro de 2022

O VELHO GAUCHO – SEU NÔNO

 



Era um negro avançado na idade. Tinha os olhos esbranquiçados pela catarata, cabelos brancos ralos e barba amarelada de nicotina. Ninguém sabia ao certo sua idade. Muitos diziam estar nos noventa. Sua pele negra, era encarquilhada, mãos grandes que denotavam terem sido exigidas e uma tranquilidade no olhar e no falar. Era um gaúcho de quem sempre se ouvia palavras boas e sábias. Todos os conheciam por Seu
Nôno. Era encontrado com facilidade na venda e boteco do Genoíno, paraibano antigo no pedaço, bastante conhecido por vender fiado, mas que em determinados dias, quando a burra estava vazia e tinha contas para pagar, tornava-se mal-educado nas cobranças dos clientes pendurados. Depois passava, e se tornava um homem sorridente e brincalhão. No fundo, era um bom coração. Sua mercearia/boteco era a única naqueles rincões. Era bastante concorrida. Seu Nôno aparecia por lá umas horas antes do almoço, como dizia, para tomar uma canha e abrir o apetite, além de dar uma pitada no seu cigarro de palha. Hábitos, que apesar da idade, não havia perdido. Sempre havia por lá, uns trabalhadores do campo, que quando não traziam suas marmitas, aproveitavam o bom preço, do prato feito do boteco. Se encontravam, peões e motoristas de caminhões de bois, que normalmente, vinham lá das barrancas do Rio Paraná. Quando havia um barriga verde ou um gaúcho, rolava uma roda de chimarrão no meio das prosas. Cuia descansando, com água morna, para erva inchar, depois, lá ia a cuia e a bomba, tomando o cuidado para a roda ser à direita do cevador. O importante era ouvir o roncador no fim do mate. Quando era um tereré, o mais certo que eram paranaenses ou do Mato Grosso. Numa das tarde Seu Nonô resolveu ir à venda, no fim do dia, para tomar a fresca. Não fora pela manhã em razão do calor. Chegando, por lá havia uma fogueira onde espetos de carnes estavam assando. A roda estava animada. Eram peões que haviam trazido uma tropa de perto, e estavam aproveitando o pernoite. Prepararam o feijão-tropeiro e colocaram a carne na brasa. As bebidas, compravam no boteco do Genuíno. Uma viola tocava e uns e outros cantavam músicas que traziam a saudade de casa e do amor que por lá ficou. Chamaram Seu Nôno para se juntar. Os causos rodavam. Uns tristes, outros alegres, outros pícaros.

- Seu Nonô, vamos conversar, conta algo pra nós.

Após uma pigarreada começou:

— Bueno, nos meus vinte anos eu era um peão. Naquela época não tinha essa de caminhão. O gado era tocado de cima de lombo de cavalo, fizesse frio, chuva ou calor. Era um trabalho duro. No final do dia só restava estender a manta e dormir após uma talagada, um carreteiro ou um tropeiro de janta. A alegria era quando chegávamos nas corrutelas. Era uma festa, pois éramos uma novidade para eles. Quando podíamos, ficávamos mais de um dia. À noite, era fogueira, baile, gaita, uma branquinha, viola e dança. Numa delas, na fronteira de São Paulo com Mato Grosso, onde ficaríamos mais de três dias para descanso da jornada, nosso destino era Dourados, após, deixarmos os bois em um mangueirão, apeamos dos cavalos e logo vieram mulheres com moringas nos servir água fresca. Entre elas havia uma gaúchinha, minha conterrânea, de olhos azuis, cabelos negros como a graúna e um sorriso encantador, que olhou para mim e veio me servir. Seu nome era Rosita. Sua família era de Alegrete e estavam por lá.

- O senhor é gaúcho? Nem parece, perguntou um dos ouvintes.

Tchê não diga isso. São muitos anos longe daquelas plagas, mas, não deixo de ser, apesar de morar há muito tempo nestas bandas. Entonces, naquele dia, durante os momentos de descanso e na hora do almoço, que repartimos com algumas famílias da cidade, meus olhos e os da morena não paravam de se encontrar. À noite, foi armado um baile, com gaitero e viola. Veio gente de envolta, a pé, de cavalo, de carroça. Tinha farofa, carne de sol, pamonha, cachaça, chimarrão, tereré e muita alegria. Foi uma baita festa. Até assaram um capado. Dancei o quanto deu com a gauchinha. Ocasionalmente, tinha que trocar de par para não chamar muito a atenção, os pais da prenda estavam na festa e me olhavam enviesados. Ela tinha um corpo suave, minha mão de peão tinha que tomar cuidado, ela era macia como um pelego. Tinha um perfume de jasmim. Trazia uma margarida presa ao lado direito do cabelo, coisa de solteira. Seus olhos eram mais lindos que o céu numa campina em dia de sol. Tinha mãos delicadas, suave como penas de passarinho. Quando se encostava em mim, meu corpo todo se aquecia, minha boca ficava seca e eu perdia as palavras. Sua fala era macia, espanholada, o que me fazia rir muito.

Aquela noite fui deitar nas nuvens. Não conseguia dormir. Todo meu corpo parecia sentir a presença dela. Sua imagem não saia dos meus olhos.

No dia seguinte mal tive tempo de a encontrar, pois, tivemos que cuidar dos bois e da cavalhada. No final do dia sai a procura. A encontrei, perto de uma cacimba, pegando um balde de água. Ajudei, mas não me deixou chegar perto de sua casa. Seu pai notara que dançáramos muitas vezes na noite anterior. Marcamos um encontro mais a noite em um capoeirão perto do local. Uma alegria e uma dor no estômago. Fui me lavar, procurei a melhor camisa que tinha no meu bornal e uma calça menos suja. Passei um sebo nas botinas e tirei o pó do sombrero.

De vez em quando, Seu Nonô dava uma tragada no palheiro, uma bicadinha na branca e continuava sua história. A atenção era grande, e um sorriso se apresentou nos lábios de muitos prevendo o que vinha pela frente.

 

- Buenos, a prenda apareceu muy linda, em um vestido rodado rosa com uma blusa branca, mostrando a graciosidade dos ombros e com uma faixa na cintura. Trazia um olhar encabulado, que quando me mirava mostrava uma luz de ternura. Sua pele branca, contrastava com a minha morena de origem. Peguei suas mãos, senti ela tremer. Que diferença, as minhas ásperas da lida e a dela delicada como pétala de flor. Contei da minha vida sem parada, do pai e da mãe que ficaram em casa e do desejo de ter meu canto e alguém me esperando. Falou que seu pai era guasqueiro e desejava fazer vida no Mato Grosso, onde tinham alguns parentes. Os pais não gostaram de nós dois dançando tanto, na noite passada.

 

- Sou gaúcho como tu! É minha cor, ser um chiru?

 

Com os seus olhos úmidos de sentimento, disse me achar guapo e ter se encantado com meu trato, durante o baile. A conversa seguia, quando o cheiro de chuva chegou, e logo após, o céu começou a faiscar e veio uma chuvarada. Nos abrigamos debaixo de um cambará e trouxe a morena para junto do peito. Sua respiração ofegante, seus braços em torno de mim, tudo me levou a trazer sua boca para junto da minha. Posso dizer que beijo de china nenhuma chegou perto do sabor daquele. Era úmido de desejo, suave e cheio de calor. Deixei de ser eu, e me senti perdido, em um momento, fora do mundo. Algo corria por todo meu corpo e chegava no meu coração.

 

- Aí Seu Nonô! Passou a guria nos cobres! Muitos riram e fizeram chistes.

 

- Seu moço, aquilo era amor. Foi algo que nunca senti na vida. Uma vontade de colocar a prenda na garupa do meu bragado e buscar um canto para juntarmos os trapos e depois ter uns guris. Era amor. Nunca me senti tão forte, e ao mesmo tempo com medo de ter aquela vida junto da minha. Até a gauchinha ir para casa foram momentos de beijos, carinhos e promessas. E depois pra dormir?

Era a cabeça girando, cheia de ideias e desejos. A mulher que sempre sonhei. Foi uma noite larga.

 

- Seu Nonô. Falou com o sogrão? Foi cabra-macho?

 

- Não. Não havia combinado nada com a guria. Minha cabeça estava um tropel de ideias. Na tarde seguinte, que seria a última que ficaríamos por ali, após a lida do dia fui procurar a morena. Estava atrás de sua casa debulhando milho. O sol de final de tarde banhava seu rosto e transparecia suas formas, atravessando o vestido simples e fino, permitindo visualizar a rigidez de seus seios tentando perfurar o tecido. É uma imagem que nunca sairá de minha cabeça. Ficamos de nos ver mais tarde atrás do bamburral. Ela chegou, como a noite anterior, parecendo uma deusa, com seu cabelo em trança tendo flores em volta. Nossos beijos e carinhos tomaram ímpetos que levaram a nos deitar na relva, e sobe um céu estrelado nos entregamos ao amor. Ao final, o arfar de nossos peitos, tendo ao fundo o coaxar que vinha da sanga de água e o cantar dos grilos. A lua em quarto crescente havia despontado no horizonte, dividindo o céu com as estrelas. Contou que seu pai estava desconfiado com alguma coisa, falou a esmo que não gostava de sangue índio ou qualquer outro, pois, não dava bom futuro. Tratando de dar a entender que não gostara de mim. Combinei que acompanharia a entrega do gado, iria até em casa, receber o que de direito do patrão, pegar minhas coisas, despedir dos pais, e voltar para falar com os seus. Com seus consentimentos começaríamos nossa vida juntos. Em duas semanas estaria de volta. Na manhã seguinte, sob um frio madrugadeiro, com a faixa em volta da cintura contendo a longa faca de ponta e o amolador, a guaiaca, coberto de poncho pela friaca, sombrero, botas, nazarenas de ferro, junto com os outros toquei a tropeada para viagem. Não parecia estar montado no meu baio e sim em nuvens. Ela não saía da minha cabeça. Seus olhos, o sorriso e a maciez da pele. Lembrava o sabor dos lábios. Ah, e o calor do seu corpo junto do meu! Eram imagens, sentimentos que corriam desembestados por mim.

 

- Pai, mãe, vou me casar.

- Mas como meu filho, conta isso, diz mãe.

Falei da mulher que roubou meu coração. Contei toda a história. Foi alegria, emoção e tristeza que senti ao mesmo tempo, no pai e na mãe. Depois de alguns dias, com o dinheiro na guaiaca e meus poucos pertences na mala de garupa, me despedi. Um forte abraço do velho, bençãos, abraços e muitas lágrimas de minha mãe. Desejo de sorte dos irmãos.

- Volto com ela ou fico por lá e monto casa.

Seu Nonô, que já havia picado seu fumo com a faca que levava na cinta, durante a conversa, enrolou seu cigarro de palha, bebericou mais um trago, aspirou seu palheiro e soltou a fumaça. Todos ficaram em silêncio aguardando, ansiosos a continuidade da história.

Lá ia eu matutando, o que dizer:

- Seu Mariano, dona Rosa, gosto muito da sua filha e quero me casar. Venho buscar a autorização e benção. Sou trabalhador, posso logo ter minha casa. Nos primeiros momentos, fico em casa de pai, ou posso encontrar por aqui um lugar para morar.

Durante a viagem, fui imaginando miles de conversas com os velhos. Tinha hora que eu suava, hora que me dava vontade de chorar e em outras, eu ria de alegria com eles concordando. Imaginava a festa, a prenda dançando a noite toda nos meus braços. A alegria de todos. A noite, o amor. Aí, não posso nem falar o que passava pela cabeça.

Risos de todos, chacotas, comentários bons e outros apimentados.

- Seu Nonô quer uma carne?

- Gracias, mas não. Paisanos, tinham se passado cinco semanas. Quando cheguei não encontrei a família. Informaram que uma semana depois de partirmos, despediram dos amigos, contando que seguiriam o destino que haviam planejado. Ir pro Mato Grosso, quem sabe chegar até Cuiabá. Ustedes, entendam que na hora vi o mundo desmoronando de baixo dos pés. Tudo o que sonhei aquelas semanas, parecia água escorrendo pelos dedos. O amor, o casamento, a família, tudo naquele momento, se tornou bruma, não me permitindo ter alento para o amanhã. Foi uma noite longa com o peito apertado, lágrimas escorrendo pelo rosto e escuridão na alma. Estava derreado. Quando amanheceu, como o sol que despontava, a frouxidão da alma começou a se dispersar e com dor no coração resolvi procurar pela morena.

Sai a campear. Peguei o caminho provável, parando em cada corrutela e perguntando. Voltei por outras bandas. Rumbei pro sul do Mato Grosso, depois, voltei pro Norte, chegando a Cuiabá. Voltei por Goiás, pedaço de Minas, por São Paulo e o Paraná. Andei pelas coxilhas do Rio Grande. Foram cinco anos. Parando um pouco para algum trabalho. Aprendi doma de cavalos com um guarani quando entrei em terras paraguaias e virei domador, quando a lida exigia. Fui cacimbeiro, cuidei de cercas, de animais, no cerdear, tropeiro nos caminhos que precisava trilhar. Em algumas paragens, trabalhei em bolichos, esperando encontrar entre os viajantes, que por lá passavam, notícias que me dessem uma luz. Pelos caminhos encontrei muitos paisanos que me deram ajuda e notícias, mas muitos outros, que só na peleia acertamos diferenças. Quantas noites dormi borracho. Pousei em beira de estrada, ao relento, em galpões, em posteiros, em cima de cama de arreios, em qualquer paragem. A cada parada, sem resultado, o coração se encurtava. Era uma tristeza tão grande que por mais que o lugar fosse alegre e cheio, eu me sentia só. Não havia roda de gaiteiro ou de violão que me trouxesse sorriso. Qualquer tocar de cordeona me trazia um pesar na alma. Deitei em cama de chinas, onde o que fiz foi procurar olhares e bem-querer que só estavam dentro de mim. Antes do despertar da aurora tinha que ir, me afastar daquele corpo, daquele lugar, pois, a tristeza de não ser meu bem-querer, invadia minha alma e me sentia enraivecido comigo mesmo. Tomado de dor, me perdia na neblina do alvorecer, para seguir em uma busca inconstante. Não sabia o que fazer da vida. Virei um estradeiro sem rumo certo. Fui levando a vida como Deus quis.

Passados cinco anos, acabei voltando para casa de pai. Ele e mãe haviam morridos e meus dois irmãos casados. Um deles vivendo no local e o outro ido lá pras Minas Gerais. Não tinha mais nada a fazer por ali. Toquei meu caminho pro Mato Grosso.

Ao final, fiz parada com meus caraminguás em uma fazenda próxima à Aquidauana. Comecei de peão, realizei algumas domas, sabia um pouco de remédios, de benzeduras, cuidava de bicheiras. Coisas que aprendi com uns castelhanos, nas minhas andanças e com isso, atendia nos problemas corriqueiros. O patrão, que era da capital, mas passava muito tempo por lá, foi tomando confiança em mim. Acabei me arrinconando por lá. Como ele gostava de matear na boquinha-da-noite, eram horas de charla, trocando histórias e informações. Acabou me ensinando a administrar a fazenda, comprar e vender gado e cavalo, o que, com meu conhecimento não foi difícil. Fizemos um arreglo e acabei me transformado em seu braço direito.

Cuidava de tudo, inclusive dos empregados. Minha casa era na fazenda. De vez em quando visitava umas chinas. Churrasqueava com a peãozada, com muita roda de viola e cantoria. Carteava. Apesar de cercado de pessoas, ustedes não imaginam a dor da ausência de um amor para no final do dia abraçar, prosear sobre o dia e a gurizada. Na cama, poder estender a mão e sentir a maciez e o calor de um corpo querido de mulher.

Seus moços, quem tem, valora muito. No hay alegria maior na vida.  Ter uma família que encha o coração. Não se deixe ficar só, na vida. Hoje a mulher, os filhos, amanhã os companheiros ou companheiras deles, os netos. Todos são como gotas de chuva regando teu viver. O coração é como horta, precisa de semente, água e sol.

- Genoíno, traz mais uma canha, pediu Seu Nono, continuando a conversa. Em determinada época, apareceu por lá um peão chamado Raimundo. O muchacho era bom de trato e interessado. Não tinha poréns para nada. Como levava jeito com os cavalos, comecei a ensinar a arte da doma, que aprendi, no passado, com velho índio. O pessoal o respeitava nesse assunto. Era macanudo. Morava na fazenda durante a semana e no final da semana, com o resto do pessoal, era levado na carroceria de um caminhão para a cidade, onde tinha casa. Uma tarde, em que o mormaço estava forte, eu estava sesteando, tomando um amargo, ele me procurou, pois, recebera notícia que sua mãe estava mal, possivelmente necessitando ser levada para o hospital da cidade próxima.

- Como pensa em ir, visto que a fazenda fica a 6 km da cidade?

- O Joca vai me emprestar a moto.

E tu vai levar de moto ao hospital, se precisar?

Não sei, depois eu vejo.

Resolvi levar na caminhonete da fazenda. Morava com a mãe, a mulher e a filha em uma casa modesta, branqueada com janelas azuis, diferente da maioria da redondeza, o que demonstrava cuidados. A frente era florida e janelas com cortinas coloridas, o que, dava um belo contraste, mostrando mão feminina. A sala com móveis simples e bem arrumada. Tinha um rádio sobre um armário, toalhinha na mesa de centro e nos braços do sofá. Aguardei na sala, enquanto ele se dirigiu ao quarto para falar com a mãe, e sua mulher me oferecia um café, enquanto a filha de 4 anos, um encanto de guria, encarapitou no meu colo e tagarelava comigo. Voltou dizendo, que a mãe se encontrava melhor e que não queria ir para o hospital, pois estaria dando trabalho para o patrão dele.

Deixa eu prosear com ela.

- Permiso? - perguntei ao entrar no quarto.

- Se aprochega, seu moço.

Tossindo me perguntou:

O senhor é o chefe de meu filho?

- Ele trabalha comigo. É um ótimo peão.

- Puxou o pai.

No quarto, encontrei uma mulher de cabelos negros, com alguns brancos, entre meio, amarrados em coque. Pelo pouco que a penumbra permitia ver, notei um rosto brando, com sulcos adquiridos na vida, com aparência flaca. No ar havia um leve cheiro de água de jasmim, o que fazia com o fresco do quarto um ambiente agradável, que se quebrava por um leve tossir. Levantou o rosto, o que possibilitou iluminar seus olhos. Aquele olhar me deixou atarantado, minha cabeça girou como bagual no curral e pedaços da vida passaram pela cabeça, descompassando o coração. Meu corpo gelou, como se o minuano congelasse meus ossos.

Seu Nonô deu uma parada, fixou o olhar no vazio do horizonte, como se estivesse vendo a cena de novo. Um silêncio, só quebrado pelo crepitar do fogo, ressaltou a expectativa do relato. Cortou o seu naco de fumo no silêncio do momento, ajeitou na palha, pediu fogo, deu uma pitada e pigarreou. Alguns, viram lágrimas nos olhos do velho Nonô.

- Era ela, seu Nonô?

- Chê, era ela. O mesmo sorriso com uma covinha no canto, o mesmo olhar, o jeito de afastar o cabelo. Sua voz era madura, um pouco quebrada e arfada pela tosse. Paisano, era a minha Rosita!

Fôlegos se soltaram, pequenos risos, comentários, correram no grupo.

- Pela penumbra do local, ela não me reconheceu.

- Se a Senhora não for para o Hospital eu tenho que chamar o doutor aqui.

O filho e a mãe disseram que não precisava. Agradeciam a minha ajuda até ali. Para precaver, passei no doutor, que costumava atender o pessoal da fazenda, pedi que passasse por lá e que solicitasse na farmácia os remédios que precisasse, depois eu pagaria.

Voltei para casa, parecia ter saído de uma peleja. A dor vinha do coração, me dava como um nó nas tripas e terminava num amargo na boca. De outro lado, meus olhos, queriam escorrer pelo rosto as lágrimas que o tempo acumulou. Vivi momentos de alegria e de tristeza, naquela noite. Não dormi. Eram imagens e pensamentos galopando pela cabeça.

Ao voltar no dia seguinte, Raimundo me agradeceu, a não mais poder, pelo doutor e pelo tratamento. A mãe estava com pneumonia e o doutor receitou injeções, que o farmacêutico estava dando. Disse que iria pagar com trabalho. Informei que não, pois seria por conta da fazenda. Ficou constrangido com a resposta.

Por uns dias fiquei assuntando o rapaz. Seu rosto, onde via traços de Rosita, seus trejeitos, inclusive tinha um sorriso parecido. Seus olhos eram azuis como da mãe, mas tinha a pele morena e queimada dos campos. Despacito, fui me aprofundando com o muchacho. Soube que o pai fora caminhoneiro. Teve uma pequena carreta de gado. Quando a viagem era por perto, o colocava na boleia para irem juntos. Com que alegria contava daquelas viagens, ao lado dele, e dos momentos nas fazendas com os peões. Toda vez que seu pai voltava era só alegria. A mãe fazia um almoço para festejar, com ele e o pai tentado ajudar na cozinha, só atrapalhando e a mãe ralhando. Os dois faziam que brigavam e no fim se abraçavam e riam, contava ele. O pai era bem mais velho que a mãe. Segundo o que ela contava, era bem nova quando casou, forçada por seu pai. Não tinha amor pelo futuro marido. Engravidou logo que casou. Com o passar dos anos, pelos cuidados e o bem-querer que tinha por ela e por ele, surgiu uma semente de amor. Sempre lhe dizia:

-Case com quem amar. Casei forçada, apesar que peguei grande estima por teu pai, mas de jovem, meu coração sofreu muito por um amor que não pude ter, mas que sempre ficou guardado no fundo do meu coração. Hay lembranças que não se apagam.

- Creio ser por esse amor que às vezes vejo minha mãe com olhar perdido e com lágrimas.

Soube que seu pai falecera alguns anos atrás. A mãe vendera a casa e a carreta e se mudaram para a região, pois, sua mulher tem família por aqui e sempre quiseram morar por perto.

Empecei a ter um querer maior naquele peão, por ser filho de Rosita e por que podia ter sido meu filho. Eu o olhava na lida e além de ver a mãe eu me via nele, quando era jovem. Seu comportamento, o trato com os animais, a doma, o jeito de parar. Matutando aquilo tudo, fui me aperreando. Tive uma coraçonada. Resolvi conferir no seu registro de trabalho a data de nascimento. Contando os meses de gravidez, ele podia ser meu filho, pela proximidade da data que estive com Rosita! Aquela ideia começou a me deixar aperreado. Não me achava no direito de me intrometer, se era ou não, e nem de abalar a imagem que ele tinha do pai. Apesar da gana de saber, fui mantendo aquilo dentro de mim. Cada vez mais, eu e ele mantínhamos um entendimento, que parecia de pai e filho. Apesar da dúvida, eu estava feliz com a relação que tínhamos.

Um dia após tanto me convidar, aceitei almoçar em sua casa. Depois, me arrependi. Depois, me encorajei. Depois, fiquei com medo do choque que sua mãe poderia ter. Quem sabe, não me reconheça? Situação muy difícil. Entonces, após, uma grande batalha comigo mesmo, resolvi ir.

No dia, levantei com o estômago na boca, ansioso. Estava mais tenso que em doma de cavalo xucro. Parecia me sentindo como frenteando um estouro de boiada. Tratei de me pôr na estica. Peguei um bom troço de goiabada cascão, feita na fazenda, para regalo e não chegar com as mãos vazias.

Raimundo e a mulher me esperavam na porta e me fizeram sentar na sala.

- A mãe já vem, tá terminando o almoço. Vai ter costela na panela com arroz carreteiro. Depois um belo pudim, especialidade da velha.

- Que bueno.

A Flor, que no início estava vergonhosa, logo se aboletou no meu colo, mostrando desenhos que havia feito. Um encanto de guria. Quando me chamou de vô, querendo mostrar a sua arte, fiquei por dentro feliz.

Tomamos uma branquinha para abrir o apetite com uns torresmos. Reparei, em fotos em cima do armário e os mesmos cuidados na sala da outra vez.

- Seu Nôno esta e minha mãe.

Ela entrou na sala e quando ia me estender a mão, parou. Seus olhos se avivaram em um olhar de surpresa. Começou a perder a cor. Se segurou na mesa e sentou na cadeira, sem parar de me olhar e dos seus olhos começaram a correr lágrimas. Era um choro baixo, contido.

- Mãe, que foi? Não está bem?

Enquanto seu filho se abaixava junto a cadeira, a nora correu para buscar um copo d’água e a neta, vendo a vó chorar, também, começou a chorar e a chamar por ela. Tomou o copo d’água e se levantou.

Eu me aproximei, não podendo parar de mirar seu rosto. Os olhos, a boca, os traços era a Rosita das minhas lembranças. Ela se jogou em meus braços chorando e a aninhei em meu peito, e junto comecei a chorar. Em volta todos atontados sem entender o que ocorria.

- Minha linda, eu estradei um bom tempo te procurando. Fui por muy lejos. Nunca consegui te esquecer. Agora te encontrei.

Após um tempo abraçados e chorando, nos separamos com ela me dizendo o quanto sentiu a minha falta. Que seu pai, tão logo fui embora, resolveu se mudar, para que não pudéssemos nos encontrar.

- Filho, este é o grande amor que te disse ter tido na minha juventude.

Contou que rumaram para Cambé, norte do Paraná, onde seu pai tinha um amigo e queria que casasse com ele. Esse homem era Bernardo, pai de Raimundo. Era um viúvo, bem mais velho que ela e sem filhos.

- Pai, gosto de outro homem.

- Besteira. O que vale é o que eu decido, está decidido.

O pai a obrigou a casar, pois iria para a Amazônia, onde o governo estava dando transporte e terras. Era um lugar muy lejos e antes, queria deixar a filha encaminhada. Rapidamente se casou. Os pais se foram e nunca mais os viu. Pelo trabalho do marido, mudou várias vezes de cidade, o que deve ter dificultado minha procura. Bernardo morreu alguns anos atrás. Do meu lado falei da busca por cinco anos. Dos lugares que fui, das dores que senti. O quanto sofri na sua busca.

 O almoço foi cruzado de conversas, de risos, de momentos de silêncio, de umidade nos olhos. Depois no sentamos na sala. Trouxeram os avios de mate e a conversa se estendeu. Durante aquele tempo todo, eu tinha preso no peito a grande dúvida que gostaria de saber. Seria Raimundo meu filho?

Raimundo, a mulher e a filha resolveram sair para tomar sorvete, deixando que pudéssemos conversar. Sentei ao lado de Rosita e peguei suas mãos, olhando seus olhos, vendo uma luz como que me chamando. Quando falava observava o movimento dos lábios. Graciosos. Era a prenda que estava no meu coração. Não resistindo a beijei, delicadamente, até que em um anseio preso pelo tempo a abracei e nos perdemos no trocar de beijos, nos roçar dos lábios, pelo rosto, pescoço e cabelos.

- Aí seu Nonô, não deu moleza! Que paixão presa no peito!

- Bueno, dentro de mim, continuava aquela angustia, a grande dúvida, e não aguentando mais, perguntei:

- Tenho uma pergunta importante a te fazer, Raimundo é meu filho? Tem horas que acho que ele se parece comigo.

- Quando você se foi o pai queria que não te visse mais, eu lhe disse ter me deitado contigo e agora era sua mulher. Ele era esquentado, me bateu, me prendeu no quarto por quatro dias, enquanto tratava da mudança. Viajamos para Cambé, para encontrar o Bernardo, que era um amigo lá dos pampas, contou querer que eu casasse, mas que não era mais virgem. Bernardo era um homem só, de idade e não se importou com o fato. Casamos em poucos dias pela pressa que o pai tinha de viajar. Em poucas semanas soube que estava grávida. Não casei amando Bernardo, mas com o passar do tempo, pelo cuidado que tinha comigo e com o filho, foi nascendo uma semente de respeito e de amor

- Rosita, pela data que ele nasceu, pode ser meu filho, fruto do nosso amor!

- Eu poderia estar grávida de você, mas da surra que levei, eu sangrei, não sei se eu perdi um filho teu.  Gostaria muito que fosse teu filho. Queria ter um pouco teu comigo.

- Bueno amigos, na hora foi um desencanto, mas, eu que tinha tanto medo, de após pelejar a vida ficar só, acabei ganhando uma família. Depois de um tempo passamos a viver juntos. Não tive um filho de sangue, mas o Patrão do céu, me deu um filho do coração. Passamos a nos querer como pai e filho. Ele nunca veio a saber que poderia ter sido verdadeiramente, meu filho. Rosita, morreu há poucos anos. Que Deus a tenha. Dizem, que encontramos com que amamos, depois da morte. Não vejo a hora de me encontrar com ela. Tivemos mais netos, veio Bernardo, nome em homenagem ao pai de Raimundo e depois, aquele piá que vem ali, que leva o meu nome.

- Vamo vô, a mãe tá chamando, diz que o senhor tá demorando.

- Vamos sim Raimundo, dá a mão aqui pro vô.

Ele se levantou, baforou o cigarro e jogou a bituca no chão.

- Buenas amigos, esta é minha história. Se me dão licença, vou-me andando. Até mais ver.

O pessoal ficou olhando se ir, de mão dada com o neto, no seu caminhar lento e o guri alegremente lhe falando.  

Ficaram todos com os olhos parados nas lembranças. Em cada rosto um olhar de tristeza, de saudade, de amor ou tudo junto. Há quem diga que em muitos, haviam lágrimas.

 

 

 

E.F. MMMAA

A PANDÊMIA




Zuleide morava no Grajaú e trabalhava em uma bomboniere na Estação da Luz. Eram um ônibus, um trem e o metrô para chegar ao trabalho. Algo como 45 minutos de viagem.

Sua filha Valdirene, que todos chamavam de Val trabalhava num bar que servia refeições. Estava há três meses como garçonete, não registrada.

Zuleide entrava as 15,00 h da tarde e trabalha até as 23,00 h, com a vantagem de ser registrada e ter vale transporte, refeição e cesta básica.

Valdirene entrava às 10,00 e trabalhava até às 17,30 h. Tem 21 anos, mãe solteira com uma filinha chamada Sonia ou Soninha.

Os horários eram convenientes, pois as duas conversavam pela manhã, Zuleide ficava com a neta até a hora da perua passar e leva-la à escolinha, às 13,00 h. Quando Val voltava pegava a filha, que a perua deixava numa senhora na vizinhança, Dona Dolores, pois, muitas vezes ele trabalhava além do horário.

Dona Dolores, ficava com inúmeras crianças, que os pais trabalhavam, e retornavam da escola, em horários que não estavam, fora os que não iam a escola e passavam o dia inteiro.

Zuleide não gostava, pois, a criançada só brincava e brigava e ela Dona Dolores, só gritava. Não era paciente.  Não tinha outra opção, pois, ela cobrava barato.

Tinham a vida ajustada, morando as três em um quarto, cozinha e banheiro, num quintalzão que tinha várias moradias, como essa, e que nada mais era que um cortiço.

No mês de março chegou a tal da pandemia. Tudo fechou.

Val foi mandada embora, sem nada a receber, pois, não era registrada e só tinha três meses trabalhando no local.

Zuleide foi demitida com tudo de direito. Aviso prévio, férias, décimo terceiro.

De imediato não acharam ruim, pois acreditavam que o problema passaria rapidamente, fora estar o governo dando um auxílio emergência, para cada uma delas. Tinham o dinheiro que Zuleide recebera ao ser mandada embora e corriam atrás de cestas básicas, que eram entregues na região. Precisavam saber com antecedência pois, se chegassem atrasada, muitas vezes não ganhavam.

Entretanto, o tal do vírus só piorava a situação com internações e mortes. Nada das empresas retornarem a trabalhar, apesar que, no início, os que puderam, ficaram em casa, usaram máscara e álcool gel nas mãos.

Era uma dificuldade segurar a Soninha no pequeno espaço em que viviam.

Ocorre que chegou dezembro, o governo parou com o tal de auxílio emergencial e o dinheiro que Zuleide recebeu de indenização estava acabando.

Passaram janeiro, fevereiro e março com grandes dificuldades. Mais do que, nunca tinham que correr atrás de cestas básicas, ficar nas filas mais de hora e com medo de se contaminarem.

Seis pessoas no cortiço pegaram o vírus. Quatro morreram, sendo dois delas um casal.

Em um dos dias ficaram sem gás. Zuleide pediu a sua amiga Cândida, que morava próxima, se podiam usar seu fogão para fazerem uns brigadeiros para venderem na rua e poderem compra gás.

Houveram vários dias que tiveram que regular o que comiam para sobrar para a pequena Soninha. Não havia mais roupa nova, sandália, bijuteria ou que quer que fosse, a não ser comida e um pouco de material de limpeza, a comprar.

O governo começou acenar que no mês de abril iria liberar um pequeno valor mensal de ajuda. Não era para todo mundo, como antes. Ficaram muito preocupadas.

Em um dos dias, Val chegou em casa e disse a mãe que tinha arrumado um emprego de garçonete, em um restaurante, próximo a uma região de escritórios, onde se ganhava bem e se conseguia um bom valor de gorjetas.

Foi uma alegria. No primeiro mês conseguiu colocar as contas em ordem. No segundo trouxe um vestidinho para a filha e uma blusa para si.

- “Fia”, agora que as coisas “tão melhó”, também vou buscar um emprego.

- Não precisa mãe. Eu ganho o suficiente.

- Você sabe que sempre fui “muié de trabalhá”. Quero ter o meu dinheirinho e “ajudá” em casa.

Não adiantou Val argumentar. Zuleide falou com sua amiga Cândida, pois, havia dito que aonde trabalhava estavam contratando alguns novos empregados, para repor os que foram mandados embora, durante o pico da pandemia, em razão de um aumento de serviço.

- Zuleide, é longe. Eu levo uma hora e quinze pra “chegá” no serviço. É um ônibus, um trem, dois metrô e uma caminhada.

- Não tem “poblema”.

No dia seguinte Cândida levou sua amiga na Empresa para ser entrevistada. Era na Barra Funda. Tiveram que caminhar um trecho da estação do Metrô até o local.

Na rua da Empresa havia várias mulheres de saia curta e blusas bem decotadas. Havia uma com os seios de fora.

- Cândida, meu Deus do céu o que é isso?

- As mulheres “tão” esperando “home” que vem de carro pra fazer negócio.

- Que negócio?

- Sua boba. Sexo. Aquela de peito de fora nem “muié” é.

- Ninguém tira elas daí?

- Imagina! Até na porta da Empresa ficam. Tem os “cafetão” que ameaça quem mexe com elas. Não fazendo nada “cum” elas, elas não fazem nada “cum nóis”.

- Com toda essa doença, tem homem que vem e paga?

- Vem. E cada carrão. “Vê” aquele que tem uma gostosona entrando.

Quando Zuleide olhou, notou que era Val, sua filha, entrando no carro. Usava uma peruca loira e uma roupa que não conhecia. Vistosa, curta e decotada. Salto alto. Ficou pasmada. Sentiu uma pontada no peito. Teve que se encostar na parede.

- Que foi Zuleide?

- Nada, nada. Foi uma falta de ar da caminhada.

Na saída da entrevista Cândida perguntou:

- Oh muié, o que foi? Você que é faladora ficou que parecia ter visto fantasma. A chefa só vai te “pegá” porque eu falei muito bem de “ocê” antes.

Zuleide em casa ficou esperando a chegada da filha.

- Val eu fui na Empresa que te falei pra “arrumá” emprego. É na rua que você trabalha. Eu te ví.

Sua fala era baixa, triste e quase chorosa.

Val começou responder, também, chorosa, mas de repente como se sentindo indignada falou com raiva.

- Mãe, eu estava desesperada vendo a nossa batalha e as necessidades que “távamo” passando. Se “arrumá” emprego, também vou correr risco na condução e no trabalho com o tal do vírus. “Num vou”?

- Vai.

 - Mãe, nisso tem risco, tem doença? Tem, mas tem dinheiro.

    Mãe, tem dinheiro!!!!