11/13/22

A PANDÊMIA




Zuleide morava no Grajaú e trabalhava em uma bomboniere na Estação da Luz. Era um ônibus, um trem e o metrô para chegar ao trabalho. Algo como 45 minutos de viagem.

Sua filha Valdirene, que todos chamavam de Val trabalhava num bar que servia refeições. Estava há três meses como garçonete, não registrada.

Zuleide entrava as 15:00 h e trabalha até as 23:00 h, com a vantagem de ser registrada e ter vale transporte, refeição e cesta básica.

Valdirene entrava às 10,00 e trabalhava até às 17:30 h. Tem 21 anos, mãe solteira com uma filhinha chamada Sonia ou Soninha.

Os horários eram convenientes, pois ambas conversavam pela manhã, Zuleide ficava com a neta até a hora da perua passar e levá-la à escolinha, às 13:00 h. Quando Val voltava, pegava a filha, que a perua deixava numa senhora na vizinhança, Dona Dolores, pois, muitas vezes ela trabalhava.

Dona Dolores, ficava com inúmeras crianças, que os pais trabalhavam, e retornavam da escola, em horários que não estavam, fora os que não iam à escola e passavam o dia inteiro.

Zuleide não gostava, pois, a criançada só brincava e brigava e ela Dona Dolores, só gritava. Não era paciente. Os pais não tinham outra opção, pois, cobrava barato.

Tinham a vida ajustada, morando as três em um quarto, cozinha e banheiro, num quintalzão que tinha várias moradias, como essa, e que nada mais era que um cortiço.

No mês de março chegou a tal da pandemia. Tudo fechou.

Val foi mandada embora, sem nada a receber, pois, não era registrada e só tinha três meses trabalhando no local.

Zuleide foi demitida com tudo de direito. Aviso prévio, férias, décimo terceiro.

De imediato não acharam ruim, pois acreditavam que o problema passaria rapidamente, fora estar o governo dando um auxílio emergência, para cada uma delas. Tinham o dinheiro que Zuleide recebera ao ser mandada embora e corriam atrás de cestas básicas, que eram entregues na região. Precisavam saber com antecedência, pois, se chegassem atrasada, muitas vezes não ganhavam.

Entretanto, o tal do vírus só piorava a situação com internações e mortes. Nada das empresas retornarem a trabalhar, apesar que, no início, os que puderam, ficaram em casa, usaram máscara e álcool gel nas mãos.

Era uma dificuldade segurar a Soninha no pequeno espaço em que viviam.

Ocorre que chegou dezembro, o governo parou com o tal de auxílio emergencial e o dinheiro que Zuleide recebeu de indenização estava acabando.

Passaram janeiro, fevereiro e março com grandes dificuldades. Tiveram que correr, com mais intensidade, atrás de cestas básicas, ficar nas filas mais de hora e com medo de se contaminarem.

Seis pessoas no cortiço pegaram o vírus. Quatro morreram, sendo duas delas um casal.

Em um dos dias ficaram acabou o gás. Zuleide pediu a sua amiga Cândida, que morava próxima, se podiam usar seu fogão para fazerem brigadeiros para venderem na rua e poderem compra gás.

Em vários dias que tiveram que regular o que comiam para sobrar para a pequena Soninha. Não havia mais roupa nova, sandália, bijuteria ou que quer que fosse, a não ser comida e um pouco de material de limpeza, a comprar.

O governo começou acenar que no mês de abril iria liberar um pequeno valor mensal de ajuda. Não era para todo mundo, como antes. Ficaram muito preocupadas.

Em um dos dias, Val chegou em casa e disse a mãe que havia arrumado um emprego de garçonete, em um restaurante, próximo de região de escritórios, onde se ganhava bem e se conseguia um bom valor de gorjetas.

Foi uma alegria. No primeiro mês colocou as contas em ordem. No segundo trouxe um vestidinho para a filha e uma blusa para si.

- “Fia”, agora que as coisas “tão melhó”, também vou buscar um emprego.

- Não precisa mãe. Eu ganho o suficiente.

- Você sabe que sempre fui “muié de trabalhá”. Quero ter o meu dinheirinho e “ajudá” em casa.

Não adiantou Val argumentar. Zuleide falou com sua amiga Cândida, que informara estarem, em seu trabalho, contratando alguns novos funcionários, para repor os mandados embora, durante o pico da pandemia, em razão de aumento de serviço.

- Zuleide, é longe. Levo uma hora e quinze pra “chegá” no serviço. É um ônibus, um trem, dois metrô e uma caminhada.

- Não tem “poblema”.

No dia seguinte Cândida levou sua amiga na Empresa para ser entrevistada. Era na Barra Funda. Tiveram que caminhar um trecho da estação do Metrô até o local.

Na rua da Empresa havia várias mulheres de saia curta e blusas bem decotadas. Havia uma com os seios de fora.

- Cândida, meu Deus do céu o que é isso?

- As mulheres “tão” esperando “home” que vem de automóvel pra fazer negócio.

- Que negócio?

- Sua boba. Sexo. Aquela de peito de fora nem “muié” é.

- Ninguém tira elas daí?

- Imagina! Até na porta da Empresa ficam. Tem os “cafetão” que ameaça quem mexe com elas. Não fazendo nada “cum” elas, elas não fazem nada “cum nóis”.

- Com toda essa doença, tem homem que vem e paga?

- Vem. E cada carrão. “Vê” aquele que tem uma gostosona entrando.

Quando Zuleide olhou, notou que era Val, sua filha, entrando no veículo. Usava uma peruca loira e uma roupa que não conhecia. Vistosa, curta e decotada. Salto alto. Ficou pasmada. Sentiu uma pontada no peito. Teve que se encostar na parede.

- Que foi Zuleide?

- Nada, nada. Foi uma falta de ar da caminhada.

Na saída da entrevista Cândida perguntou:

- Oh muié, o que foi? Você que é faladora ficou que parecia ter visto fantasma. A chefa só vai te “pegá” porque eu falei muito bem de “ocê” antes.

Zuleide em casa ficou esperando a chegada da filha.

- Val eu fui na Empresa que te falei pra “arrumá” emprego. É na rua que você trabalha. Eu te ví.

Sua fala era baixa, triste e quase chorosa.

Val começou responder, também, chorosa, mas de repente como se sentindo indignada falou com raiva.

- Mãe, eu estava desesperada vendo a nossa batalha e as necessidades que “távamo” passando. Se “arrumá” emprego, também vou correr risco na condução e no trabalho com o tal do vírus. “Num vou”?

- Vai.

 - Mãe, nisso tem risco, tem doença? Tem, mas tem dinheiro.

    Mãe, tem dinheiro!!!!

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