11/09/25

DEUS É ATEU




Pois é, Deus é Ateu.

Vocês estão rindo, mas foi ele mesmo quem me disse.

Como eu sabia que era Deus?

Bem, é melhor eu contar essa estória direito.

 Era um dia de forte calor e eu desejando me refrescar entrei em um bar, desses que têm banquetas altas próximas ao balcão e pedi um chope.

Ao meu lado, um sujeito estava lá pela sua segunda ou terceira caneca.

Puxando conversa, dessas de boteco em que após certo tempo, só bêbado aguenta ouvir, a pessoa me disse estar cansada e desacreditada.

Mostrava um rosto calmo, mas desgastado, por trás da barba e do cabelo compridos.

Contou ser Deus e não acreditava mais em si mesmo, e agora resolvia ser ateu. 

Claro, que não acreditei em nada e concluí ser efeito do número de chopes que havia tomado. Comecei a rir e disse que ele bebera demais e estava ficando meio chapado, achando-se Deus.

Pagou as bebidas e me convidou para acompanhá-lo. Fomos para a rua.

 O dia principiava a escurecer, pois uma bela chuva se encaminhava, o que amenizaria o calor.

- Vamos fazer com que o dia seja novamente claro e ensolarado. E num estalar de dedo as nuvens principiaram a se abrir, um belo sol surgiu e o dia novamente ficou ensolarado e quente.

- Você deve ter ouvido a previsão do tempo enquanto estava no bar.

Continuamos a caminhar. Encontramos um cego com sua bengala e alguém lhe oferecendo o ombro para caminhar.

- Pergunte-lhe há quanto tempo não enxerga.

- Desde o nascimento, respondeu.

E quando principiava a nos afastar, Deus tocou levemente em sua cabeça, sem que percebesse e ele começou repentinamente a gritar que estava enxergando.

- Um milagre, milagre!

Muitos se aproximaram enquanto nos afastávamos.

Mais adiante, o vendedor de bilhetes, que há anos está no mesmo ponto, em sua cadeira de rodas por ter as pernas atrofiadas.

Um novo milagre. Levantou da cadeira, caminhando e chorando.

- Obrigado, meu bom Deus – gritando e levantando as mãos aos céus.

Basta ou necessitas de mais sinais para acreditar em quem sou?

Eu trêmulo, mal podendo falar, por tudo que presenciei, me dei por satisfeito. Puxando pelo braço, lhe disse:

- Venha, ali adiante há um bar onde podemos voltar a tomar uma cerveja e conversar.

 - Não acredito em mim. Dizem que estou em todo lugar, que até o fio de cabelo que cai é do meu conhecimento, que sou onipotente e onipresente. Quando um bebê nasce com alegria é colocado nos braços dos pais, que manifestam graças a Deus por tudo correr bem, mas eu nem estava lá. Meus olhos e ouvidos estavam voltados para a mãe que perdia seu bebê, em meio à miséria total, sendo que quando cheguei tudo estava consumado. Que Deus eu sou? Da alegria ou da tristeza?

- Você o é do riso e do choro – retorqui.

Após um gole, continuou:

- E as guerras com suas barbáries: degolas, estupros, fuzilamentos, torturas. Que fiz?

O pobre coitado que pisa na mina e perde as pernas.  “Graças a Deus que não morreu!” Graças a mim que não morreu? Graças a mim, que passará a vida numa cadeira de rodas, em meio a um país na miséria e em guerra, esmolando para não morrer de fome?

Enquanto isso, alguém na sua fausta residência está bebendo, comendo, rindo e comemorando a maravilhosa vida que suas armas e brutalidades lhe oferecem. Como Deus, não estive antes para evitar e muitas vezes nem depois, para me horrorizar e me envergonhar. Tudo aconteceu sem o meu consentimento.

 Tentei me encontrar lá pelas terras ditas Santas, onde a religião é pano de fundo para as guerras. Não consegui; cada um me entendia de um jeito diferente e com isso gerava conflitos com as outras partes. Alguns, nem levantaram a cabeça dos seus antigos escritos e tradições. Nações se trucidam nessa região. Aumentou minha crise de identidade.

 Para os lados de cá do mundo, entrei numa dessas Igrejas, cujas torres devem fazer cócegas às nuvens.

Procurei o padre. Estava no confessionário. Para lá me dirigi.

- Filho, no que pecastes? - me perguntou.

- Não pequei. Eu errei.

- Sim, filho, o erro é intrínseco à vida. Todos estamos sujeitos a erro e ele nem sempre representa um pecado.

- Eu errei. Errei em criar o homem, que, desde Abel e Caim, vive se matando.

- Filho, quem criou o homem foi Deus.

- Eu sou Deus e errei nessa criação.

Gritando, me pôs para fora, ameaçando chamar a polícia, pois a casa de Deus não era lugar de bêbado ou de quem não tem respeito por ele.

Casa de Deus! Eu não me vi naquela casa. Havia muito luxo, riqueza e pompa.

 - Veja na televisão, estão noticiando sobre a possível aprovação de alguma lei. Ali está um grupo reunido em oração. Devem estar orando para você visando a aprovação de algo importante - exclamei.

 - Este é outro ponto que me incomoda. Quantos políticos se escoram em meu nome e em verdade, não agem em prol do próximo. Usam-me como garoto propaganda.

 Numa das minhas andanças encontrei um grande templo. Lembrei dos tempos de Salomão.

Havia uma pessoa parecendo um rabino. Falava de uma forma calma e doce. O semblante com os cabelos e a barba brancos e com poucos paramentos, ao contrário de outras em que fui, me deu esperança com uma conversa simples e direta.

Tive dificuldades de me aproximar. Havia muitos, como o protegendo. Observei ao fundo sacos de dinheiro, que vi sair de bolsos de pessoas com expressões de dor, outras de esperança e muitas com olhos de avareza.

Gritava o velho rabino a seus arautos e seguidores:

- Como queres receber de Deus se não dás nada ao Pai?

- Não é a mim que dais e sim a ele – gritei e fui expulso com agressão.

 Fiquei atordoado. Que Deus é esse que quer receber bens materiais para dar? Não sou eu. O máximo que quero está na mensagem que fiz chegar à terra, há um bom tempo: 

“Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.

As religiões são importantes. Agregam pessoas que têm o amor e a fé no coração, mas escondem, por trás, muitos interesses criados pelo homem, que fogem aos meus desígnios.

Quantos mensageiros vieram, visando a melhoria do homem, alguns mais iluminados que outros, trazendo mensagens e caminhos diferentes: Cristo, Maomé, Buda, Gandhi, Chico Xavier, Madre Tereza, Luther King, além de muitos mal conhecidos. Poucos foram escutados.

 Contrariado, com um olhar de profunda tristeza me disse:

- Quando criei a terra, tudo era perfeito e equilibrado. Havia tempestades, ciclones e secas. Era a natureza reagindo dentro de suas forças naturais.

O homem devia respeitá-la. Foi se instalar onde não podia, abriu espaços em áreas a serem preservadas, construiu bens, pensando principalmente no ganho, não se preocupando com a natureza. Não sou eu que gero os cataclismos. É ela, muitas vezes reagindo à ação do homem. Tudo é equilibrado: a lua girando em torno da terra, esta em torno do sol e ele por si da galáxia que se mantém equilibrada no universo.

 “Dizem: o homem é um bom sujeito, queira que Deus crie muitos iguais a ele.” Se é bom, é porque evoluiu, pois, dei a ele o livre arbítrio. Muitos o usam para o mal, ocasionando dores, nas quais não tive nenhuma interferência.

O Deus está dentro de cada homem. Fica claro que não existo. Meu nome sim, mas, eu não. Não creio nesse Deus presente em cada fato, em cada momento. Considero-me ateu.

 - Como já criei o céu e a terra e tudo está dentro do seu equilíbrio possível para os dias de hoje, vou tirar umas semanas de férias. Vou buscar uma dessas praias paradisíacas que criei e descansar. Tudo vai acontecer conforme seu ordenamento. Não serei e nem deixarei de ser o causador. Será o homem colhendo o que plantou. Enquanto isso, muitos homens de bem, pensando em meu nome, trabalharão pela melhora da humanidade. Se o número deles aumentar, isto será possível. 

 Depois do terceiro copo, levantou e saiu, não se despedindo e resmungando que não acreditava mais em si mesmo. Era ateu. Atravessou a rua e se perdeu no meio da multidão. Não sei se antes, pegou uma bíblia que estava sendo distribuída por alguns.

Essa é a estória. Deus é ateu.

Noutro dia no meio das minhas desesperanças, clamei por sua ajuda. Entretanto pensei: Estará de bermuda sentado à sombra de uma palmeira, bebendo uma água de coco? Estará ainda de folga?

Será que continua ateu?