Estava no coro de onde podia
observar toda a igreja.
As luzes, na sua maioria,
estavam apagadas. As imagens nos altares cobertas com tecido roxo.
Desde a quinta feira houvera
vigília. Até as nove horas da noite as mulheres, depois os homens.
Pais, filhos, amigos, todos
apareciam. Os que não se viam há muito
tempo se reencontravam. Outros marcavam
para se verem.
A noite era passada a café,
bolo e bolacha. Uma pinguinha escondida sempre havia.
Jogavam dominó, cartas e
ping-pong.
Cada um escolhia o horário da
sua vigília, por um período de uma hora, quando oravam e cantavam aos pés do
altar. É um dos poucos dias que a maioria dos homens vai à igreja.
Naquele momento ele observa o
movimento de preparação para a procissão do Senhor Morto.
Durante o dia inteiro houvera
visitações para uma pequena vigília, orações, tocarem o corpo do Senhor e se
benzerem.
Ele gostava daquele clima de resguardo e oração. Adorava o
burburinho.
As beatas do Sagrado Coração
de Jesus com seus cânticos esganiçados e seus véus negros e fitas vermelhas
As Filhas de Maria com as
mantilhas brancas e suas fitas da mesma cor.
Os Congregados Marianos com
as suas azuis clara sobre os ternos e se cumprimentando quando se encontravam:
- Salve Maria.
Gostava do incenso, do soar
da campainha no momento da consagração, do ajoelhar e levantar durante a missa,
da participação.
Desde pequeno vivera na
Igreja. No catecismo, coroinha, nas novenas, nos terços.
Aquele era o seu mundo.
Agora, seus pais queriam se
mudar para uma cidade maior para que ele tivesse novas oportunidades, estudos.
Não adiantaram suas argumentações. Iriam se mudar e pronto.
Será o fim de sua vida, de
tudo que gosta. Da cidade, onde em cada canto há uma lembrança. Das pessoas
que conhece há longa data, dos ex-alunos do catecismo, das beatas e dos
Vicentinos, que sempre contaram com sua ajuda.
Esta Sexta Feira Santa é
especial, será a sua Sexta Feira da Paixão. A última na cidade
As pessoas começam a se
preparar para a saída do Senhor Morto e a procissão que se formará logo a
seguir.
Subiu do coro pela velha
escada de madeira até o campanário. Lá do alto, pendurado, descortina a cidade
a sua volta e a saída da Igreja aos seus pés.
As casas mantendo as luzes
apagadas, flores, colchas e velas nos balcões, janelas e portas.
O povo nas calçadas, com as
velas acessas, aguardando a passagem da procissão para depois se incorporarem.
É maravilhoso, parece um
colar de luzes.
No céu a lua cheia
banha tudo com sua brancura. Poucas nuvens com seus contornos bem marcados
pelo luar dando um toque nostálgico.
O calçamento das ruas parecem compostos de placas de prata, assim como, o telhado dos casarios.
Naquele instante, um pássaro
cruza o céu riscando ao meio a circunferência da lua.
Observa que a procissão
começa a sair da Igreja.
A matraca a frente, como que
pedindo passagem e silencio, em substituição aos sinos, que se manterão calados
até o sábado de aleluia.
Logo a seguir a Verônica com
o rosto do Senhor, marcado de espinhos e manchado de sangue, impresso no linho,
utilizado para enxuga-lo, quando da subida ao Calvário e entoando de tempo em
tempo o seu canto de lamentação.
As crianças vestidas de
anjinhos, os judeus com seus capuzes brancos cobrindo os rostos, mantos, tochas,
lanças e o rufar dos tambores.
A imagem de Nossa Senhora
ajoelhada rezando e com uma espada transpassada no coração, simbolizando a
grande dor da mãe na morte do Filho. O seu andor carregado e acompanhado pelas
Filhas de Maria.
Ao lado da porta da Igreja já
postada e tocando a marcha fúnebre a banda da cidade. Toda de uniforme azul
claro, galardões dourados nos ombros e quepe com o símbolo da lira. O maestro,
o trompete, o bombardino, a tuba e o repique.
Os Congregados Marianos
começam a interditar o pequeno trânsito das ruas.
O pároco e seus auxiliares,
todos paramentados de roxo, principiam a procissão
O corpo do Senhor começa a
sair da igreja. Seu andor é carregado por homens, que se revezarão, e logo será
protegido por um pálio roxo e dourado a ser sustentado pelos Vicentinos.
Em seu peito o coração fica
pequeno pelo sentimento de perda de tudo aquilo. Uma grande dor toma seu corpo,
assim como, uma sensação de asfixia.
De repente a dor cessa e se
sente leve, voando. Observa e sente o burburinho, os cânticos e o odor do
incenso e das velas.
Flutua. Será a emoção?
A lua pinta com sua brancura
a paisagem.
Em seu voo ouve a matraca, o
rufar dos tambores, a lamúria da Verônica, a banda. Vê os anjinhos, as Filhas de Maria, os
Judeus, as pessoas na calçada com as velas, a procissão.
Avista do alto cada recanto
da sua cidade, os prados e montanhas. O
rio que circunscreve a povoação parecendo uma cobra prateada dormitando ao
luar.
Vê sua Igreja, linda com sua
cruz e campanário no alto da cidade.
Nota que é ele quem risca a
circunferência da lua ao meio.
Aquela é a sua Sexta Feira da
Paixão.
No dia seguinte, após procura por toda cidade, foi
encontrado dormindo no campanário da Igreja. Braços abertos como num voo e um
sorriso nos lábios. Acordou dizendo que passou a noite sobrevoando a cidade, como um pássaro.
Sorriram, era Sábado de Aleluia.