10/04/17

A Velha Senhora



Resultado de imagem para olhos idosas
Bem vestida, maquiada e animada, sentada a um canto batia palmas e cantava as músicas. Seu rosto expressava alegria. Chamava-se Laura.
O grupo de jovens que periodicamente visitava o asilo cantava e tocava.  Um ou outro motivava algum dos idosos para dançar, tocar ou cantar ao microfone.
Surgiam entre eles, invariavelmente, alguns artistas, enferrujados pelo tempo, mas demonstrando que já tiveram seus tempos como cantores, músicos ou bailarinos.
Vitor, um dos rapazes, convidou Dona Laura para dançar. Depois de um pequeno tempo, ela pediu para retornar ao quarto a fim de descansar.
Vitor a acompanhou. Ficou admirado com seu canto no quarto, aonde havia mais três camas. Estava bem arrumado. Cama feita. Criado mudo limpo com porta retratos. Encima da cama uma mala pronta, ao lado uma pequena cadeira, sofá com um sobretudo arrumado.
Colocou a mala no chão ao lado e deitou-se. Depois de acomodada Vitor perguntou:
- A Senhora vai embora?
- Sim, amanhã minha filha virá me buscar. Voltarei para casa, onde ficarei junto dela, do meu genro e meus netos. Tenho dois. Veja as fotos sobre o criado mudo. Não são lindos? Este é o Rodrigo e esta a Anita. Preciso descansar para depois jantar e amanhã pela manhã estar bem disposta.
-Que bom, Dona Laura. Fico feliz. Bom descanso.
Vitor voltou para o grupo que continuava na cantoria, nas danças e no alegrar das pessoas do asilo.
Uma parada para o café com bolachas.
Nesse intervalo, em conversa com o Dr. Almir, um dos administradores do local, se referiu a simpática Dona Laura que estava com suas coisas prontas para retornar para casa.
-Vitor, todos os domingos, ela se prepara para ir embora na segunda feira quando a filha a virá buscar.  É assim desde o começo, há oito meses.
Na segunda, não quer sair para caminhar no pátio nem ir ao refeitório para o almoço aguardando a chegada da filha a qualquer momento.
É uma tristeza geral. Ninguém quer desmanchar o encanto da vinda da filha. Muitos pelos cantos derramam uma pequena lágrima por saberem que ninguém virá.
Ao final do dia, resignada, sem desmanchar o sorriso que carrega nos lábios e nem o brilho dos olhos, desmancha sua mala e diz: minha filha deve ter tido problemas. Ela é muito ocupada. Se não veio é porque não pode, na próxima semana virá.
Coloca tudo novamente no armário e criado mudo. Ajeita sua cama e deita. Temos que insistir que se levante para o jantar.
No dia seguinte, como se nada tivesse ocorrido, fica no aguardo e na preparação para a próxima segunda feira.
No fundo é uma esperança que a mantem viva. Por essa espera ela se cuida, come, se arruma e conversa.
Ela tem fé que a filha a virá buscar, de encontrar os seus e com eles conviver na alegria.
É uma fé afetada por um cérebro corrompido pela idade, mas, uma entrega que a faz feliz e a mantem vivendo melhor. Uma fé que ampara seus sonhos e esperanças.
Muitos, como ela, tem fé em verdades falsa ou dúbias, mas que os mantem firmes para enfrentar a vida por um possível amanhã ou um paraíso após a morte.
Quantas Dona Laura não há pelo mundo?




9/27/17

O Sino




A vila, uma dúzia de casas perdidas no sertãozão de Deus, onde o trabalho maior é ter o que comer e principalmente beber.
O sino da pequena igreja, há muito abandonada, onde Deus nem mais estava, tocou. Lá as primeiras letras e catecismo.
Um padre distante, de tempo em tempo para batismos, casamentos e raras missas.
Pouco a pouco, a igrejinha foi se perdendo, pelas escassas procuras e pela inclemência do tempo que paredes e telhados fustigava.
A cidade toda acudiu ao tocar.
Envelhecida, a porta foi aberta, com dificuldade, pelo peso dos anos não mais usada.
Uma faixa de sol adentrou, formando um caminho de pó e descobrindo um tapete de merda de pássaros. Ouviu-se o agitar de corujas, enquanto o atônito voar de morcegos ocorria.
Com cuidado, subiram os degraus carcomidos que levavam ao campanário.
Quem voltou, trazia os olhos esbugalhados e o pálido no rosto.
- Não tem ninguém!
- Como? Cruz Credo! É o demo! Um sinal!
Era meia manhã, horário que não pertencia às almas.
A cidade todas as noites se reunia à porta das casas, para o conversê. Corriam estórias, valentias, o desconhecido e as premonições.  As conversas eram envoltas da fé herdada, misturadas de personagens das lendas e cultos.
O distanciar da fé clerical, somado à crendice criou um caldo próprio de religiosidade.
Os mais velhos diziam: castigo, um dia iria acontecer. Os mais novos, tremiam nas suas incertezas.
De então, as conversas ao pé da porta se encheram de novos personagens e medos.
O recolher tornou-se mais cedo, crentes que atrás das portas e trancas estariam mais protegidos.
Um rosário, de vez em quando era puxado. O silêncio se abatia. Em alguns o balbuciar da oração, em outros o olhar fixo na noite, perdidos em seus demônios.
O assunto ficou falado, mais que o bezerro entalado, o cachorro de duas cabeças e o sol se apagando no meio do dia.
Não havia riso que se sustinha e imaginação que se aquietasse. O acontecido mexia com o batido do dia a dia e a mesmice da vida.
O tempo foi passando e a igrejinha benta em maldita se tornou. Os adultos a contornavam e as crianças não mais por lá brincavam.
Os ouvidos, que por um tempo eram aguçados na busca de algum batimento, encheram-se do som dos animais, dos pássaros e por vezes do ruído do vento na caatinga açoitando o mandacaru.
A vida continuou mesmeira, mas, o fato ficou.
No dia em que coloquei pé na estrada da vila, que dia a dia se esvaziava dos que morriam ou se iam, ao me distanciar, acredito ter ouvido o tocar do sino.
Quem sabe, desejando sorte no meu caminhar. Que a vida não fosse o silêncio batido de viver por viver.

Até hoje o tenho nos ouvidos