12/03/23

LA CUBAÑITA

 


Há 15 anos eu tinha um primo, chamado Milton, que morava em Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, cidade que faz fronteira seca com Pedro Juan Caballero no Paraguai. Uma simples avenida separa as duas cidades. A região é famosa por ser rota de drogas.

Milton, fora transferido pela empresa de Curitiba para lá, há dois anos, gerenciando uma unidade local da distribuidora de tratores. Era casado, tendo uma filha de 5 anos. Constantemente, me convidava para passarmos uns dias juntos e relembrar nosso tempo de juventude em Curitiba. Garantia que eu teria bons momentos, com eles e os amigos. A cidade possuía um clima agradável, com uma vida noturna agitada, tanto do lado brasileiro, quanto paraguaio. Como eu estava de mudança de emprego, e iria iniciar minha faculdade dai dois meses, pareceu-me ser um bom passeio.

- Realmente, a região é conhecida pela droga – respondeu-me - entretanto, aqui, a situação é muito tranquila. Conhecemos o pessoal da sociedade, com quem convivemos, e não nos metemos com o lado podre, que infelizmente existe. Quando ocorrem mortes, normalmente, é acerto de contas entre eles. Não se deve andar nos lugares e com as pessoas erradas. Para o cidadão comum, a cidade é bastante segura.

A estada estava sendo muito agradável. No primeiro final de semana, um churrasco em sua casa à beira da piscina, onde conheci vários dos seus amigos e amigas. Com vários deles, em noites diversas, fomos a bares, boates e restaurantes, tanto em Ponta Porã, como em Pedro Juan Caballero. Impressionante, a cidade paraguaia tem uma faculdade de medicina, frequentada por muitos brasileiros. Encontramos muitos desses jovens nessas saídas noturnas.

Numa das tardes meu primo me diz:

- Vamos à La Cubañita (em espanhol ñ se lê como nh) quero que conheças o calor das mulheres da terra.

- Pera aí, La Cubañita não é uma amiga de tua mulher, que combinou com algumas outras amigas, se encontrarem para irem às compras?

- Sim, mas ela é gerente de uma boate, onde naturalmente, além das bebidas, há mulheres.

- O que você vai fazer num lugar desse, em que a gerente é amiga da tua mulher. Tá doido? Ela também trabalha sexualmente?

- Uma gerente de puteiro se não for discreta, ou seja, ter a boca fechada, não consegue ficar no emprego.  O que você acredita que farei? Vou encontrar a Pérola, uma paraguaia deliciosa. A vantagem com La Cubañita, é que conhece as meninas e não corro riscos maiores. Ela só gerencia, não tente nada diferente que vai quebrar a cara.

- Não estou a fim de um puteiro, não faz meu gênero.

- Vai ter que ir, você é meu alvará para hoje à tarde. Terá a vantagem de conhecer a mulher mais bonita, que já vi na minha vida. Cubana linda, delicada e fina. É um encanto de mulher. Vais ver.

À tarde pegamos o automóvel e seguimos para Pedro Juan Caballero, após, vai e vem de uns quinze minutos, chegamos a uma casa, com um letreiro “Boite Lunar de Ypacaraí”.

- Olá, Cubañita, este é meu primo Marcos, lá de Curitiba. É um alemãozão.

- Olá, todo bien? Quieres algo?

Realmente a mulher era lidíssima. Morena, cabelos levemente ondeado até os ombros, um corpo bem distribuído nos seus 1,60 cm. Pelo decote, que não era pronunciado, notava-se lindos seios. O olhar, a boca, o jeito de falar, o movimentar dos lábios, tudo prendia e encantava. Era a personificação da tão conhecida e tocada música na região: “eres linda e hechicera, como el candor de uma rosa” (és linda e feiticeira, como a candura de uma rosa).

Meu primo, pediu um uísque e perguntou o que eu queria, ainda enfeitiçado por aquele olhar, respondi:

- Quero coca.

Os dois se olharam meio assombrados e meu primo reagiu na hora:

- Tá bom Marco, uma coca, mas você pede assim de cara, mesmo nesta cidade, é um assunto para se tratar com cuidado. Não sabia que você curtia.

Na hora, percebo a bobagem que estava fazendo e rindo, digo:

- Não, não é o que vocês pensam. Quero uma Coca-Cola.

Meu primo faz uma cara, pega seu copo e se perde por uma porta à frente.

Sento no balcão e aprecio a beleza e a graciosidade de La Cubañita e pergunto:

- Você nasceu realmente em Cuba?

- Sim?

- Como veio parar aqui?

- Mi madre es paraguaia com família, aqui em Pedro Juan Caballero.

Passamos a trocar frivolidades, eu contando de minha vida em Curitiba, e do tempo de juventude com meu primo. Nesse ínterim, seu celular tocou, atendeu e foi ter uma conversa ao fundo, em voz baixa e demonstrando grande preocupação no semblante. Terminando, grita, mostrando pressa, recolhendo suas coisas.

- Ramona, Ramona corre aqui.

Apareceu uma mulher, alguns anos mais velha, que parecia estar se arrumando para o início dos trabalhos, dali uma hora.

- Fala Chefa, o que foi?

- Mi hijo, não está passando bem. Preciso levar ao médico. Cuida de tudo. Voy chamar um táxi.

Prontamente, me coloquei à disposição em levá-la.

- A Ramona que avise meu primo, o que está acontecendo, e volte para casa de táxi.

Ela, bastante preocupada, não pensou duas vezes e aceitou minha proposta. No caminho, não conversava, só me indicava a rota. Só me respondeu, que seu filho tinha quatro anos, não se estendendo no assunto.

Uns quinze minutos depois estávamos em sua casa. Mal parei o veículo, desceu desesperada. Foi entrando, deixando a porta aberta para que a pudesse acompanhar. Principiou a conversar em espanhol, misturado de guarani, com sua mãe e tia, numa velocidade que não conseguia acompanhar. Havia uma bolsa pronta com coisas da criança. Envolveu o menino em um cobertor, cobrindo a cabeça e pediu para irmos para o hospital.

- Ele pode estar com meningite. Falou desesperada. Há dias no está bien. Ahora, teve vômitos, febre mui alta com convulsion. Mi madre tuvo que lhe dar um banho, para conter a temperatura.

Quando chegou no hospital, rapidamente, entrou com o garoto nos braços solicitando atendimento, falando em espanhol, misturado com guarani. Precisava de um médico. Foram rápidos, em cinco a dez minutos, foi atendida por um doutor, que encaminhou o garoto para medicação e exames. Parece-me, que o hospital, mantinha uma parceria com a Universidade Central do Paraguai, propiciando, com isso, bom atendimento.

Havíamos chego no hospital, próximo das 20:00 h. Meu primo me ligou e expliquei o que estava ocorrendo. Solicitou para que ficasse tranquilo e ajudasse Cubañita no que necessitasse, pois, ele e a mulher gostavam dela, era uma ótima pessoa.

Após um tempo de espera, no objetivo de passar o tempo perguntei:

- Como veio parar aqui em Pedro Juan Caballero?

- Mi padre, em 2007, fazia parte de um conjunto musical que se apresentava em Pernambuco. Ele e mais dois companheiros, fugiram del grupo, queriam permanecer no país. Em Cuba sofriam pressões, pois, insistiam em estudar ritmos latinos, com isso, eram bastante criticados e perseguidos. Tenia dificuldades de trabalho, fora que ganava pouco. Aproveitando a oportunidade, pediram asilo político. Por um tempo, tiveram miedo que ocorresse com eles, o que ocorrio com dois boxeadores, que se desligaram da delegação dos jogos Pan Americanos, daquele ano, no Brasil. Foram localizados pelo governo brasileiro, que era muito amigo do cubano, e deportados a pedido de Cuba. Há muita versiones nessa história, alegando ser vontade deles, el fato, que después de um tempo, um deles, fugiu de barco para o México.

Busca um copo de água e continua:

- Com isso, ficamos mi madre e yo solas em Cuba. Fue um tiempo difícil, o governo ficava de olhos em nós, devido a mi padre. Mi madre és paraguaia, Despues de várias dificuldades, pois no facilitavam as coisas, ela conseguiu autorização para viajarmos. Su família é daqui de Pedro Juan Caballero. Com isso, viemos parar nesta cidade. Mi padre faleceu, nos primeiros meses no Brasil, no conseguimos nos encontrar de novo. Hoy, soy yo, mi madre, mi tia e mi hijo. Quando saí de Cuba, estaba para casar, mas, por tudo o que ocorria, nós conseguimos sair e ele não. Soube que estava grávida aqui no Brasil. Ele tentou sair, depois, com balseiros, para Miami. É uma travessia arriscada, apesar de somente 150 km de Havana. Morreu afogado no trajeto.

Enquanto me contava, seu olhar se perdia nas lembranças do passado e de tempo em tempo retornava ao presente e ao momento que o filho passava, angustiando o semblante.

Tratei de comprar, água, café e bolachas em uma máquina que havia no corredor. A noite avançava e não havia notícias. Era meia-noite e trinta, ela se desesperava. Vendo aquilo, tratei de entrar pelos corredores, pedindo em altos brados, em português, que queríamos notícias. Um rebuliço iniciou e seguranças foram chamados, trataram de me segurar e puxar para fora da ala interna do hospital.

Cubañita, na mesma aflição, cobrava em seu castelhano/guarani. Os corredores ficaram agitados, até que o médico, que levou o menino para dentro, apareceu, solicitou que nos acalmássemos e nos explicou:

- Mediquei o garoto e solicitei vários exames, para confirmar se é meningite, o que me parece não ser. Caso confirmado, liberarei o paciente para seguir para casa. Um pouco mais de calma.

Ficamos, só nos dois na sala de espera. Olhou para mim, com um pequeno sorriso de alegria e me abraçou. Chorava em meu peito. Só me restava, dar palavras de apoio e consolo, acolher a mãe que relaxava a tensão do momento, e sentir em meus braços, uma mulher que necessitava de amparo.

Depois das duas da manhã fomos liberados. Ela com o pequeno Miguel, envolto nas cobertas. A madrugada era fria. Novamente, nada falando, simplesmente murmurando uma canção de ninar, foi me ensinando o caminho.  Quando chegamos, peguei o garoto de seu colo e ela abrindo a porta, sendo recebida pela mãe e a tia, com quem rapidamente explicou a situação, levei até o seu quarto e coloquei na cama ao lado da sua. Eram duas e meia da manhã, quando me despedi e ela retrucou:

- De forma nenhuma. Vai dormir aqui. É tarde, no conoces la cidade e no ficará andando por aí. Mi cama é grande. Você duerme de um lado e eu do outro. Espera um pouco.

Após um tempo retornou, vestindo um pijama bermuda, trazendo uma toalha nas mãos, uma camiseta larga e um bermudão de sua tia.

- El banheiro é ao lado. Tem uma toalha, caso queira tomar um banho ou só se refrescar e veja se essas roupas sirvem.

Lavei-me, tirei a roupa e vesti a que me dera. Retornei ao quarto. Ela estava deitada do lado da caminha do garoto, parecia dormir. Havia, um pequeno abajur no canto do quarto, conferindo luminosidade ao ambiente. Deitei. Comecei a fechar os olhos, quando, noto um movimento ao meu lado. Abro os olhos e vejo que ela está me observando, com um olhar cheio de amor. Passa a mão com carinho em meu rosto e me dá um beijo, se aconchega em mim e dorme.

Na manhã seguinte, me acorda, dizendo ser dez horas e que o café está na mesa, me aguardando. Me troco, vou ao banheiro, me lavo e sigo para a cozinha, onde, uma mesa com frutas, pães, manteiga, queijo, geleia, leite e café está montada.

- Senta, ali. O que quieres?

Sua mãe se levanta da mesa, pega minhas mãos entre as suas, as beija e me agradece:

- Gracias, fueste um angel que viniste del cielo.

Foi um café da manhã delicioso, conversa agradável, sorrisos e risos, enquanto o pequeno Miguel dormia na sala. Quando me preparava para ir embora, sua tia me abraçou, me beijou o rosto e em brasileiro me disse.

- Marcos, Deus, em determinados momentos nos coloca pessoas no nosso caminho, que de início não sabemos para que, mas depois temos a grande resposta. Obrigado. Precisando de nós, pode contar.

Agradeci, e num abraço de despedida em Cubañita, falei:

- Vou embora, precisando de algo, pode contar comigo.

Abraçando-me se despediu dando um beijo em cada lado da face, mantendo seu olhar dentro do meu por um tempo.

Voltei para Curitiba, começando trabalho novo e iniciando minha faculdade de direito. Meu primo, morou mais um ano em Ponta Porá, sendo posteriormente enviado para Bagé no Rio Grande do Sul. O que soube de La Cubañita, por ele, que continuava trabalhando na boate, onde meu primo ocasionalmente visitava, estudava direito pela manhã e continuava sendo uma linda e simpática mulher, gerenciando um puteiro.

QUINZE ANOS APÓS

Após formado, com mais dois colegas, abrimos um escritório em Campo Grande, que estava em forte crescimento. Tínhamos um bom nome na praça e uma clientela respeitável. Começamos a ter uma grande demanda de trabalho em Dourados, cidade que fica a 250 km de Campo Grande, por parte dos nossos clientes tradicionais.

Resolvemos abrir um escritório local. Por eu ser o solteiro, fui indicado para administrá-lo. Tinha uma bela casa, com piscina, automóvel, uma empregada que vinha duas vezes por semana e a vida que qualquer solteiro pode desejar, aos 32 anos. O que meus sócios não sabiam, era que aceitei a mudança pela distância de Dourados a Ponta Porã ser de 120 km. Desejava encontrar os rastros da La Cubañita, na cidade ou em Pedro Juan Caballero.

Os primeiros meses, foram intensos, instalação da casa do escritório, ações na cidade, ampliação de relacionamentos com as pessoas que já conhecia e com as que conheci.

Nisto, surgiu a ação de um cliente grande de Campo Grande, produtor de soja, tanto no Brasil, quanto no Paraguai, que teve um lote de cocaína, encontrado escondida no meio de uma de suas cargas de soja. Graças aos documentos que possuíamos, o nome e tradição do pecuarista, a carga foi liberada. Entretanto, para finalização do processo, teria que se apresentar em juízo em Pedro Juan Caballero.

A audiência, seria com uns dos três juízes, extremamente renomados, pela perseguição a narcotraficantes: Vallenjuelos, Benitez e Lunares. Eram tão temidos pelo tráfico, que estavam jurados de morte, tendo, já, sofridos atentados.

Na empolgação de ir à cidade poder procurar pelo que me interessava, e pelo fato da audiência ser mera formalidade, estando organizada pelo meu assistente, junto ao cliente, segui na alegria de estar retornando à cidade, após quinze anos.

- Todos de pie para la entrada de la juíza Ana Rosa Vallenjuelos.

Tenho uma grande surpresa!

A juíza era La Cubañita. Devo ter ficado de boca aberta e olhos arregalados.

- Puedem sentar.

Ela deve ter me reconhecido, ao permanecer alguns segundos me encarando, porém, mantendo uma postura rígida, não transparecendo nenhum sentimento. A audiência foi de uns quinze minutos, onde o cliente teve que responder algumas perguntas. Após, houve a formalização da inocência e o encerramento do processo. A audiência transcorreu, para mim, sob uma nebulosidade de sentimentos, não lembrando claramente, como aconteceu.

Como era próximo do almoço, resolvi aguardar na porta de saída do fórum e interpelá-la. Surgiu e principiou a descer as escadas, dirigindo-se para o automóvel que parou a meio fio. Segui em sua direção, de repente, recebi uma forte pancada que me derrubou ao chão, com alguém com o joelho sobre minhas costas, tirando-me o fôlego. Quando ela gritou:

- Pare Santiago, es mi conocido.

Ele me levantou, arrumou meu paletó, enquanto eu tomava fôlego e pegou minha pasta no chão.

- Olá, Marcos. Desculpe, ele é meu guarda-costas. Está se sentindo bem?

- Sim.

- Venha almoçar comigo.

Falava um português de bom nível, apesar do sotaque espanholado. O Santiago, abriu a porta de trás para que entrasse e fez sinal para que eu desse a volta. Sentou-se no banco da frente.

Arrancamos. Sua imagem era fria, parecia uma esfinge egípcia, sorriu um leve sorriso e manteve-se na postura fria que observei durante a audiência. Ao chegarmos ao local, Santiago desceu, deu uma observada geral, abriu a porta para ela, seguindo logo atrás, enquanto eu saia do outro lado e os seguia. O maître, já devia estar acostumado, cumprimentou-a com mesuras e nos levou a uma sala à parte, onde, Santiago, permaneceu à porta.

Tão logo sentou, seu rosto se descontraiu, sorriu, abriu o lindo olhar que me lembrava o passado e com carinho falou:

- Quer dizer que você é advogado e agora atua por aqui. Que maravilha!

Nossa conversa, durante o almoço, transcorreu sobre nossas vidas, nos últimos quinze anos. Ela totalmente desfeita da rigidez da figura, voltando a ser a Cubañita que conheci. Seu olhar, seus lábios, o cabelo, constantemente colocado atrás da orelha e principalmente o sorriso e a voz suave e deliciosa que permanecia em minha memória.

Relatei a minha volta a Curitiba, troca de trabalho, faculdade, o escritório em Campo Grande e agora em Dourados.

Contou-me que continuou trabalhando no “Lunar de Ypacaraí”, estudando de manhã, trabalhando à noite. Manteve a boate sempre longe do lado podre do ramo. Protegia e cuidava das meninas, suas necessidades, família e saúde. Só largou o trabalho quando se formou.

- E teu filho?

- Está estudando direito em uma das cidades do estado de São Paulo. Pelos riscos que vivo, consegui novos documentos para ele, que mora com familiares de minha mãe, com um nome que não o associa comigo. Infelizmente, pelo meu combate, com outros juízes, aos chefões do narcotráfico, recebo inúmeras ameaças. Sofri, inclusive, um atentado, que graça a Deus, não gerou consequências, mas que levou a ter as atuais medidas de segurança.

No retorno, deixou-me próximo do fórum. Forneceu-me seu telefone exclusivo, solicitando que não fosse passado a mais ninguém, e que eu usasse caso tivesse alguma necessidade. Ao me despedir, só tive tempo de dizer:

- Vamos voltar a nos ver.

Ela só sorriu.

Em Dourados, o trabalho foi tomando corpo, a clientela aumentava e além do auxiliar, passei a contar com uma secretária, que atuava como telefonista, quando necessário.

Doutora Ana Rosa, la Cubañita, não me saia da cabeça. Podia sair com qualquer mulher, por mais encantadora e linda que fosse, quando retornava para casa era sua imagem que invadia minha cabeça. Era dia e noite. Estava obcecado. Precisava vê-la.

Em um horário, à noite, quando imaginei que poderia estar em casa, telefonei ao número restrito. Ela tendeu:

- Marcos?

- Olá, Doutora Ana Rosa, ou Cubañita, como devo chamar?

- Somente Rosa.

- Gostaria de poder voltar a almoçar ou jantar contigo. Não sei se quer vir a Dourados ou onde quiser?

- Quer vir almoçar um sábado em minha casa, aqui em Pedro Juan Caballero? Cozinharei para você.

Marcamos. Explicou onde deveria deixar meu veículo e aguardar por seu segurança Santiago.

Sua casa parecia uma fortaleza. Muros altos, um jardim rasteiro na frente, a sala e cozinha voltadas para os fundos com grandes janelas, onde se via uma piscina e muito verde. Por trás, um grande muro protetor, com o que me pareceu, cercas e alarmes. Depois, soube, que, na entrada, havia uma guarita, com seguranças, monitorando, câmeras do lado de fora e em algumas áreas da casa e controlando a abertura do portão.

- Como pode ver, vivo presa. Os bandidos, lá fora, soltos, alegres, divertindo-se e eu aqui emparedada. Quando, tive que implantar estes esquemas de segurança, minha tia, que vivia comigo, acostumada a uma vida simples de povo, com portas abertas, cadeiras na calçada, entrou em processo de estresse. Precisou ir embora. Foi morar com o filho na capital. Minha mãe teve a alegria de me ver formando, mas, louco veio a falecer.

Ela preparou um peixe ao leite de coco, mais arroz e uma deliciosa e diferente salada. De sobremesa, havia alguns doces, que deve ter comprado em alguma padaria de renome na cidade.

Nossa conversa foi agradável, relembrando períodos da infância, das dificuldades que viviam em Cuba, mas da alegria e liberdade que tinha, quando menina. Eu, da minha parte, as artes de moleque. Foi uma tarde deliciosa. No final do dia nos despedimos, com promessas de repetirmos o encontro.

Foram mais duas vezes, num dos sábados, nossa conversa foi até tarde e quando me despedia para ir embora, disse que não.

- É muito tarde. Não quero você pegando estrada nesta hora para Dourados. Durma aqui, tenho quarto sobrado. Lembra, você já fez isso uma vez, no passado? – riu

Concordei. Era uma meia da madrugada, quando noto, ela andando pela sala. Devia estar com insônia. Resolvi levantar e conversar.

- Rosa, não consegue dormir?

- Às vezes, sofro de insônia.

- Posso me sentar ao teu lado, no sofá?

Sento-me perto. Sinto o calor do seu corpo. A luz está a meia-luz. Vejo seus olhos brilhando na penumbra, perscrutando meu semblante. Olho, sorrio. Ela sorri. Não resisto, a tomo nos braços e docemente a beijo. Ela se entrega. Lentamente, tiramos nossas roupas e no caminho vamos soltando nossos desejos. Ao final, uma relação cheia de prazeres e delicadamente saboreada. A realização de um ânsia, que estava em nós, aguardando o momento para se expor. Foi calma, mas profunda nos sentimentos. Dormimos abraçados.

Na manhã seguinte, quando acordo, ela não está a meu lado. Há um jogo de toalhas no pé da cama. Tomo banho e me visto. Na sala o café da manhã está servido. Ela lindíssima, com uma pequena bermuda e camiseta que mal cobre seus seios. A abraço por trás e deposito um beijo em seu pescoço. Rispidamente, diz que sente e que tome o café da manhã.

- Não podemos fazer isso, ter vínculos maiores. Entenda que a vida entre nós dois é impossível. Sou uma mulher jurada de morte, não posso ter junto de mim, pessoas que eu goste, pois, elas podem ser mortas.

- Não me importo Rosa. Caso tenha que morrer contigo, morro, mas quero estar contigo. Eu te amo.

Quase desesperada e em um tom alterado de voz:

- Não, não podemos nos apaixonar! Eu não tenho o direito de ter o teu amor e nem de depositar o meu em você. Não há futuro, não há vida, só a perspectiva de morte. Quero que você vá embora.

Com muito empenho, abraçando-a, chorando, beijando-a, nos despimos e retornarmos a fazer amor com furor, aplacando as incertezas que surgiram naqueles momentos. Passamos a manhã entrelaçados em nossos temores.

Ao me despedir, me faz jurar que não a procure. Afirma, que não mais me receberá. Que eu leve minha vida e ela a dela.

Dois finais de semanas após, a procuro e novamente, o calvário de medo, de dor, do amor e de prazer se repete. Assim, vamos nos vendo, intercalando momentos de distância com reencontros cheios de paixão.

Alguns finais de semanas após, me informa, sigilosamente, o julgamento do Molinete, um dos principais líderes das quadrilhas de narcotráfico da região, após várias reuniões, entre os principais juízes, caiu em suas mãos. Irão reforçar a segurança. Haverá um veículo escolta blindando, com motorista e um segurança, que a acompanhara por onde for. Farão algumas reformas, na edícula da entrada, onde permanecem os seguranças, para mais espaço e beliches. Estão selecionando a dedos os policiais que a protegerão.

- Marco, quando isto vier a público, as ameaças aumentarão, assim como os riscos. Não quero você envolvido nisso.

De novo, falsas promessas de não nos encontrarmos. Para despedida, no final de semana, vamos para um hotel exclusivo perto de Bonito. A simples mudança de cidade, faz com que Rosa se solte. Roupas mais leves, maquiagem primaveril, abraços e palavras de amor a todos os momentos. É a vida que desejamos e que nos é proibida. Naquele final de semana resolvemos esquecer de tudo e aproveitarmos.

A informação do julgamento, quando veio a público, foi notícia em todos os órgãos, tanto no Brasil, quanto no Paraguai. A atuação desse grupo impacta nas cidades em volta, e no fluxo de material enviado para a Europa e Estados Unidos. Portanto, até o FDA, americano, estava de olho no que poderia acontecer.

A tensão em Rosa e nos seguranças, aumentou. Ao sair de casa, uma verificação era feita. O carro escolta sai primeiro e parava em frente, com um dos seguranças de metralhadora na mão. Depois o automóvel de Rosa, sendo imediatamente seguido pelo carro escolta. No Fórum, entrava por uma porta lateral, só descendo do veículo dentro do edifício.

Para aumentar o clima de tensão e terror, os narcotraficantes, metralharam a casa do juiz Lunares. Não visavam atingir ninguém, sim, dar um recado.

Rosa me ligava e pedia desesperadamente que não aparecesse.

- Prefiro morrer contigo, do que viver sem você.

Passaram-se quatro semanas, em que o julgamento estava em andamento e que não nos víamos.

- Quando terminar, nos encontramos.

- Irei este final de semana por aí.

- Não.

Lá eu estava. A mesma cena de sempre, nos abraçamos, nos cobrimos de beijos, tirávamos nossas roupas na ansiedade do momento e fazíamos amor por vária horas, interrompidas por alguma bebida, um banho, uma piscina e almoço.

- Amanhã, haverá uma confraternização das minhas equipes. Oficialmente, não estarei presente. Devo aparecer de surpresa e, na verdade, enquanto as famílias se divertem, definiremos a etapa final do processo, em termos jurídico, logístico e de segurança. Você pode ficar em casa.

- Não, eu irei.

A reunião transcorreu conforme o previsto. Durante a mesma, permaneci em um canto, muito pouco interagindo com as pessoas. Creio que algumas chegaram a pensar que eu fosse um simples guarda-costas.

Quando voltávamos para casa, na estrada, um automóvel surgiu de uma das ruas e emparelhou ao nosso. A janela do passageiro, estava aberta e mostrava a ponta de um lançador de granada,

 Grito para Santiago:

- Agora acabam conosco!

Ele trocou informações com o veículo escolta, que se aproximou e deu uma batida na traseira desse veículo. Esse desiquilíbrio, permitiu que Santiago com sua metralhadora atirasse em direção à janela do perseguidor. Algo aconteceu, pois o veículo guinou a esquerda, saindo da estrada, quando vinha um veículo em sentido contrário. O veículo escolta, parou atrás de nós e fez um bloqueio para o veículo que tentou nos atacar. Houve trocas de tiros.

O escolta os deixou na estrada e veio atrás de nós, pois, temiam novos ataques, o que ocorreu na próxima encruzilhada. Quando um caminhão atravessou a pista, com uma grande camionete. Freamos, o veíoculo escolta passou a nossa frente e começou a atirar contra a camionete, da qual saíram vários indivíduos com armas pesadas. Nós parados.

Turco, nosso motorista, engatou o veículo e seguiu a toda velocidade para a ponta da camionete, para fazê-la rodopiar com a batida e passarmos. Só ouvi o grito:

- Se segura.

Ele bateu com força, a camionete, rodopiou um pouco, dando brecha para passagem, rapidamente, entramos à esquerda no cruzamento. O nosso veículo escolta permaneceu no local, trocando tiros e retendo a movimentação dos bandidos. O caminho foi modificado, avisando pelo rádio o carro escolta e a base. Seguíamos em uma velocidade louca, por pequenas ruelas e travessas, nos distanciando das vias principais, mas seguindo cada vez mais em direção de casa.

Alguns quarteirões depois, o carro escolta se aproximou do nosso, informando que estar tudo bem, pediu para passar a nossa frente, pois nos aproximávamos de casa e queriam garantir que o perímetro de chegada estivesse tranquilo.

Desde o primeiro momento, do ataque, Rosa adquiriu a forma de esfinge, dura, olhando com olhos de águia, firme, sem nenhum sorriso e nem demonstração de medo.

Ao chegarmos em casa, conversou com os seguranças, que já haviam comunicado as autoridades. Entrou. Disse que ia tomar um banho. Em verdade encheu a banheira de água quente e ficou por lá por um bom tempo.

Ao sair, voltou com a mesma cantilena, de que eu não deveria ficar por lá. Disse que nos próximos trinta a quarenta dias se daria o andamento do final do processo. Não me queria por perto. Deu-me um beijo de boa noite e avisou para que eu não estivesse na casa, no dia seguinte, pela manhã. Que fosse embora cedo. Solicitou ao Santiago que monitorasse minha saída. Foi para o quarto e pediu que eu dormisse no de visitas. Fria, como uma esfinge egípcia.

Minha noite foi turbulenta de sentimentos, envolvendo muito medo, por mim e por ela. Revi na mente o que passamos. Não era possível que a bandidagem estivesse nos roubando a vida.

Os trinta dias seguintes, foram agitados e temerosos. A cidade reforçou a segurança, por todos os lados, inclusive com o apoio de força-tarefa composta de policiais do Brasil e do Paraguai. Temiam que os grupos tentassem, em uma ação mirabolante, resgatar o chefão. A segurança era forte nos dois lados da fronteira.

Nesse período, só nos vimos uma vez e graça à forte insistência minha. Passamos sábado e domingo conversando, como se necessitássemos explorar a permanência juntos, o máximo possível.

Depois, dessa ocasião, só conseguia ter notícias pelo Santiago. No final do processo Molinete, mais cinco braços direitos e alguns sicários, foram condenados, entre 20 a 25 anos de prisão. Foi um forte golpe. A polícia paraguaia, mais, a brasileira, manifestaram parabéns ao sistema judicial paraguaio pelos resultados. O fato foi notícia que correu o mundo.

Acabamos, nos encontrando. A ânsia de saciar nossos desejos e de maximizar nosso querer, dominou o sábado. No domingo cedo, a encontro sentada no sofá, com um copo de café na mão e olhando a jardinagem.

- Marco, faz quatro anos que não vejo meu filho. Tenho que ir a uma reunião das polícias e judiciários do cone sul em Bogotá. Na volta, tirarei quarenta dias de férias, encontrarei meu filho em um país da Europa e passearemos junto. Não sei quando poderei fazer isso novamente. Quanto a nós, aqui termina a nossa história. Não quero que você faça parte do que possa haver de triste nela. Sei que me ama, como eu te amo, mas este é um sentimento que não podemos nutrir entre nós. Não me encontrarei mais contigo. Você passará a fazer parte das lembranças.

- Calma, tira férias, viaja e na volta conversamos.

Levantou, me abraçou, como se fosse a última vez, pegou o automóvel que a esperava e saiu. Tive que catar minhas coisas e voltar para Dourados.

Após duas semanas de tristeza e de desejo de vê-la, soube por Santiago, que ela sofria com nossa separação, mas não se queixava. Via-se no semblante. Minha esperança era encontrá-la antes da viagem para a Europa. Retomar nosso amor e reatar nossas vidas juntos, quando voltasse da viagem.

Estava em Bogotá e voltaria no próximo fim de semana.

Estou no escritório em Dourados, quando a secretária diz para ligar a televisão rapidamente. Vejo a notícia: “Juíza Ana Rosa Vallenjuelos, sofreu atentado no aeroporto de Ponta Porã, em retorno de viagem a Colômbia”.

Busco notícias na internet. Falam do atentado, mas não relatam o estado da juíza. Tento falar em seu celular, que não atende, e resolvo ligar para o Santiago, que rapidamente me atende.

- Santiago, como ela está? – pergunto gritando.

Um grande silêncio recai sobre nossa conversa. Noto que ele tem dificuldade em se expressar.

- Como, como aconteceu? Ela tem você de segurança, como conseguiram?

- Um pouco antes do desembarque, ela vestiu o colete à prova de balas, por baixo da jaqueta. Teve prioridade no desembarque. Um pessoal da equipe pegaria sua bagagem. Iriamos sair por uma área aparte. Ocorre que os narcotraficantes estavam a posto, tendo inclusive pessoal do aeroporto com eles, e avisaram a imprensa, que correu para essa área. Tratamos de isolar a imprensa em um canto. Nesse momento o bandido, se aproximou rapidamente e deu dois tiros. Imediatamente reagimos e ele foi morto. A levamos rapidamente para o hospital.

- Como ela está? – pergunto, quase gritando.

- Um dos tiros pegou no colete e o outro no ventre. Ela está sendo operada, para retirar a bala e verificar a extensão do dano.

- Quando posso vê-la?

- Não pode. Toda a área que ela está, no hospital, está interditada. Só os médicos e enfermeiros, mais, a segurança. Não queremos que teu nome seja associado ao dela, senão você também poderá correr riscos.

A notícias, nos dias seguintes, davam informações dela estar entre a vida e a morte, não detalhando o estado. Sobre o atirador, descobriram, que tinha penas pesadas a pagar, junto ao grupo de Molinete, por desvios de drogas da quadrilha. Ele sabia que era matar e morrer.

Foram dias de dor, entre a realidade e o desejo que tudo não passasse de um pesadelo. As notícias surgiam mais claras nos jornais, o que fazia o meu sofrimento aumentar.

Passadas três semanas, recebi um telefonema de Santiago.

- Te ligo, a pedido de la doutora. Ela está bien, pero deverá se afastar, para se tratar. Como sabes, ela deseava fazer una viagem, por uns meses. Ella ficará fora del circuito. Pedió para dizer que te ama, mas não quiere, nunca mais te encontrar. Sabes el por quê.

Foi a última vez que tive contato com o Santiago. Ela viajou e por um bom tempo não surgiu notícias a seu respeito. Tentei contato, procurei no fórum e nada dela. Após seis meses, noticiaram que ela voltara a atividade, mas, que o governo a transferira para a capital, Assunção, onde iria presidir um grupo de policiais e juízes, no combate a lavagem de dinheiro.

No primeiro ano, tentei contatos, que me eram barrados. Fui a Assunção, para tentar algo pessoal, mas, não consegui. O máximo que encontrei, foi Santiago, à distância, que me viu, mas fez que não com a cabeça. Desisti.

Tentei, nos próximos meses, tirá-la da cabeça. Larguei o escritório de Ponta Porã, com um novo sócio, que encontramos na cidade, e voltei para Campo Grande. Tratei de voltar a uma vida social normal. Estive com algumas mulheres, mas, em nenhuma encontrei o que sonhava. Ou seja, ela. Meus sócios, que posteriormente, souberam de minha relação, tratavam com suas mulheres e amigos, de apresentar mulheres, para que me enamorasse e começasse uma vida nova. Passaram-se três anos. Cheguei a viajar de férias, por duas vezes, com mulheres com quem tinha um relacionamento mais intenso, mas nada engrenava. Meus sócios diziam que eu era um caso perdido.

Adquiri uma pequena chácara, as aforas da cidade, onde me recolhia nos finais de semana, com meus cães, minhas flores, meus livros e minhas lembranças. Ocasionalmente, alguns amigos, para um churrasco, algumas pescarias na redondeza e algumas bebedeiras.

Em um sábado o telefone toca e atendo:

- Marcos?

Aquela voz, não pode ser! Ilusão minha, fruto dos meus sonhos. Imagens passam em minha cabeça.

- Rosa, é você?

- Sim.

Um grande sorriso se abriu em meu coração.


amaad

Um comentário:

  1. Parabéns Mário. Essa história me prendeu do começo ao fim. Não consegui parar a leitura. Gostei muito. Valeu! Obrigada

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