As andanças de Adão, e as dores da implantação do metrô para a Zona Leste
1 – ADÃO
2 – ADÃO E
EVA
3 – ADÃO,
EVA E O INFERNO
4 – ADÃO, EVA
E O PURGATÓRIO
5 – ADÃO,
EVA E O PARAÍSO
6 - EPÍLOGO
ADÃO
Adão ficara
órfão aos 9 anos quando seus pais morreram no tombamento de um caminhão de
boias frias. Foi morar com sua tia Bené, irmã de sua mãe, uma solteirona de 56
anos, professora aposentada e com saúde frágil. Ela morava em Itacambira,
cidade com 2.000 habitantes, a 100 km de Montes Claros, metade do caminho para
Salvador ou para o “Sul Maravilha”.
Cuidou dele
como se fora seu filho. Fez o garoto entrar na escola. Aos 12 anos começou a
trabalhar no “Secos e Molhados” do Sr. Moisés. Por dois anos trabalhou só meio
período, para não atrapalhar os estudos. Depois, o dia inteiro, estudando a
noite, pois sua tia exigia que assim o fosse, pois, dizia: “Um homem só se faz
com estudo”.
Ela sempre o
estimulou, para quando falecesse, ir para uma cidade grande, pois
naquele interior não teria futuro. Infelizmente, isso ocorreu quando ele tinha
16 anos. Com a perda da tia resolveu ir para São Paulo, onde tinha um primo que
escrevera alguns meses antes passando seu endereço e dizendo que quando
quisesse ir o ajudaria. A tia tinha algumas parcas economias, que utilizou na
viagem. Um pau de arara até Montes Claros, depois de ônibus até Belo Horizonte após
até São Paulo.
A chegada em
São Paulo, foi assustadora. Parecia que todas as pessoas que podiam haver no
mundo estavam lá. Ônibus igual ao que viajara, tinha de monte. Carro, que vira poucos
na vida, tinha uma infinidade. Precisou tomar cuidado, pois, quase um o pega no
meio fio.
O primo
tinha lhe dito que deveria perguntar como chegar no Mercado Municipal e lá procurar
pela Rua Carlos Souza Nazaré, onde trabalha e procurar por ele no número que
passou.
Estava
morrendo de medo, sentindo-se perdido. Encontrou um conterrâneo que explicou,
bem explicado, como chegar no mercadão.
Precisou
andar um bom pedaço, quando, teve oportunidade de ver que tinha muito mais
gente, ônibus e automóveis que podia imaginar que houvessem na vida.
Teve hora,
que precisou parar, encostar em um canto, vencer o medo e a insegurança e
seguir em frente. Umas duas ou três vezes quase foi pego por veículos. Por
sorte, as pessoas quando perguntavam davam indicação de como chegar.
Aprendeu
logo que tinha que andar na calçada e para atravessar a rua tomar cuidado. Caso
tivesse um luminoso, sabia que quando estava verde podia seguir em frente, como
alguém gritou, quando tentou passar com ele vermelho. Após umas duas horas
chegou. Foi o pior pedaço da viagem.
Informaram
que seu primo saíra para fazer uma entrega, e que ele deveria aguardar um pouco.
Lá ficou sentado observando o movimento. O lugar tinha uma grande quantidade de
sacos de batata, arroz, caixas com legumes, sendo que alguns não conhecia.
Pôde ver o
trabalho dos carregadores, que usavam um carrinho de mão comprido, com duas rodas
de borracha, tendo na ponta uma tábua de quase dois metros, na perpendicular.
Empilhavam as caixas no carrinho. Contou um com 30 caixas, passavam uma corda
nas caixas e amarravam. Depois na hora de transportar, levantavam o carrinho e as
caixas se escoravam umas nas outras na ponta, na madeira que estava na
perpendicular do carrinho, com isso não caíam. Precisava de força e habilidade.
A alegria de
Armindo quando o viu foi enorme. Adão contou as notícias que trazia da cidade,
de seus pais, falou da viagem. Como era hora do almoço, foram comer em um
boteco próximo.
- Adão, eu
já falei pro meu chefe de você. Vai te arrumar uma vaga de carregador como eu.
Pelo menos você começa trabalhando e depois vê se acha algo melhor. Ser
carregador por sua conta precisa de licença e é uma máfia. Aí pode pegar
serviço de qualquer das lojas ou boxes do Mercadão. Muito difícil. Você vai
trabalhar pro armazém. Vai ganhar quase dois salários mínimo. Tendo licença de
autônomo, dá pra ganhar o dobro ou até o triplo, mas, como disse, não é fácil
conseguir a licença, ainda mais pra “paraíba”, como a gente, que acabou de
chegar.
- Paraíba,
mas sou mineiro!
- É como o
pessoal chama a gente por aqui.
- O trampo é
das 6:00 h da manhã às 6:00 h da noite. Para uma hora pra almoço. Descansa no
domingo. Tenho que continuar agora à tarde. Vou te apresentar ao chefe. Depois,
fica por perto e no final do dia vamos embora juntos. Sei que tem lugar na
pensão que moro e você pode ficar lá, consigo com a mulher uns dias para
esperar você receber.
Foram, no
fim do dia, para a pensão. Ficava no Brás, a meia hora dali. O quarto em que
seu primo estava não tinha lugar. Ele ficou em um maior, onde havia seis
pessoas. Logo percebeu, que o pessoal era boa gente. Alguns tinham histórias
parecidas com a sua.
Começou no
dia seguinte a trabalhar. Os comerciantes compravam mercadoria e eles tinham
que colocar no carrinho e levar até onde estava a condução do cliente. Em alguns
casos, os clientes deixavam uma lista para entrega em seus estabelecimentos.
No começo o
trabalho se apresentou bem pesado, pois, seu corpo não estava acostumado. Não
era fácil, levar um carrinho com trinta engradados de verdura. O tempo que os
mais antigos levavam, ele levava o triplo. Chegou a carregar, em uma viagem, 10
sacos de arroz de 40 kg. Ficou arriado. O patrão notou e lhe deu no resto do
dia trabalho leve. O pessoal entendia pelo que ele passava e o ajudavam. Mas,
debaixo de muita gozação.
Um dia foi
chamado para ajudar o Caneta, que assim se chamava por ter as pernas mais fina
do pessoal, mas mesmo assim eram as mais fortes. Tinham que levar vários sacos
e embalagens no Hospital das Clínicas, que ficava no alto, próximo à Avenida Paulista
a 6 km.
Passaram
pela Rua 25 Março, Vale do Anhangabaú, Avenida São João, Ipiranga e depois, eram
40 minutos em um ladeirão de 3 km, pela rua da Consolação. O calçamento era de
paralelepípedos e ainda tinha trilhos dos bondes no chão. Eles encaixavam uma
roda em um dos trilhos para facilitar a subida. Foram duas horas, se revezando,
uma canseira. Na volta era só farra. Um ia em cima do carrinho e o outro
empurrava correndo, ladeira abaixo.
A vida era
dura, de segunda a sábado, levantando cedo, dando um duro até a noite. O que amenizava,
era o clima de amizade que havia entre os funcionários. Algumas vezes parava
para uma talagada, com eles, antes de ir para casa, não podendo ficar até muito
tarde, para não perder a janta da pensão.
Havia
clientes que tinham uma conversa agradável com ele e alguns davam gorjetas, o
que ajudava nas farras de fim de semana.
Sábado à
noite, com os amigos, ia a algum forró na redondeza de onde viviam. Muitas
vezes, no arrasta-pé, se enganchava com uma mulher e terminavam a noite em uma
das ruelas do bairro. Conforme a liberdade da companheira o final de noite era
mais prazeroso ou não.
Sr. Severino
era um dos clientes que apareciam semanalmente e no final dava uma gorjeta. Um
alagoano, forte, simpático, negro, baixo e atarracado. Vivia brincando com todo
mundo. No começo eu o chamava de senhor até que pediu:
- Para de
moléstia, com “senhor” pra cá e “senhor” pra lá. Me chama de Severino.
Normalmente solicitava
por mim, para carregar suas compras e depois pedia para recolher outras
mercadorias em lojas nas ruas laterais do mercado. No final uma gorjeta:
- Pra
cervejinha.
De repente,
ele começou aparecer com uma negra linda. Tinha um olhar brilhante e um
sorriso que iluminava em volta. Um pouco mais baixa que eu. Tenho 1,69, ela devia ter 1,65 m Ela chamava a atenção, pois, tinha o cabelo
cortado baixinho, parecia um menino, mas, não dava para enganar, com uma voz
doce e um jeito delicado. Todo mundo ficou ouriçado.
- É minha
filha. Quem botá graça, vai se vê comigo.
Olhava feio
e depois soltava uma risada.
Após umas
quatro vezes atendendo o Severino e a filha, contei para meu primo que não
conseguia tirar ela da cabeça.
- Olha só, o
nome dela é Eva. Eu e ela, Adão e Eva. É destino.
- Para de
caraminholá. O Severino pode notá e reclamar com o patrão e você perde o
emprego.
Eu ficava
ansioso esperando por ela. Quando eu ia pegar mercadoria nas lojas fora do
Mercadão, enquanto seu pai conversava com o pessoal, nós batíamos um papo. Era
uma delícia, pois, era agradável de conversar. Soube que tinha dois anos menos
que eu, ou seja, 16 anos e estudava à tarde, em um colégio perto de sua casa e
queria ser professora. Adorava lidar com crianças.
3 – ADÃO E
EVA
Meu Deus, eu
estava caído pelas graças da menina. Uma vez tocou meu braço, senti como um
choque em meu corpo. Eu notava, que ela, também, cada vez mais simpatizava
comigo. Um dia tremendo e com gagueira na voz, perguntei se topava tomar um
sorvete comigo, domingo à tarde. Meio encabulada, ela concordou!
- Não deixa
meu pai saber!
Passei uns
dias, que só de pensar no encontro me dava dor de barriga. Comprei até uma
camisa nova.
Marcamos na
esquina da Av. Rangel Pestana, com sua rua, a Carneiro Leão. Era um pouquinho
longe de sua casa, que fica depois da linha do trem, e a 20 minutos da pensão,
com isso esperava não encontrar nenhum conhecido.
A espera foi
angustiante. Temia que não viesse.
Ela veio
acompanhada da amiga Marta e do namorado Romualdo. Segundo me contou, uma
cobria a outra quando tinham que sair, para os pais permitirem.
Fomos
conversando em direção ao Parque D. Pedro II, até o Parque Shangai, que possui montanha-russa,
carrossel, autopista e várias barracas, onde se pode comprar sorvete, pipoca,
algodão-doce e maçã do amor. Dizem ser um dos maiores de São Paulo.
Foram uns 20
ou 30 minutos de caminhada, mas nem notamos. Ela me contando da escola, das
amigas, como auxiliava o pai no seu empório. E eu contando da minha cidade, da
família que perdi e da falta que sinto deles.
Como era
domingo e o tempo estava bom, o parque estava cheio. Comemos algodão-doce,
tomamos sorvete e fomos no carrossel, onde o riso dela era contagiante.
Quando
começou a escurecer, resolvemos voltar. No caminho de volta, nossas mãos se
tocaram e ela segurou a minha. Quase perdi o ritmo da caminhada. Meu coração
disparou e eu não conseguia pensar em nada para falar. Olhei para ela que me
retribuiu com um sorriso. Naquele momento e eu era o cara mais feliz do mundo!
Na esquina
de sua rua, nos despedimos. Como havia muitas pessoas passando, não tivemos
coragem de um beijinho, por pequeno que fosse. Ela seguiu com a Marta. Romualdo
também ficou e passamos a conversar. Ele contou que os pais das duas eram
bravos. Tinham receio que descobrissem o namoro. Trabalhava em um escritório no
centro e morava com os pais em um dos cortiços da redondeza. Nos demos bem,
ficamos amigos.
Aquela
semana eu parecia andar nas nuvens. O pessoal até me gozou, dizendo que eu
parecia estar voando, com os pés fora do chão.
Ela veio com
o pai. Permaneceu séria, mal me olhando. Será que o pai soube da nossa saída? Pensei,
terá desistido de mim? Depois, quando estávamos recolhendo mercadorias nas
lojas fora do mercadão, durante a espera, colocou sua mão sobre a minha e
sorriu. Falou baixinho:
- Adorei o
domingo.
Logo
perguntei:
- Podemos
nos encontrar no próximo?
- Naquele
lugar, na mesma hora. Respondeu.
Até então,
não contara nada para meu primo.
- Tu tá
louco, se o Sr. Severino descobre, te dá uns cascudos e o patrão ainda te manda
embora.
- Quem não
belisca, não petisca.
- Tu é
sortudo, a menina é uma beleza.
Meu primo
falou para tomar cuidado com o entorno do Parque D. Pedro, ouvira histórias de
malandragem.
Como eu também
já tinha ouvido conversas sobre o parque, em uma das tardes que estava
tranquila, resolvi perguntar para o Sr. Soares, nosso patrão.
- Levei uma
garota pra passear no Parque Shangai, mas ouvi que o Parque D. Pedro não anda
seguro. Como sou novo por aqui, podia me esclarecer?
- O paraíba,
arrumou um rabo de saia? Rapidinho.
- Sabe como
é - comecei a gaguejar.
- Calma, é
natural. Depois que o rio Tamanduateí, que era todo tortuoso, foi alinhado,
surgiu o Parque D. Pedro II, onde fica o Parque Shangai, um dos maiores parques
da cidade. No início o D. Pedro, com 450.000 m2, era cheio de belas alamedas
arborizadas com inúmeras espécies e quiosques. Tinha apresentações musicais,
mágicos, bailarinos, festa de carnaval e juninas. As festas, adentravam a
noite, alegrando o povo.
Nele está o
Palácio 9 de Julho, onde ficam os deputados estaduais, que agora estão mudando.
Inclusive, vão trocar o nome para Palácio das Indústrias, porque no passado,
ocorreram várias exposições. Também, tem um quartel no meio do parque. Em 1954,
São Paulo fez 400 anos, na ocasião, o parque foi muito falado com admiração. Diziam,
os barões do café, com maledicência, que o parque separava a cidade dos bairros
industriais.
Vale a pena
levar sua garota para passear e ir no Shangai, mas quando começar a escurecer
saia de lá, a região está se transformando em uma área de jogatina, bebida e
arruaças. Aqui perto da gente, quase em frente ao mercado, do outro lado do rio
Tamanduateí, temos dois grandes edifícios com 27 andares, o São Vito e o
Mercúrio (obs. Foram demolidos no início dos anos 2000), em volta tem muito
vagabundo. Agora, querem construir pontes e viadutos que devem cortar o parque.
Não sei como vai ficar.
No próximo
domingo, voltamos ao Shangai, com Marta e Romualdo. Fomos à montanha-russa. Ela
foi meio temerosa, digo que eu também, mas como macho, fiquei firme. Quando o carrinho
fez a volta lá no alto para começar a descer, deu um frio no estômago de todo
mundo, fora a gritaria, Eva segurou em meu braço e se encostou em mim. Foi uma
sensação maravilhosa. Me senti protetor. Ao longe avistamos o centro da cidade
com a Catedral da Sé e o Edifício do Banco do Estado. O sol se pondo em um
lindo alaranjado, que refletiu em seus cabelos e na pele. Parecia uma deusa.
Depois,
pipoca, maçã do amor, refrigerante e o retorno de mãos dadas, só que a trouxe
um pouco mais perto. Passei minha mão por sua cintura e puxei seu corpo para
junto do meu. Às vezes sua cabeça se encostava em meu ombro. Eu me sentia o
máximo, envolvido por um desejo que aquele momento não acabasse. Marta e
Romualdo riram, quando nos viram abraçados.
No outro
domingo, pediu que não fossemos ao Shangai.
- Há uma
pracinha um pouco distante aqui de casa, mas bem sossegada e é um lugar seguro.
Vou falar com a Marta. Vamos até lá. Podemos sentar em um banco.
A pracinha
passou a ser o local de passarmos a tarde. Ficávamos em um banco e a Marta com
o namorado em outro, um pouco distante. Conversávamos de mãos dadas, trocávamos
pequenos beijos. Soube que seu verdadeiro nome era Evanilda. Nome que não
gostava, porém, todos a chamavam de Eva.
Aguardávamos
que escurecesse e no caminho de volta, descobrimos alguns cantos em que
podíamos nos esconder. Ali abraços e beijos mais quentes, se desenvolviam. Alguns
gemidos ouvíamos da Marta e do Romualdo. Certa ocasião, principiei a desabotoar
sua blusa e ela parou minha investida dizendo:
- Não quero
ser como a Eva da história, levando o Adão ao pecado.
Minha
relação com seu pai, andava muito bem. Em um dos dias, ele me disse:
- Quero
falar contigo.
2 – ADÃO E
EVA
Quase caguei
nas calças. Já me vi virado do avesso, com um supetão me jogando longe.
- O
movimento tá aumentando no Empório e tou precisando de um ajudante. Não vou
pode paga o que ganha por aqui, mas, com o crescimento posso melhorá. Você é
uma pessoa séria e trabalhadora. Fora o salário, arrumo uma pensão pra morá e pago
o aluguel. Almoço e a janta tem lá em casa. O que ganhá é livre.
Após a
tremedeira, aquela proposta era uma benção, pois estava cansado da vida que
levava, fora que não via nenhuma possibilidade de crescimento, além do que,
estaria perto da Eva.
Depois da
despedida dos companheiros e do Sr. Soares que foi um ótimo patrão e não ficou
muito contente de perder um funcionário para um cliente, me despedi de meu
primo, agradecendo a ajuda que me deu, pois tive que mudar para uma pensão
próxima da casa do Severino.
O novo
trabalho era bem mais suave do anterior. Fiquei com a arrumação do estoque,
tendo que colocar tudo o que chegava no lugar. Comecei a atender a freguesia, no
que me dei muito bem, pois pela experiência e como um sujeito alegre, consegui passar isso no meu
trato com eles. Diariamente tinha que fazer entrega de encomendas de clientes na
redondeza. Poucas vezes fui com o Sr. Severino ao Mercadão. Ele preferia que
ficasse atendendo a clientela com sua mulher. Eu torcia para ir, pois, encontraria
os velhos colegas. Dona Enestina, sua esposa, era da altura do marido, 1,65, negra como ele e com um olhar e um falar enternecedor, ao contrário dele, alto e ríspido.
Na maioria
das vezes só via a Eva no jantar. No café da manhã já tinha saído para a
escola. No almoço não havia chegado. Uma vez ou outra aparecia no Empório, pois
o pai disse que com minha contratação ela tinha que estudar e ajudar a mãe.
- Estude
minha filha, não quero que case com um sujeito sem estudo como eu, e passar
tudo que sua mãe e eu passamos.
Aquelas
palavras me transmitiam medo de ser descoberto como namorado, um zé-ninguém,
além de perder o trabalho e pior perder a namorada.
Em alguns
sábados, com muita relutância, o pai deixava que fosse à casa de amiga. Quando era um baile eu dizia poder levar e
trazer, pois também aproveitava para dançar. Acabava concordando, mas alertando:
- Cuidado
com os gaviões.
Mal sabia
ele que o gavião era eu.
De vez em quando, pegávamos o trem, cuja
estação era próxima e íamos até estações mais adiante, como Patriarca, Carlos
Campos, Carrão. Por ser mais longe, andávamos tranquilos pelas ruas e praças.
Passeamos pela Vila Matilde, atravessando a linha do trem, chegando até a Vila
Esperança e Dalila. Na época, estavam construindo um viaduto, que tiraria a
graça de se ver a cancela abaixando, o sinal fechando fazendo barulho e o trem
apitando quando passava.
O programa
que começamos a fazer com frequência era ir ao cinema. Havia inúmeros na
região. As amigas combinavam, irem juntas, e levavam os namorados. No escurinho
da sala, quantos beijos e amassos. Era um programão, tinha um documentário no
começo, trailer e dois filmes, na maioria das vezes. Na saída, tínhamos que
tomar cuidado para não esbarrarmos com algum conhecido.
Para o Sr.
Severino toda vez que Eva pedia para ir, ele resmungava:
- Eu não
gosto de ver essa menina saindo com quem não conheço.
- Deixa
marido, ela vai com as amigas. Conheço várias delas – dizia Dona Ernestina.
- Mulher, cê
tem que ficar de olho nessa menina. Cê sabe os perigos que uma moça passa.
- Severino,
tua filha é uma menina ajuizada. Pode confiá.
Às vezes eu
dizia:
- Fica
tranquilo que vou junto, quero assistir ao filme que tá passando.
- Tá vendo
Severino. O menino vai junto.
Ela
simpatizava comigo. Chegou a me dizer que eu era o filho que não tivera e me
tratava como tal. Eu gostava muito dela. O Sr. Severino era mais fechado
comigo, mas, me tratava bem.
Haviam dois
cinemas enormes próximos, o Universo na Celso Garcia, onde cabiam mais de 4.500
pessoas e que tinha um teto que se abria nas sessões de final de tarde e o
Piratininga na Rangel Pestana, com capacidade para 5.000 pessoas. Quando eu
trabalhava no Mercadão soube que em abril de 1966 o cantor Roberto Carlos, que
eu ouvira algumas músicas pelo rádio, fez um programa de televisão comemorando
24 anos no Cine Universo, porque cabia muita gente.
Próximos
havia a estação de trem Roosevelt (nome de um presidente americano), que muitos
chamavam de Estação do Norte e o Largo da Concórdia, onde havia muitos bares,
marreteiros, produtos nordestinos e uma quantidade grande de pessoas. No largo
havia um posto de correio informal, onde muitas pessoas recebiam e enviavam
cartas e pacotes, principalmente para o norte.
3 – ADÃO,
EVA E O INFERNO
Comecei a
conhecer a região quando das entregas e em alguns dos passeios. O Brás era uma
região tomada por nordestinos, assim como a Mooca, onde havia muitos italianos.
O que
chamava a atenção era a quantidade de cortiços nesses bairros. Muitos, eram
casas voltadas para uma área apertada, onde o esgoto corria pelo meio do
terreno, tanques e banheiros comunitários. Cheguei a ver uma placa, em um
deles: “No máximo 5 minutos”. Em muitos lugares, o banheiro era uma simples
latrina ou uma fossa com um buraco no chão. Galinhas e crianças descalças, em
quantidade, pisando na água suja e no lixo que tinha por todo lado. De vez em quando um rato correndo.
Havia
casarões, onde em cada cômodo vivia uma família, tanque, banheiro e uma cozinha
para todos. Nesses terrenos e casarões o ar era pesado, quase não havia
circulação, pouco cuidado com a limpeza, principalmente nos banheiros.
Constantemente ouvia-se falar de doenças que se espalhavam pelo bairro. Eu
pensava comigo, lá no sertão se não fosse a falta de água, vivíamos melhor.
O Sr.
Juvenildo, um aposentado negro de cabelo branco, dizia com sabedoria:
- Os
políticos e os homes com dinheiro só embeleza o centro, as família operária não
recebe as melhoria da modernização. Isto aqui é a periferia da cidade. Pra cá é
bom vir os nordestino que não para de chegá.
Em muitos
cortiços, como as mães trabalhavam, uma mulher, normalmente a dona do cortiço,
cuidava das crianças, que ficavam largadas, preocupando-se somente com a comida
ou se alguma delas tinha que atender o horário da escola.
Lá
encontrava-se de tudo: quituteira, lavadeira, doméstica, vendedora,
arrumadeira, puta e o que se possa imaginar. Os homens, na grande maioria,
trabalhavam nas indústrias e estabelecimentos que se espalhavam pelas margens
do Rio Tamanduateí ou próximos à linha do trem.
A miséria
nesses cortiços era grande. Toda hora se ouvia falar de brigas por fuxicos de
mulher olhando o marido da outra, briga de crianças. Mas, quando um deles
precisava de ajuda, muitos acorriam. Houve chuvas e a água entrou em muitas dessas
casas. Os vizinhos tratavam de se ajudar. As brigas ficavam de lado.
Comecei a
conhecer muitas pessoas desses lugares. Saber de suas vidas, seus sonhos, suas
dores e o pior, a falta de esperança de poder mudar para algo melhor. Todos
chegaram esperando um futuro de qualidade, se não para eles, para seus filhos.
- Estude
minha filha, não quero que você case com um sujeito sem estudo como eu e passar
tudo que sua mãe e eu passamos.
Aquelas
palavras do Sr. Severino não me saiam da cabeça. Eu não queria ser um qualquer
que gostava de sua filha.
Decidi,
voltar a estudar. Fui atrás com ajuda da Eva e acabei sabendo, que no início do
ano, que não estava longe, poderia começar a fazer o curso médio, à noite,
graças aos estudos que fiz lá no Norte.
Em um dos
meus passeios com Eva lhe disse:
- Você já
percebeu quanta miséria vive em torno da gente. Moram pior que ratos. Não saem
para outros lugares porque fica próximo do trabalho. Passam necessidades, doenças,
chega a faltar comida, fora os problemas que a vida colocou nas costas de cada
um.
Veja a Dona
Liza, mora debaixo de uma escada, o marido, perdeu a mão em uma prensa. Deram
uma miséria de indenização, não era registrado, conseguiu através de um
político, que teve pena dela depois que o marido morreu, uma pequena pensão.
Ele fazia uns bicos de guarda-noturno. Agora mal tem para comer.
O Sr.
Heitor, que tem dois filhos e a mulher doente do peito, sendo que paga uma
vizinha para cuidar dela, fora o que gasta com remédios. Trabalha em dois
empregos. Chega a faltar comida no final do mês.
- Adão, vejo
eles comprarem toda semana no Empório e a conta deles, pelas conversas do pai, estão
mais ou menos em dia.
- Eva, pelo
amor de Deus, não fale para o teu pai. Eu pago parte das contas da Dona Liza e
do Sr. Heitor.
- Adão, você
já não ganha muito e ainda faz isso.
- Ando por
esses cortiços, vejo o que passam. Não aguento. Lá no norte o problema
é falta de chuva, de água, mas vivemos melhor que eles.
- Adão, tem
umas meninas na minha escola que vão ajudar na Igreja de São Vito, aquela das
festas italianas. Vão sábado de tarde e domingo de manhã. Podíamos ir no
domingo conhecer o que fazem.
Com a
desculpa de ir à missa fomos. Era uma turma bacana. Tinha um pessoal de nossa
idade e uns mais velhos. Naquela manhã, estavam separando roupas e alimentos
que tiveram de doação. Chegamos a ir com o pessoal fazer entrega por perto.
Eu e Eva
ficamos felizes. No almoço, só falávamos do grupo e do trabalho que fazem. Vi a
Dona Ernestina ficar emocionada com o que falávamos. O Sr. Severino ficou mais
fechado.
Eva passou a
ir aos sábados à tarde e nos domingos de manhã íamos os dois.
No serviço
eu ia bem. Sr. Severino cada vez mais deixava as coisas nas minhas mãos. A
clientela vivia aumentando, tanto que contratamos o Bolacha, um guri de uns 16
anos, que estudava de manhã e trabalhava fazendo entregas à tarde. A clientela
gostava de mim, eu levava o estoque na ponta do lápis e as contas na ponta da calculadora.
Sr. Severino
começou a ficar mais aberto comigo. Falava do seu passado, dos amigos e contava
piadas. Tinha uma risada gostosa quando as contava e se estava perto de mim,
dava uns tapinhas nas minhas costas e uns pequenos apertos nos ombros. Eu
ficava feliz. Pensava, o sogrão tá gostando de mim.
Mal sabia
que a tempestade estava para chegar. Mentira tem perna curta.
A noite ia
para a escola e nos finais de semana, de manhã a Igreja e a tarde passear com
Eva, quando não, algum trabalho com o pessoal da igreja.
Um dia em
que eu não estava o Sr. Severino falou com a filha e a mulher:
- Eva, não
tô gostando dessas tuas saídas. Com a história da Igreja tu não para mais aqui
nos final de semana.
- Pai, fica
tranquilo, o pessoal é bacana, o Senhor deveria aparecer um dia para ver. No
domingo o Adão também vai ajudar. Ele pode te contar.
- Não sei
não, você e esse moleque não param de estar juntos. Eu já falei pra ele te
respeitá e não começá com lero-lero pro teu lado.
- Severino,
esse garoto é um bom menino. Trabalhador, respeitador, decente. Todo mundo
gosta dele. O Empório tá crescendo, daqui há pouco, vai ter que arranjá um
canto pra guardá as mercadorias.
- Ele é
decente de mais. Muito estranho hoje em dia. Parece que tá sempre sem dinheiro.
Não sei se manda lá pro Norte.
- Pai, vou
te contar, mas, não deixa ele saber. Ele paga contas da Dona Liza, algumas do
Sr. Heitor e de outras pessoas.
- Como é que
é?
- Ele diz
que o pessoal é muito necessitado. Como andou pelos cortiços e ainda vai por
lá, ele vê a miséria das pessoas. Algumas que ele conhece melhor, ele ajuda.
Quando a Eva
me contou a conversa fiquei chateado com ela. Era um segredo.
- Eu quis te
defender, mostrar quem tu és.
Passei uns
dias trabalhando, com a pulga atrás da orelha, não sabia como o Sr. Severino
iria reagir. Ele fez de conta que nada aconteceu.
Fiquei muito
aborrecida pela Eva ter contado para o pai. Lembrei que agora somos um casal, e
o que conversarmos entre nós, se for só assunto nosso, tem que ficar entre nós.
Isso tem que valer para toda a vida. Temos que confiar um no outro.
- Eva.
- Fala mãe.
- Teu pai
anda desconfiado de você e do Adão. Diz que não vai aceitá se ele se embestá
contigo. E não vem me dize que não tem nada entre vocês, que eu sei que tem.
- Alguém
falou alguma coisa?
- Filha, é
só oiá, o jeito que vocês se oia. Como se tratam. Eu vejo que um tá gostando do
outro. Eu gosto do Adão, mas teu pai é birrento. Ele até fala em manda ele
embora se souber de alguma coisa entre vocês.
Eva acabou
me contando a conversa com a mãe, pois está com medo do pai descobrir nosso
namoro. Ficamos, um mal olhando para o outro, durante a semana. Quando íamos ao
cinema, não saíamos de mãos dadas. Vivíamos tensos.
No sábado a
Eva chegou agitada da Igreja.
- Estão
falando que vão desapropriar todos os cortiços, do Braz até a Bresser. Vão
construir uma linha do metrô.
Eu e o Sr.
Severino subimos para ouvirmos a notícia. Deixamos o Bolacha no balcão.
- Quem
falou, isso?
- Foi o Monsenhor
Vitorino.
- Aquele
baixinho e gordinho?
- Ele mesmo.
- Ele é
ligado a Cúria e sabe das coisas. Então é verdade.
Aquela
notícia correu como rastilho de pólvora pelo bairro. Só se falava do assunto no
Empório, na escola, na Igreja. Dizem que saiu nos jornais.
O Monsenhor Vitorino chamou as pessoas para
uma reunião, domingo à tarde na Igreja. O salão estava lotado. Até o Sr.
Severino foi.
- Pessoal
temos que nos organizar. As desapropriações vão acontecer. É o progresso. O
metrô vai ajudar no crescimento da zona leste. Não temos como lutar contra. O
que temos que fazer é lutar para as desapropriações serem pagas a um preço
justo e o pagamento ser rápido. Quem tiver a casa desapropriada, se não receber
o justo, quando for comprar outra casa não consegue. No fim vai ter que buscar
um terreno lá nos confins da zona leste.
Foi um festival
de comentários. Virou uma balbúrdia.
- E quem
mora nos cortiços e que não são donos, o que acontece? – alguém perguntou.
- Esse
pessoal, também, precisa de um apoio muito grande, senão, vão ficar no meio da
rua.
Ai, o
falatório ficou mais forte. Ouviam-se comentários de indignação e de receio.
- Calma
pessoal, calma. O pessoal da Pastoral da Sé irá participar conosco e nos
ajudar. Vamos nos reunir com eles, elaborar um plano de trabalho e chamamos
vocês para conversar.
Na saída,
formaram-se grupos, conversando, discutindo. As pessoas ficaram com receio das
notícias. Os donos de imóveis e os que moravam de aluguel. Vários clientes do
Empório estavam em volta do Senhor Severino, outros vieram conversar comigo e
com a Eva. Não sabíamos direito o que iria acontecer e muito menos o que fazer.
Tinha gente falando em revolver, espingarda, em resistir.
Quando
estávamos nos retirando, o Sr. Evaristo, o sacristão da Igreja e nosso cliente cumprimentou
o Sr. Severino:
- Que bom
que o Senhor veio. Muita gente lhe tem respeito. A Eva e o namorado têm ajudado
muito nos trabalhos com as famílias. Eles formam um casalzinho bonito.
Fiquei
gelado. Olhei para a Eva que ficou pálida. O Sr. Severino não moveu um músculo.
Só se despediu dizendo poderem contar com ele. Virou para nós e numa frase
curta e ríspida:
- Vamos para
casa?
Eu me senti
como se estivesse seguindo o meu velório. Andava um pouco atrás dele, que tinha
Eva ao seu lado de cabeça baixa, olhando para o chão. Em casa chamou sua mulher
e perguntou a filha:
- Que
história é essa de casal bonitinho que o Sr. Evaristo me falou?
- Pai, eu e
o Adão estamos namorando.
- Há quanto
tempo.
- Faz tempo.
- Mulher,
você sabia disso?
- Eu
suspeitava.
- Quer dizer
que o único idiota que não sabia de nada sou eu.
- Sr.
Severino gosto de sua filha e sempre a respeitei.
- Só
faltava. Caso, eu venha sabê que não respeitou minha filha, se considere um homem morto.
A partir de amanhã, não precisa vir trabalhá, só passa pra receber. Não ponha
mais o pé na minha casa e não fale mais com minha filha e minha mulhé.
Apesar do
choro da filha e dos apelos da esposa, ele não arredou pé. Tive que sair como
cachorro com o rabo entre as pernas. Arriado, desanimado e com um choro preso
na garganta e lágrimas nos olhos. Não estava perdendo só a namorada, estava
perdendo uma família.
4 – ADÃO,
EVA E O PURGATÓRIO
Perambulei
como um perdido, sentindo dor no peito, um buraco no coração. Andei sem saber
para onde ir. As ruas que àquela hora estavam vazias e escuras, pareciam-me
sombrias, sem vida. Os poucos que me cumprimentaram, nem os olhei.
Naquela
noite e no dia seguinte, não saí do quarto. Só fui ao banheiro, não quis comer.
Fiquei no escuro, lembrando as feições de Eva, sua mãe. A postura dura e
enérgica do Senhor Severino. Lembrei dos meus pais, da tia, da minha vida no sertão. A
dificuldade de chegar até São Paulo. A vida sem sentido enquanto não a conheci.
Seus primeiros sorrisos, sua mão na minha, os beijos, seu olhar. Deus, eu estava
ficando louco!
No terceiro
dia levantei tarde. Tomei um banho. Consegui um pouco de café e um pedaço de
pão na cozinha da casa e sai, com dois pensamentos. Procurar emprego, por
perto, encontrar a Eva na saída da escola. O velho podia descobrir e me matar.
Melhor morto do que sem ela.
Fui no “Mocó
do Grilo” uma vendinha que fica duas ruas de distância do Sr. Severino. O Grilo
um rapaz de pouco mais de 30 anos, quando pedi para trabalhar, imediatamente
aceitou. Pagava menos que o Sr. Severino, me dava dinheiro para uma refeição e
ficou de pagar a pensão. Como ele fecha às 20:00 h, tive que fazer um acerto, devido
a escola, pois preciso sair às 18:00 h.
Ele abre às 7:30 h da manhã, fiquei de abrir às 7:00 h, só meia hora de
almoço e trabalhar no sábado até o fechamento.
- Adão, tu buliu
com a filha dele, não foi? Aquela menina é ouro pra ele. Ela é um rabo de saia
que vale a pena – e riu gostoso.
À tarde,
passei no Sr. Severino, que pagou o que me devia, mal olhando na minha cara.
- Não
esquece, a pensão este mês é por minha conta. No próximo se vira.
No dia
seguinte comecei o trabalho. Algumas pessoas que me conheciam do Sr. Severino
estranharam. Tive que enrolar, dizendo que ele tinha os planos dele e eu não
fazia parte.
A notícia da
minha mudança correu o bairro. Logo surgiram pessoas dizendo já esperar por isso, pois tinham me visto com a Eva e previam que o pai não
aceitaria.
Como queria
encontra a Eva na saída da escola e o tempo que eu tinha de almoço era curto,
comprei um lanche para comer enquanto conversássemos.
Ela estava
chorosa, falava de sair de casa. A mãe está do seu lado, mas nada adianta. O
pai não quer conversa sobre o assunto. Nem ir à Igreja está permitindo.
Passamos a
nos encontrar todos os dias nesse horário. Comprava uma marmita e comia,
enquanto conversávamos numa das pequenas travessas que havia perto da escola.
- Daqui a uns
meses, faço dezoito anos e podemos fugir. Ir para um lugar que o pai não nos
encontre e começarmos uma vida juntos.
A ideia de
Eva não me agradava. Eu dizia acreditar que seu pai ainda mudaria de ideia.
Tínhamos que ter paciência. Ela precisava continuar com os estudos.
Minha vida
passou a ser trabalho, escola e os momentos em que nos encontrávamos. Neles
ganhava força para a vida. Cada momento, cada toque e cada pequeno beijo
passaram a ter um valor imenso. O medo de sermos descobertos pairava e nos
angustiava.
Um dos
muitos clientes que apareceram no “Mocó do Grilo” foi o Sr. Juventino para quem
eu fornecia uma dose ou duas da branquinha, mais um cafezinho e pagava do meu
bolso.
Gostava de
sua conversa e dos conselhos, dizia que ele era um segundo pai para mim. Sentia
o quanto me queria bem. Às vezes, pressentia lágrimas em seus olhos quando de
nossos bate-papos. Por muitos anos, trabalhara nas indústrias à beira do Rio
Tamanduateí e da linha do trem, até se aposentar. Vivia em um cortiço próximo.
A mulher morrera dois anos atrás e os filhos estavam espalhados pelo país.
Fora
sindicalista e participara dos movimentos em busca de melhorias trabalhistas,
há uns bons anos. Por sua sabedoria muita gente procurava seus conselhos. Eu
era um deles.
- Adão,
estude e trabalhe direito. O Severino é um bom sujeito, uma hora qualqué, vai
acabá vendo a besteira que tá fazendo separando vocês. Não desanima. Tenho
conversado com ele. É um bom sujeito, mas, teimoso como um jumento.
O Sr.
Jacinto contou, que no tempo em que não apareci na Igreja, as coisas
esquentaram. Como o governo é militar e as pessoas têm medo de se manifestarem,
estão sendo removidas sem nenhuma negociação, e pior, sem nenhuma solução
habitacional. O pessoal está se vendo obrigado a ir para as favelas ou para os
bairros no fundão da Zona Leste.
- Adão, tem
uns padres que estão ajudando na paróquia. O pessoá diz que eles são de umas
tais de Comunidade Eclesiais de Base, que estão se formando pela Zona Leste.
Tem um tal de Padre Chico, rapazinho novo, batalhador. Tu vai gostá dele. Vai
por lá, tem muita gente perguntando por você.
Conversando
com Eva, soube de clientes do Empório que estavam tendo quem se mudar para
favelas do Canindé, Belenzinho, Vila Prudente, Sapopemba e para loteamentos
irregulares na periferia, em São Mateus, Itaquera, Guaianazes.
Dava para
notar que pequenas favelas estavam surgindo ou se expandindo nos espaços
próximos à linha do trem.
Resolvi
aparecer no domingo. Fui bem recebido pelos amigos. Abraços e muitos sabendo o
que acontecera comigo disseram palavras de apoio e consolo.
Sr. Jacinto,
tão logo me viu, veio falar comigo e me levou para conhecer o Padre Francisco.
Era um rapaz de 30 anos, barbudo, com um comportamento simples e aparentemente
acanhado. Morava em uma das paróquias da zona leste. Notava-se que tinha uma
boa cultura. Apesar de eu ser cinco anos mais jovem e não ter o mesmo preparo que
ele, a nossa conversa correu bem. Simpatizamos, logo, um com o outro.
Ali começou
uma amizade que foi se solidificando, principalmente nas visitas às famílias em
risco de despejo. Tinha o apoio de outros padres, que faziam parte da Pastoral
da Sé. Dizia defender a Teologia da Libertação.
- O que é
isso?
- Entendemos
que o homem necessita da palavra de Deus para fortalecer a fé na sua batalha,
mas necessita, além do apoio espiritual, de apoio jurídico, político e
financeiro. Temos compromisso com os pobres no enfrentamento das injustiças
sociais.
Aí comecei a
entender porque havia tanta crítica ao trabalho que faziam. Incomodavam a
muitos interesses financeiros e políticos, que defendiam a reurbanização da
cidade, com a remoção da população pobre visando a transformação do espaço
urbano, sem nenhuma preocupação com o ser humano.
Padre Chico
dizia:
- É uma
política de higienização urbana e social, atrás das bandeiras de combate da
pobreza e término das moradias insalubres impróprias para as pessoas e a imagem
da cidade. Só estão buscando a valorização, o crescimento urbano e a modernização
do centro expandido. Áreas residenciais estão sendo substituídas por indústrias
e pela especulação imobiliária. Só não estão preocupados com os moradores da
região. Quem tem imóvel é desapropriado por um valor subvalorizado, tem dificuldade
para receber e quando tenta comprar algo, a valorização e a especulação advinda
da implantação do metrô, fazem com que os imóveis se tornem inacessíveis para o
valor que irão receber. Para onde essas pessoas terão que se mudar? Para locais
distantes, Guaianazes, São Miguel e outros bairros periféricos. Quando pequenas
favelas começam a surgir nesta região elas são fiscalizadas e ameaçadas de
remoção. As existentes estão inchando.
Observávamos,
na nossa região, que a maioria dos afetados são, principalmente, nordestinos
e famílias de baixa renda. Com essas mudanças, distanciam-se do trabalho. O que
faziam a pé ou de bicicleta, agora levam horas, muitas vezes pendurados em
transportes precários e esparsos, obrigando-os a perderem horários de descanso.
Muitos nos procuram desorientados, pois, as
redes sociais e comunitárias que existem nos cortiços e nas vilas operárias
estão se fragmentando e com isso, perdem parte da sua identidade.
Em uma das
nossas reuniões, o Monsenhor Vitorino alertou:
- Com o
avanço do metrô estão surgindo viadutos, avenidas, alargamentos viários,
drenagens. Com a construção das Estações, como a do Brás, que está para ser
inaugurada, grandes áreas foram desapropriadas e passam por um processo de reconfiguração
urbanística, não envolvendo nenhum plano habitacional, o que só agrava a
questão. Estamos tendo um centro modernizado e uma periferia pobre.
- Eva, o
pessoal está começando a fazer manifestações nas áreas a serem desapropriadas,
criar piquetes que obstruam o trabalho de demolição, reuniões de
conscientização nas paróquias. Além do Brás, tem gente se reorganizando em
outras paróquias como a do Belém, da Mooca e do Tatuapé. O Monsenhor Vitorino
nos informou que Dom Paulo, Arcebispo de São Paulo, tem dado apoio a esse trabalho.
As desapropriações estão correndo a todo vapor
- Adão,
estou com receio, pois, algumas das manifestações foram dispersadas na base da
força. Pessoas foram presas. Na escola, uma freira contou, com muito medo, que
algumas pessoas foram torturadas, querendo saber de um plano terrorista visando
derrubar o governo. Uma das meninas, falou que o pai soube que estão vigiando
pessoas envolvidas, como o Monsenhor Vitorino e o Padre Chico.
- Aliás o
Padre Chico me avisou desses fatos. O que vamos fazer, parar? E o povo como
fica?
Em um dos
dias, próximo do horário do almoço, o Sr. Jacinto apareceu na venda nervoso.
- Adão,
estão despejando o cortiço onde mora a Dona Lisa. O Padre Chico disse que
apareceram de surpresa, e pediu para espalhar a notícia para as pessoas correrem
para lá e tentar impedir.
O Grilo
ouviu a conversa e autorizou que corresse para o local que ele cuidava
da venda.
Quando
cheguei, havia gritos e choradeira. Algumas pessoas, já haviam sido retiradas
dos cômodos e estavam na rua com seus pertences entulhados. Policiais brandiam
seus cassetetes, cães raivosos latindo sem parar, ameaças, empurra-empurra,
gritos e choros. Um veículo de bombeiro apagava uma fogueira iniciada pelos
moradores. Parecia um campo de batalha. Avistei o Padre Chico.
- Adão,
vieram no meio da manhã sem avisar. Estávamos negociando a retirada, não
esperaram. Estão agindo em um horário em que os chefes de família não estão.
Quando tento argumentar me batem com os cassetetes. Só consigo, que não batam
em mulheres e crianças, no mais, estão descendo o cacete se não fazem o que
mandam.
- Chico,
para onde vão levar as pessoas?
- Vão largar
aqui na rua e vigiar o cortiço para não retornarem. Estou negociando para levá-los
para o salão paroquial e depois vermos o que podemos fazer.
Encontrei
Dona Lisa, no meio da balbúrdia, entre mulheres, abraçada a um cobertor e tendo
ao seu lado seus poucos pertences. Tinha os cabelos desgrenhados pelo suor da
adrenalina e olhos avermelhados, do muito que deve ter chorado. Era a imagem do
desespero. A abracei, chorou no meu ombro. Sentir seu corpo frágil, leve, dando
a impressão de que se apertasse um pouco mais poderia se fragmentar em meus
braços, me deu a sensação de vazio, de um buraco debaixo dos pés, de
desesperança. Sem muito o que saber para dizer, solicitei que ficasse calma,
iriam para o salão paroquial e encontraríamos uma solução para ela.
O pessoal da
prefeitura, com a maior displicência, esquecendo estarem tratando com iguais,
mas empoderados e cobrados por chefias, mostravam um comportamento bestial, retirando
o que encontravam nos cômodos, esquecendo serem pedaços de vidas e tratando
como lixo, amontoando-os no meio da rua.
A caneca de porcelana do café da manhã, a
roupa ganha já costurada e novamente costurada, o velho cobertor, o
porta-retrato contendo instantâneos de felicidade, o bibelô lembrança de um momento,
todos jogados como entulho.
Ao ver
aquilo, um grito saiu de dentro de mim, como manifestação da dor e da tristeza
que sentia, e corri em direção tentando intervir no que ocorria.
De repente,
uma forte pancada nas costas, caindo no chão, tendo a visão turva, enxergando
botas e um cão com os dentes raivosos latindo próximo de mim. Gritos, choros,
palavras e alguém me arrastando pela terra úmida.
Quando
voltei ao “Moco do Grilo” havia muitas pessoas na porta, trocando informações e
alguns aguardando que eu voltasse com notícias novas. Todo dolorido, contei o
que vi e passei, e manifestando a necessidade de se unirem nos movimentos de
resistência, pois, amanhã será com eles.
Sai um pouco mais cedo e fui até o salão
paroquial. Chegando o pessoal estava alvoroçado, pois, aparecera uma perua Veraneio,
comumente usada pelo pessoal da repressão e dois mastodontes pegaram o Padre
Chico, que estava na porta e o levaram.
O Monsenhor
Vitorino estava falando ao telefone com os padres da Catedral da Sé em busca de
ajuda. Era voz corrente, que quando alguém caia na malha desse pessoal
desaparecia, às vezes em definitivo em outras, após um bom tempo, apareciam machucados
e traumatizados.
Graças a
Deus, o Padre Chico apareceu logo após a minha chegada. Disse estar tudo bem e
seguiu para uma sala em separado para conversar com o Monsenhor Vitorino e
outros padres, me arrastando pelo braço.
- Fui levado
para um local que não sei dizer onde fica. Queriam saber quem estava
organizando os movimentos de resistência. Expus que era o povo. Perguntaram até
onde a Igreja estava influenciando e se o Dom Paulo estava envolvido. Esclareci
que, somente, acolhíamos os paroquianos que nos procuravam e não sabia de nada
envolvendo Dom Paulo. Após uma hora me apertando, resolveram me soltar. Tive
que ficar agachado na perua, não podendo ver por onde andavam e me soltaram a
uns quarteirões daqui. No caminho, disseram que continuariam de olho em mim, no
padreco velho e da turma que andava conosco.
Aquilo me
deu uma dor na espinhela.
No dia
seguinte, no horário habitual, me encontrei com Eva preocupadíssima, pois,
ouvira falar da agressão que eu sofrera. Contei o ocorrido com o Padre
Francisco, não mencionei, a referência ao grupo que o apoiava, para não a
preocupar.
- Adão, o
pai disse para a mãe, procurar alguém para informar você, do que precisasse
para ajudar Dona Lisa, podia contar com ele.
Sorri por
dentro. Aquele homem do sertão, duro nos seus conceitos, por dentro era uma
pessoa boa, a qual, vinha se abrindo comigo, mostrando seu lado humano, no dia
a dia, antes de descobrir meu namoro. Fiquei feliz, era a esperança que no
futuro nosso relacionamento e meu namoro poderiam mudar.
Eva, ficou
com lagrimas nos olhos quando contei este pensamento e minha esperança de
mudança. Terminamos o encontro com um abraço, que continha receio do que
estávamos vivendo, mas, uma alegria de um possível futuro juntos.
Minha vida
ficou muito agitada. O trabalho durante o dia, à noite o estudo e no sábado à
noite e nos domingos a igreja e meu envolvimento no apoio aos desalojados. Meu
pequeno oásis, a meia hora que passava por dia com Eva, no horário do almoço.
Copiando a
ideia da paróquia em abrir um espaço para doações de alimentos, bens e roupas,
propus ao Grilo e pedi a Eva que falasse com seu pai, para fazer o mesmo no
empório.
- Eva, se
teu pai fizer, o Grilo vai acompanhar. Sei que o pessoal é pobre, mas, quem for
fazer uma compra e possa doar meio quilo de arroz, feijão, quatro batatas, uma
pedra de sabão ou o que for possível, ajuntando tudo forma algumas cestas.
O Sr.
Severino comprou a ideia, inclusive com ele colaborando, e o Grilo foi atrás.
Por pouco que fosse a ajuda, as pessoas sentiam-se envolvidas no apoio ao
movimento e sem saber fortaleciam o trabalho do grupo.
Entretanto,
as desapropriações seguiam. Os movimentos foram se ampliando, pois, os planos,
segundo as informações era o metrô ir além da Penha.
- Adão –
dizia Padre Chico – o povo tem que continuar com a pressão por novas moradias.
Terrenos foram comprados há anos em Itaquera, pela COHAB (Companhia
Metropolitana de Habitação de São Paulo), com o BNH (Banco Nacional de
Habitação), visando atacar esses problemas, porém, está ocorrendo com muita
morosidade.
São moradias
longe do centro, com um péssimo sistema de transporte e sem equipamentos
públicos em volta, como escolas, saúde, lazer, fora problemas documentais.
Visam atender famílias de baixa renda. A oferta e menor que a procura. Temos
que participar dos processos de cadastramento para não haver maracutaia. Falam
em outras COHAB no Belém, Bresser, Vila Matilde e até em São Miguel. Temos que
nos organizar para colocar o pessoal despejado nesses locais.
- Chico, com
toda essa morosidade, algumas famílias estão criando novas pequenas favelas,
outras estão indo para as grandes, já conhecidas. Todos querem ficar por perto
do trabalho, da escola, dos seus grupos sociais. Essas COHAB nem começaram a
existir, fora que muitas são longe daqui. Alguns que receberam indenizações
estão comprando terreno para construir em Itaquera. Veja a lonjura.
- Eu soube
que um grupo, que você está encabeçando, conseguiu comprar um barraco, na
favela à beira da linha do trem, próxima daqui, para a Dona Lisa.
- E verdade.
E você não sabe quem mais colaborou. O Sr. Severino!
Ele começou
a rir, e se despediu com tapinhas nas minhas costas.
- Adão,
sábado é aniversário da Marta – contou Eva. Ela veio em casa para me convidar e falar com o
pai para me autorizar ir. O velho na hora não respondeu, ficou de pensar. A mãe
me avisou que convenceu o pai e posso ir, só que acompanhada dela.
- Aí, não adianta nada.
- Você se engana. A mãe falou para eu
te chamar, sem que o pai saiba. Ela te adora. Diz que é o filho que gostaria de
ter.
Começamos a rir, lágrimas vieram aos
olhos. Era demais![MM1]
No dia do aniversário,
cheguei, todo ressabiado, sem jeito. A Marta quando me viu correu para me
abraçar. Dei uma caixa de bombons de presente. Levou-me na cozinha, onde estava
Eva e Dona Ernestina, que ao me ver me abraçou e me deu um beijo.
- Nossa você
está muito magro! Precisa voltar a comer lá em casa. Precisa se cuidar.
Ela estava
com um vestido tubinho branco, acima do joelho, tinha um cinto dourado na
cintura, uma mini botinha branca e maquiada. Ela vinha deixando o cabelo em
estilo afro mais cheio. Usava um colar com contas coloridas e brincos de aro
dourados. Parecia uma hippie que vira em uma revista. Fiquei boquiaberto. Dona
Ernestina falou:
- Para de
ficar de boca aberta e dá um beijo na menina.
Sem jeito
dei um beijo no rosto de Eva. Os dois sorrimos. Peguei-a pela mão e fomos para
sala dançar. Meu Deus, há quanto tempo não sentia o calor do seu corpo tão
perto do meu. Eu estava nas nuvens, não parava de manter meus olhos nos seus,
querendo através deles dizer o quanto a amava. Ela passava sua mão no meu rosto.
Estava me sentindo o dono do mundo.
Pelo canto
dos olhos vi Dona Ernestina conversando com a mãe de Marta e nos observando
dançando. Seus olhos transmitiam carinho. Era mais do que concordância, era
alegria.
Ao fim da
música, encontramos um lugar sossegado no terraço da casa, onde pudemos sentar
próximos. Falamos dos nossos bem-querer, do dia a dia, dos nossos planos e sem
dúvida, o momento que o bairro vivia e no meu envolvimento.
Ela
manifestava preocupação, pois, ouvira sobre a ação brutal da polícia, de
pessoas e padres presos nas manifestações. Falava-se a voz pequena, de pessoas
que desapareciam por razões políticas. Diziam que os militares não estavam
dando nenhuma possibilidade de contestação ao que faziam e queriam. Contou que
na sua escola o assunto virou tabu, não sendo comentado por ninguém.
- Eva, estou
querendo procurar teu pai e pedir desculpas por quebrar a sua confiança.
Mostrar que o coração manda mais que a razão e é difícil se contrapor a ele.
- Não vai,
não. A mãe acha que o pai está perto de ceder. Ele ouve muitos comentários a
seu respeito, e ela nota, que ele fica satisfeito com o que ouve. A mãe pede para a gente esperar um pouquinho mais.
Com o
trabalho e a escola a minha vida estava bem atribulada. Incluindo os compromissos
do domingo, pouco ou nada sobrava de tempo. A angústia de me encontrar com a
Eva as escondidas e por pouco tempo, cada vez mais me angustiava.
O filme
“Love Story” começou a ser exibido no Cine Piratininga. Virou uma febre. Havia
filas nas sessões. Era o assunto predileto das mulheres e meninas que apareciam
no “Mocó do Grilo”. Diziam que até cabra macho chorava. Era para torcer o lenço
de tanto enxugar lágrimas.
Eva contou
que na escola era o assunto do momento. Pedira para o pai deixar que fosse ao
cinema, mas não concordou. Pediu para a mãe ir com ela, assim o pai deixava.
- Eu não vou
ao cinema se teu pai não for.
E ele não
queria assistir ao filme. Dizia ser dramalhão para fazer a mulherada chorar.
Finalmente
Eva e Marta ajuntaram umas amigas, que os pais autorizaram ir ao cinema, e
formaram um grupo. No final os pais de ambas acabaram autorizando, pois, os
comentários no Empório aguçavam cada vez mais a bicha de Eva. No dia, sua mãe
lhe disse:
- Eu sei que
você vai acabá indo com o Adão. No fundo, eu acredito que teu pai também pensa
o mesmo. Ele tá afrouxando. Não dá muita bandeira quando saí do cinema. Sabe
como é. Tem muito fuxiqueiro, que logo na segunda, vai buziná no ouvido do teu
pai.
O filme foi
um mar de lágrimas. Só ouve beijos no começo da sessão, depois, ficamos
amarrados na história. Na saída, todos estavam com os olhos vermelhos. Não
parávamos de comentar o filme, com algumas gozações, pois alguns dos “machões”
tentaram disfarçar que também deixaram rolar lágrimas. Com toda essa a animação
seguimos andando até a Sorveteria do Italiano, na esquina da Bresser. Foi uma
tarde e um começo de noite maravilhoso. Depois deixei a Eva perto de casa, com
beijos e abraços já marcados de saudade.
Depois, Eva comentou
que teve que contar o filme, tim-tim por tim-tim para sua mãe, que fez inúmeras
perguntas e algumas vezes chorou. Seu pai ficou escutando e não reagia, mas,
Eva notava, que alguns momentos ele se emocionava. Depois falou que foram a
sorveteria.
O pai logo
perguntou com que dinheiro pagou o sorvete, pois, vai normalmente com o justo
para o cinema. A mãe, pronto respondeu:
- Eu dei a
mais, pois sabia que queriam tomá um sorvete depois.
O que
animavam os meus dias eram meus pequenos encontros com Eva e os domingos, nos
quais, com o Padre Francisco trabalhávamos junto as famílias. Entrega de
alimentos, reuniões, comissões de moradores, associações de bairros, abaixo
assinados.
Manifestações
ocorriam em várias paróquias da região, algumas junto a prédios públicos. Em poucas
se conseguiu repercussão junto à imprensa. Uma ou outra com a cobertura da
televisão. Tudo era muito dificultoso em função do momento político.
Entretanto, graças a elas, o governo se movimentou e ampliou a oferta de
moradias através da COHAB, apesar que insuficientes para a quantidade de
famílias que necessitavam ser atendidas.
Foi proposta
uma manifestação a ocorrer, em um sábado pela manhã no Largo da Concórdia,
parando a Rangel Pestana e impactando no principal fluxo de acesso ao centro.
Toda a preparação foi feita em sigilo, em reuniões cheias de cuidados, para que
não vazasse a informação até o momento adequado. No tempo que me foi possível
participei da organização. No dia anterior ao evento, pedi ao Grilo que me
liberasse do trabalho no período da manhã. Como ele era favorável a causa
concordou.
No dia,
pessoas começaram a se agrupar no largo. Na sua maioria mulheres, muitas com os
filhos, pois os homens trabalhavam. Eu ajudava, para manter as pessoas no largo
e só quando houvesse um número suficiente fechar a avenida. O comércio do local
ao saber do que iria ocorrer começaram a fechar as portas. A notícia começou a
correr pelo bairro e mais pessoas vieram.
Alguns
órgãos de imprensa, chamados pelos organizadores apareceram, o que significava
que o evento seria noticiado. Logo rádiopatrulhas começaram a surgir, com o
pessoal do trânsito. Era soar de sirenes ecoando das diversas ruas entorno. Quando
a multidão se dirigiu para a avenida e o trânsito parou nos dois sentidos,
buzinaços principiou a ocorrer. O clima, gradualmente, foi se tornando tenso.
Após uma
meia hora, mais sirenas de veículos vindos da região central da cidade. Eram
caminhões transportando tropas de choque, municiados de escudos e cassetetes, e
policiais com cães. Logo, era a multidão de um lado e eles de outro. Chegaram
notícias de alguns ônibus parados nas ruas laterais, o que demonstrava desejo
de levarem presos.
O barulho
era ensurdecedor, sirenes, cães latindo, policiais batendo seus cassetetes nos
escudos, um carro de bombeiros jogando águas nas pessoas, a multidão gritando.
A tensão estava espelhada no rosto de todos.
Eu estava
junto a linha de frente gritando palavras de ordem. Ao meu lado o padre
Francisco e vários padres da região, líderes de associações, donas de casa e moradores.
Gritávamos:
- Moradia!
Casa para a família!
Uma
autoridade do lado policial se aproximou e tentava nos convencer a liberamos a
avenida. Não tendo sucesso, entraram em formação e principiaram a avançar em
nossa direção batendo os cassetetes nos escudos, criando um barulho assustador e lançando granadas de fumaça. Logo atrás policiais com cães, que não paravam de latir.
Da nossa
parte começamos a solicitar que as mulheres com crianças ficassem mais ao fundo
para não serem agredidas. O suor escorria pelo meu rosto, não era de calor, era
de tensão, e como não, de medo. Nos demos os braços. E o pelotão avançava
lentamente. Vi muitas mulheres na linha de frente, inclusive idosas, com
coragem, tão ou mais que muitos homens.
De braços
dados mantínhamos a linha de frente, incitando as pessoas. A poucos passos de mim o rosto crispado de um
policial, suando como eu, o olhar enfurecido, a boca torcida, com um cassetete
que não parava de bater no escudo. Só aguardava a ordem para soltar todo o
sentimento que estava preso dentro de si.
- Avançar!
Quando
algumas pessoas começaram a se dispersar com medo, eles vieram com tudo para
cima de nós, descendo o cacete.
Durante a
ocorrência destes fatos, as pessoas se agrupavam no Mocó do Grilo e no Empório
do Severino em busca de notícias. Comentários desencontrados, muito diz que diz
e só alguns fatos concretos. Ouvia-se ao longe o ecoar das sirenes, o bradar da
multidão. De repente, tudo se ampliou, com o ruído dos cassetetes contra os
escudos, o estourar de bombas, o latir de cães e gritos de pessoas.
Eva e sua
mãe estavam com seu pai no empório ouvindo os diversos comentários. Ao sair a
calçada ouviu o ruído que vinha de longe. Seu coração disparou, pensou no Adão,
teve vontade de correr para lá, mas sua mãe pressentindo o que a filha faria a
segurou. Ela encostou o rosto no ombro da mãe e principiou a chorar dizendo:
- Mãe ele
está lá. Mãe estou com medo do que possa acontecer.
Sua mãe a
acalmava, mas, o choro em convulsão tomou seu corpo. Ernestina abraçava a filha
e olhando para o marido viu em seu semblante o temor estampado. Seus olhos
brilhavam e havia lágrimas vendo o estado da filha.
Algumas
pessoas que estavam na manifestação chegavam correndo ou apressadas. Diziam:
- Vieram
vários batalhões e eles estão dispersando as pessoas com cassetete. Até bombas
de gás soltaram. Pessoas estavam sendo presas, debaixo de pancadaria. Não estão
respeitando nem as mulheres.
- Não são
bandidos. Só querem moradia!
Manifestações
de revolta surgiram entre o pessoal.
Passado uns
vinte minutos os ruídos começaram a diminuir até cessar. Pessoas não paravam de
voltar do local contando o que ocorria, algumas feridas das pancadas que
receberam. Nisso alguém chegou e gritou:
- Prenderam
muitas pessoas. Parece que não estavam prendendo mulheres, mas, levaram moradores,
vários padres, inclusive, o padre Francisco e o Adão.
Aquilo caiu
como um raio sobre Eva, que sentiu as pernas bambearem. Só não caiu ao chão
porque sua mãe a segurava.
Severino
pegou a suas coisas e disse a esposa:
- Cuida do
empório que já volto – e saiu.
Ernestina
teve a ajuda de sua comadre Olívia e do ajudante, ao subir com Eva para a
moradia e retornar para cuidar do empório. Constantemente ia ver a filha.
Vizinhos trouxeram comida, pois, sabia que não estariam com cabeça para
cozinhar. Porém, ela e a filha mal tocaram na comida. Marta veio para ficar com
a amiga.
A tarde
avançou. Elas só ficaram um pouco mais tranquilas quando souberam que o Severino
esteve na igreja, conversando com o Monsenhor Vitorino e com ele e outras
pessoas saindo em um automóvel, segundo informaram para irem à polícia tentar
soltar os presos. Diziam haver um advogado da Cúria junto.
Foi uma
tarde de desassossego, muitas informações vagas. O Grilo saiu de sua venda e
foi até lá para saber se havia notícias. A noite começou a se aproximar.
Fecharam o empório mais cedo.
Severino
saiu apressadamente do empório e seguiu em direção à igreja. Muita gente na
porta, dentro, pelos corredores. Ele seguiu direto para a sacristia, onde,
encontrou o Monsenhor Vitorino em sua mesa com inúmeras pessoas sentadas em
volta e em pé. Por não ser comum vê-lo por lá exclamou:
- O que
houve Sr. Severino?
- Fiquei
sabendo que várias pessoa foram presa, inclusive o Adão. Queria ajudá pra ele
podê volta.
Monsenhor
Vitorino confirmou as prisões, entre elas o Adão que estava com o padre
Francisco defendendo algumas mulheres.
- Sr.
Severino, os dois apanharam bastante. Estamos com receio do estado deles. Estávamos
aguardando este senhor, Dr. Ives, advogado enviado pela cúria para nos
dirigirmos a polícia.
Em dois veículos,
Sr. Severino e algumas das pessoas que lá estavam saíram. Foram à delegacia do
bairro, onde informaram que as pessoas que para lá foram levadas haviam sido
fichadas e liberadas. Souberam que a maioria tinha sido levada para o
famigerado Presídio do Hipódromo. Notícia que não agradou ao grupo.
No local,
tiveram dificuldades para serem atendidos. Ao final, Monsenhor Vitorino mais o
Dr. Ives e dois representantes da cúria conseguiram entrar. Após hora e meia
retornaram. Monsenhor Vitorino explicou.
- Estão sendo
fichados e serão liberados. Vamos aguardar a liberação de todos. O problema
está com o padre Francisco e o Adão. O Dr. Ives esteve com eles, acredita que
por estarem bem machucados queiram segurá-los por mais tempo, para que se
recuperem, alegando terem sido incitadores da manifestação. Explicamos que não
houve incitadores, que o movimento surgiu nas paróquias e junto aos moradores
que estão sendo desalojados. A Igreja só deu abrigo aos pleitos deles. Os dois apanharam
e foram presos por estarem protegendo mulheres e idosos.
- Monsenhor,
não vão soltá-los? – perguntou Severino.
- Está
difícil. Mas vamos insistir.
Em casa Eva
chorava, Ernestina consolava e rezava, a comadre acalmava ambas e também rezava.
Acenderam velas junto a imagem de Nossa Senhora e até promessa fizeram. Já era
noite e não tiveram nenhuma notícia do Severino e da soltura do Adão. Um clima
de angústia foi tomando as mulheres.
O compadre
Bonifácio, marido da Olívia, com o Juvenildo e mais um amigo do Severino, apareceram
por lá. Ouviram muitas conversas, inclusive de terem sido levados para o
presídio da rua do Hipódromo, cuja fama não era boa. A tensão aumentava junto com
o receio de como estaria o Adão e se seria solto.
Eram quase
oito horas da noite, quando um carro parou em frente. Correram para a janela.
Severino desceu do veículo agradecendo. Mais uma pessoa desceu. Nada do Adão.
Abriram a outra porta traseira e em dois o tiraram do automóvel. Via-se que mal
conseguia andar. O carregaram escada acima.
- Mulher,
prepara a cama do quarto de dispensa e vamos colocá ele lá – murmurou Severino
ao entrar em casa.
Eva chorando
correu para abraçá-lo. Tinha uma faixa enrolada na cabeça, um braço em uma
tipoia, escoriações no rosto e mancava de uma perna. Ao ser deitado na cama
demonstrou dores nas costas e no peito.
Bonifácio
foi incumbido de trazer o Vaz proprietário de uma pequena farmácia no bairro.
Fora enfermeiro no pronto-socorro do Hospital das Clínicas, onde se aposentou.
Servia de médico para a comunidade, pois não tinham acesso a médico e se fossem
a um pronto socorro seriam horas de espera para serem atendidos. O doutor Vaz, como
alguns o chamavam, prescrevia medicamentos, suturava feridas, cuidava de
contusões e o que aparecesse.
Após
examinar o Adão, tranquilizou a todos:
- Ele só tem
um raspão na cabeça que deve ter sangrado muito, não tendo levado pancada, o
que poderia ser preocupante. Não tem costelas quebradas nem ossos. Suas dores
são das pancadas que recebeu. Vou prescrever analgésico, porém, peço que ele
fique em observação. Caso tenha algum sintoma diferente me chamem e se for o
caso teremos que levar para um pronto-socorro. Cama por uns dois ou três dias e
poderá se movimentar melhor.
Quando todos
foram embora, as mulheres estavam no quarto cuidando do jovem, ficaram na sala
Severino e o Juvenildo, que lhe perguntou:
- Severino,
você colocou esse garoto pra fora da tua casa e agora correu pra socorrer. Este
preto velho qué entendê o que aconteceu.
- Juvenildo,
eu errei. O amor desses dois é verdadeiro e tem mais, esse garoto é gente boa,
decente e honesto. Já me arrependi e muito. Já tava querendo falá com ele. Quando
aconteceu isso tudo me deu uma dor no coração, tinha que fazê alguma coisa.
Tinha que corrigi um erro. Eu devia tê te escutado lá atrás.
- Fico
feliz, ele é um menino muto bão. Cê não vai se arrependê – deu um tapinha na
perna do Severino, levantou e se despediu.
Os dias
seguintes, foi uma romaria de gente visitando Adão. O velho Juvenildo foi todos
os dias. Até o Grilo e vários clientes vieram visitá-lo. Amigos da escola, da
igreja e de outras comunidades. Era comentário geral que ele e o Padre
Francisco, levado para um seminário onde estava se recuperando, trataram de
proteger um grupo de mulheres e idosos da sanha dos policiais.
Os três dias
que ficou de cama, para Adão, apesar das dores, foi um paraíso. Teve Eva ao seu
lado, no tempo que tinha livre, os carinhos da Dona Ernestina e atenção do Sr.
Severino. Notava que ele esperava um bom momento para conversarem.
No terceiro
dia, quando levantou da cama, Sr. Severino disse querer conversar com ele. Todo
o desassossego que sentiu nos dias que estava de cama se avolumou. O que
estaria por vir? Pensou: resolveu recebê-lo como uma atitude humana e agora
dirá para voltar a sua vida, longe de sua filha. Estava receoso.
- Adão, errei
proibindo o namoro de vocês. Vi que na verdade vocês se gostam. Você é um
garoto bão, trabalhadô e respeitadô. Quero pedi para você voltá a trabalhá
comigo. Vou pagá tua pensão, mas você voltá a comê aqui em casa, inclusive no
domingo. E autorizo namorá com minha filha, mas com respeito.
5 – ADÃO,
EVA E O PARAÍSO
Aquilo foi
como música aos meus ouvidos. Eu parecia estar saindo do inferno e entrando no
paraíso. Agradeci, é claro, ressaltando que sempre respeitaria sua filha.
Quando
contei a Eva, ela chorou de alegria.
Depois, eu soube, que beijou e abraçou os pais agradecendo. Disse que o pai
e a mãe tinham lágrimas nos olhos.
Tão logo eu
pude, fui até o Grilo e pedi a conta agradecendo o tempo que estive por lá.
Contrariado por me perder, comentou:
- Eu sabia
que isso ia acontecer. Aquele alagoano gosta de você.
Minha vida
voltou a deliciosa rotina de trabalhar na Mercearia do Sr. Severino, onde a
clientela, na sua maioria, me conhecia, fora alguns, que infelizmente, o Grilo
perdeu.
Almoçar em
casa com o Sr. Severino e Dona Ernestina, jantar com a Eva presente, fora que
nos víamos em alguns momentos durante o dia. Após voltar da escola e almoçar,
descia na mercearia por uma meia hora, quando conversávamos, enquanto eu
atendia alguns clientes. Algumas
bitocas, quando os pais estavam presentes, e beijos mais molhados, quando não.
Nos
domingos, ia com Eva a igreja para a missa e depois ajudar o pessoal no
trabalho com as famílias. Almoçávamos em casa e voltávamos a igreja. Uma semana
após o meu retorno o padre Francisco também retornou. Estivera em um seminário
onde fora acolhida para se recuperar. Voltamos a atuar junto às comunidades.
O metrô foi
avançando, entretanto, os problemas com os moradores continuavam. As
desapropriações a valores inferiores à possibilidade de compra de um novo
imóvel. O desalojamento da população que morava nos cortiços e nas pequenas
casas, sem opções, empurrando-os para a periferia.
A
especulação imobiliária ocorrendo e mudando o perfil da região com alargamento
de avenidas como a Radial Leste, tuneis, viadutos e o surgimento de grandes
prédios. As indústrias ao longo do rio Tamanduateí e próximas à linha do trem,
gradualmente saindo da região.
Em começo de
1979 foi inaugurado o primeiro trecho do metrô para a zona leste: Sé, D. Pedro,
Brás e Bresser. Depois de quase um ano e meio, Belém e Tatuapé. Em setembro de 1981 o metrô chega a Penha, tendo
antes a estação Carrão.
Sr. Severino
possuía um terreno comprado na Vila Esperança, adquirido no período em que era
um bairro operário com loteamentos populares, muitas ruas de terra e casas
simples, resolveu iniciar a construção de um mercado, maior que o atual, tendo
a casa na parte de cima.
Essa decisão
se deu, logo após a minha soltura em 1974, pois gradualmente vinha perdendo
clientela pelas mudanças que ocorria no entorno. Notava a Vila Esperança estar
tendo um forte crescimento pela proximidade de futuras estações do metrô e da grande
avenida radial leste, que principiava no Parque D. Pedro e adentrava até os
fundos da Zona Leste. Fora, cada vez
mais, estar recebendo propostas melhores pelo seu imóvel. Durante a construção,
muitas tardes, após o almoço dava uma passada na obra para administrar o
andamento.
Adão, passou
a ir no mercadão em algumas manhãs, fora novos fornecedores que fora abrindo.
Com autorização do Sr. Severino, refez inúmeras prateleiras, alugou um espaço próximo
maior do que possuíam, onde melhor organizou o estoque. Pelo aumento das vendas,
conseguiu com fornecedores novas geladeiras para bebidas e produtos perecíveis.
Além do
Bolacha, teve que contratar o Barnabé, que assim era chamado, pois era um
capiau de 18 anos que chegara do interior de São Paulo com a família e que
tinha o falar calmo e cantado da região. Trabalhara com o pai na venda que
possuíram na cidade em que moravam. Era experto e pau para toda obra. Quando
necessário recebia produtos no depósito, conferia, guardava, levava e trazia o
que era necessário de um lado para o outro. O pai falecera e a família se
mudara para a capital, morando com um irmão solteiro de sua mãe. Era animado e
caiu na graça de todos.
Diariamente,
exceto se tivesse um imprevisto, eu esperava Eva na saída da escola e voltava
de mãos dadas e beijinhos, sendo um momento só nosso. No final do ano, ela se
formou como normalista. No próximo iria para a faculdade fazer pedagogia.
Sr. Severino
e a esposa com muita alegria deram uma festa, convidando os amigos deles e da
filha. Dona Ernestina com ajuda de amigas e comadres fizeram os doces e
salgados: sanduíche de carne louca e salsicha, batatinha no molho, petiscos de salsicha, conservas
e queijo no palito espetados em um repolho, brigadeiro, olho de sogra e
queijadinha. Adão e o Sr. Severino empurraram os móveis da sala para os cantos
para poderem dançar. Uma pequena vitrola e os discos que cada um levou.
Durante a
festa Eva falou para Adão:
- Foi a
melhor festa que eu já estive, te amo - e lhe deu um beijo daqueles, pouco se
importando quem estivesse olhando.
Ela o amava
com uma intensidade que nem imaginava que pudesse existir. Adão ficou encantado
com o olhar e o beijo, mas preocupado que os sogros pudessem ter visto.
Durante esse
período, trabalhava, estudava e quando dava, namorava, continuou trabalhando,
com Eva, no apoio, conscientização e nos pleitos sobre moradias. Na expansão os
problemas sofriam pequenas melhoras, mas, continuavam.
Nos finais
de semana podiam sair, desde que, estivessem em casa as dez ou excepcionalmente
as onze horas. Iam ao cinema, onde muitas vezes mal viam o filme. Festas em
casa de amigos, na paróquia e na comunidade. Lugares ermos que passaram a frequentar
e onde encontravam outros casais de namorados, inclusive amigos. O namoro
estava cada mais quente. As mãos corriam por lugares que traziam prazeres e
gozos, mas se mantinham na moral vigente. A mulher tinha que casar virgem.
Ocasionalmente,
quando os pais de Eva visitavam alguns amigos, conseguiam se livrar do
compromisso e não irem. A sós eram momentos maravilhosos. Numa dessas vezes
Adão falou:
- Quero te
ver nua. Não preciso te tocar, só ver.
- Eu também quero– sussurrou Eva.
A abraçou e beijou
levemente seus lábios. Correu sua mão pela face de Eva, como querendo memorizar
cada detalhe, não tirando seus olhos dos delas. Era como uma corrente os prendendo
pelo olhar. Principiou a desabotoar sua blusa, após, lentamente baixar sua
calça. O rosto de Eva tinha um que de vergonha, mas, também, um olhar de desejo.
Seus mamilos rígidos sobre aureolas escuras queriam transpassar o sutiã branco,
na calcinha da mesma cor, pressentia-se a negritude dos pelos, formando uma
pequena onda.
Ela retirou a
blusa dele pela cabeça e tratou de soltar o cinto e baixar sua bermuda. Estava
com uma sunga preta. Ela via e sentia ao apalpar seu sexo em riste, preso na
cueca.
- Quero ver
– e baixou sua cueca – é lindo.
Adão encostou-se
a ela por trás, fazendo com que sentisse a pressão do seu membro. Desabotoou o
sutiã, segurou seus seios. Eram um pouco maiores que a concha das mãos e sentiu
os mamilos rígidos. Voltou-se de frente e se distanciou um pouco para vê-la.
A primeira
reação de Eva foi cobrir os seios. Se deu conta que devia se mostrar, sorriu e
se mostrou. Seu púbis aparado com pelos negros encrespados, como seus cabelos.
Suas formas ondeadas, suaves. Os seios com auréolas negras e mamilos rígidos.
Adão sentiu
um forte desejo envolvido de amor e a abraçou. Beijou sua boca, os olhos, o
rosto, a orelha, o queixo e acabou descendo para os seios.
Eva, sentiu
um calor percorrendo seu corpo e se concentrando em seu sexo. Sentia-se úmida.
Uma grande ternura a envolvia. Correu sua mão pelo seu peito, acariciou os pelos
e sentiu o membro pulsante que havia entre eles.
Deitaram-se
na cama de Eva e ficaram se acariciando e se olhando. O mundo, naquele momento,
eram seus corpos, cada reentrância, cada saliência. O horizonte era a amplitude
de seus olhares. A cada toque eletricidade corria por eles. Ambos
confidenciaram, um ao outro, o grande desejo, que há tempo, tinham de se verem
nus.
- Quando
você está para vir, só de pensar em você, eu fico molhada – Contou Eva um pouco
envergonhada.
- Sonhei
muitas vezes com este momento.
Envolvidos
no enlevo, nos toques, nos desejos, perderam-se nos segundos, nos minutos e
quando se deram conta as horas tinham passado.
O desejo era
enorme, mas, o temor da volta dos pais e pela ousadia do primeiro momento,
trataram de se recompor. Entretanto, aquele instante, abriu uma grande porta no
amor e no prazer dentro do relacionamento.
Como um
estalo, planos de casamentos surgiram para quando se mudassem para a casa nova.
Ela estaria terminando a faculdade de pedagogia e ele estaria no segundo ano na
de administração, faltando mais dois. Eva contou aos país a ideia, o que trouxe
alegria. Com a mãe começou a providenciar o enxoval, enquanto, ele só teria que
se preocupar, quando chegasse a hora, com a compra do quarto do casal, pois, morariam
no início, com os pais dela.
Para a
alegria do casal, Sr. Severino, por necessitar ir constantemente à obra, com
isso atrapalhando o uso do caminhão, acabou comprando um fusca. Nos finais de
semana, pela grande confiança que tinha em Adão, permitia que o usasse nas
saídas com Eva.
- Severino,
você tá soltando muito
- Mulher, esses dois se gostam. Se fizer besteira vão tê que casá antes. Espero que
tenham juízo.
Em muitos
domingos, quando eu e Eva não tínhamos compromissos na Igreja, aproveitávamos e
íamos todos ver o andamento da obra do novo supermercado. Depois, pelos bairros
da região, procurávamos um lugar tranquilo com árvores e fazíamos um
piquenique. Estendíamos uma toalha e usufruíamos do que Eva e sua mãe haviam
preparado. Sanduíches, frango assado, batatinhas no molho, arroz, carne seca.
Às vezes pamonha doce e pedaços de bolo.
Com o Sr.
Severino, algumas manhãs de domingo, fomos assistir partidas de futebol no
estádio do Juventus e da Portuguesa, quando não, em algum campo de várzea.
Também fizemos
pequenas viagens para cidades próximas. Uma das primeiras foi para Aparecida
para cumprir as promessas. Em outra fomos a Praia Grande. Eva depois me contou
o comentário de sua mãe ao seu pai, quando a vi saindo do carro, onde se
trocara, e minha reação de fascinação, com os olhos arregalados.
- Olha a
cara do teu genro vendo tua filha de maiô. Ficou enfeitiçado.
Pelo visto o
pai não gostou muito da observação da esposa. Claro, era sua filha querida.
Para nós, o
momento especial de uso do veículo, era sábado à noite. Quando não tínhamos
compromissos sociais e aproveitávamos para ir a um drive-in, indicado por
amigos, na Marginal do Tiete, perto da ponte da Vila Maria.
Era um amplo
estacionamento, escuro, com baias nas laterais, onde cabia um veículo. Ao
chegar pedíamos uma cuba livre para cada um, uma porção de fritas e depois era
namorar tranquilamente. O rádio com uma musiquinha ao fundo, enquanto com beijos
e abraços usufruíamos das intimidades.
O tempo estava
passando rápido para Adão, em razão do trabalho, escola e atividade na igreja.
O metrô avançava, mas os problemas, na sua maioria, se mantinham. A vantagem era
que os movimentos se ampliaram e criaram bases em outras comunidades, com isso,
o trabalho se distribuiu.
Em 1982 o
Sr. Severino e família se mudaram para a Vila Esperança. Adão estava começando
a faculdade de Administração. Alugou um quarto, em uma casa de família, próximo
do novo “Supermercado Futuro”, que era o melhor da redondeza, onde com a presteza
e cordialidade na atenção a clientela só aumentava.
Com a
mudança, Adão e Eva passaram a trabalhar na paróquia local. Havia muito
serviço, desde atendimento a famílias necessitadas, cursos, festas, apoio aos
desalojados, ajuda a outras paróquias que viviam o impacto das mudanças urbanas.
Eva estava terminando a faculdade e Adão continuava na dele.
No segundo
semestre o casal e a família se viram envolvidos com os preparativos do
casamento, previsto para ocorrer no início do próximo ano. Em novembro
comemoraram a formatura de Eva com a entrega dos diplomas e o baile. Sr.
Severino e a esposa eram só sorrisos de alegria.
Ela estava
lindíssima, como uma princesa usando um vestido tubo rosa-claro até o
tornozelo, cravejado de pedras transparentes, feito por sua mãe. Uma leva tiara
sob o cabelo, também enfeitada com as mesmas pedras. Ele usando pela primeira
vez um terno cinza, feito sob encomenda, que serviria para o casamento e uma
gravata borboleta preta, pareciam saídos de um conto de fadas.
A foto
reunindo todos na formatura foi para uma moldura na sala, pois, era o sinônimo
de realização e felicidade. A mãe, a irmã, a cunhada e a sogra de Sr. Severino
também estavam na foto. Vieram em dezembro, passar as festas juntos e o
casamento no início do ano.
Em janeiro
de 1983, finalmente, se casaram. Houve uma festança em um salão alugado. Adão,
como parente, só teve o primo que inicialmente o recebeu.
Convidaram
os amigos e vizinhos, que a esta altura estavam dispersos pelos diversos
bairros da região. Além dos comes e bebes, com muita comida nordestina, foi
contratado um conjunto, com um casal de cantores, que animou a festa a noite
toda. Sr. Juvenal, junto com a Marta, foram seus padrinhos.
Adão quando
viu Eva, toda de branco com véu e grinalda, contrastando com o moreno de sua
pele, trazida pelos braços de seu pai, começou a chorar. Sr. Juvenal cedeu um
lenço para ele. Estava maravilhosa, seu rosto resplandecia alegria e emoção.
Ele usando o terno da formatura, camisa branca e gravata borboleta vermelha-carmim.
- Você está
lindo – quando foi recebida por Adão.
- Você está
maravilhosa – as palavras mal saindo da boca.
Os noivos no
meio da festa se retiraram para um hotel no centro de São Paulo, onde
usufruíram da noite de núpcias. No dia seguinte seguiriam para Serra Negra. Eva
finalmente pode se entregar, por inteiro, sem medos e ressalvas. Confidenciou,
depois, a amigas íntimas, que apesar de já terem estado juntos nus, sentiu-se
como se fosse a primeira vez, tendo um pouco de receio, que logo foi afugentado
pelos enlaces, beijos, abraços, ou seja, desejos realizados.
No segundo
ano do casamento a família cresceu com a vinda de Dora que trouxe alegria a
família. Os avós, praticamente, viviam pela neta, enquanto os pais trabalhavam.
Adão tinha ideia de abrir outro supermercado em um bairro próximo e Eva estava
lhe auxiliando nos planos. Sr. Severino entrava com a experiência. Chamou o
primo para trabalhar com ele. Pensava em colocá-lo como responsável na nova
filial a ser aberta.
Viveram
felizes para sempre?
Na vida há
momentos de percalços com sofrimentos e dor, porém com amor, confiança e
companheirismo torna-se mais fácil passar por eles.
Pode-se
dizer que se amaram com intensidade e parceria.
6 - EPÍLOGO
O metrô se
dirigiu cada vez mais para a Zona Leste. O impacto da sua chegada levava a uma
constante melhora urbana, com o surgimento de grandes avenidas, e é claro
especulação imobiliária frenética.
Graças as
pressões populares pequenos conjuntos habitacionais surgiram na década de 1970.
Depois, nos inícios da década de 80, começaram os grandes conjuntos, como
Cidade Tiradentes. Um projeto com 40.000 habitações.
No seu
início, os conjuntos, eram totalmente carentes de estruturas sociais. Não havia
escolas, posto de saúde, hospitais e creches. No Cidade Tiradentes, havia,
inclusive, um comércio escasso e incipiente gerando dificuldades para a compra de
alimentos e medicamentos. O transporte público era quase inexistente. Os
moradores levavam horas para chegarem ao trabalho.
Situações
similares ocorriam em outros conjuntos, em que forneceram as moradias, mas a
infraestrutura e os equipamentos públicos não acompanharam o crescimento
populacional. Portanto, o trabalho dos movimentos sociais se fez necessário e constante.
A população
pobre, cada vez mais, tinha que se mudar distante do centro da cidade, para
bairros como São Mateus, Itaquera, São Miguel Paulista, Arthur Alvim e outros.
Favelas
surgiam e outras inchavam em inúmeros bairros como Vila Prudente, Sapopemba e
até hoje a famosa e constantemente inundável nos períodos das chuvas, Pantanal.
No meio de
todo assentamento urbano, na zona leste vários bairros cresceram, outros
surgiram com uma qualidade e um custo de moradia similar a muitos bairros
nobres da cidade. Exemplos: Carrão e Jardim Anália Franco.
Na outra
ponta o metro também foi se expandindo, indo do centro para a zona oeste, onde
a sua construção se fez subterrânea, com muito menos impacto nas desapropriações.
Ao final, a
linha vermelha, zona leste a zona oeste, tendo no seu percurso duas estações de
interligação, possuindo uma extensão de 22 quilômetros e 18 estações. Abaixo as
estações e os anos de inauguração.
Linha 3–Vermelha
1.
Corinthians–Itaquera – 1988
2.
Artur Alvim – 1988
3.
Patriarca – 1988
4.
Guilhermina–Esperança – 1988
5.
Vila Matilde – 1988
6.
Penha – 1986
7.
Carrão–Assaí Atacadista (ex-Vila
Carrão) – 1986
8.
Tatuapé – 1981
9.
Belém – 1981
10.Bresser–Mooca (antes só
“Bresser”) – 1980
11.Brás – 1979
12.Pedro II – 1979
13.Sé – 1978
(integração com Linha 1–Azul)
14.Anhangabaú – 1983
15.República – 1982
(integração com Linha 4 a partir de 2010)
16.Santa
Cecília – 1982
17.Marechal
Deodoro – 1982
18.Palmeiras–Barra
Funda – 1988 (integração com CPTM e rodoviária)
Quando da linha vermelha, já havia a linha 1 azul, da zona norte até a
zona sul, tendo hoje, 23 estações e pouco mais de 20 km.
Hoje temos 105 km de metrô com 91 estações, o que é muito pouco para uma
cidade como São Paulo. O trem metropolitano que se interliga ao metro atinge
380 km com 187 estações. É uma grande malha em expansão, tanto que várias
linhas e estações estão em construção.
Cada nova linha e etapa possuem história que aos poucos são trazidas à
tona.
“PRÓXIMA ESTAÇÃO .............
nhai
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