segunda-feira, 8 de setembro de 2025

BRÁS, BRESSER ... PROXIMA ESTAÇÃO DOR E MODERNIDADE


    As andanças de Adão, e as dores da implantação do metrô para a Zona Leste

1 – ADÃO

2 – ADÃO E EVA

3 – ADÃO, EVA E O INFERNO

4 – ADÃO, EVA E O PURGATÓRIO

5 – ADÃO, EVA E O PARAÍSO

6 - EPÍLOGO

 

ADÃO

Adão ficara órfão aos 9 anos quando seus pais morreram no tombamento de um caminhão de boias frias. Foi morar com sua tia Bené, irmã de sua mãe, uma solteirona de 56 anos, professora aposentada e com saúde frágil. Ela morava em Itacambira, cidade com 2.000 habitantes, a 100 km de Montes Claros, metade do caminho para Salvador ou para o “Sul Maravilha”.

Cuidou dele como se fora seu filho. Fez o garoto entrar na escola. Aos 12 anos começou a trabalhar no “Secos e Molhados” do Sr. Moisés. Por dois anos trabalhou só meio período, para não atrapalhar os estudos. Depois, o dia inteiro, estudando a noite, pois sua tia exigia que assim o fosse, pois, dizia: “Um homem só se faz com estudo”.

Ela sempre o estimulou, para quando falecesse, ir para uma cidade grande, pois naquele interior não teria futuro. Infelizmente, isso ocorreu quando ele tinha 16 anos. Com a perda da tia resolveu ir para São Paulo, onde tinha um primo que escrevera alguns meses antes passando seu endereço e dizendo que quando quisesse ir o ajudaria. A tia tinha algumas parcas economias, que utilizou na viagem. Um pau de arara até Montes Claros, depois de ônibus até Belo Horizonte após até São Paulo.

A chegada em São Paulo, foi assustadora. Parecia que todas as pessoas que podiam haver no mundo estavam lá. Ônibus igual ao que viajara, tinha de monte. Carro, que vira poucos na vida, tinha uma infinidade. Precisou tomar cuidado, pois, quase um o pega no meio fio.

O primo tinha lhe dito que deveria perguntar como chegar no Mercado Municipal e lá procurar pela Rua Carlos Souza Nazaré, onde trabalha e procurar por ele no número que passou.

Estava morrendo de medo, sentindo-se perdido. Encontrou um conterrâneo que explicou, bem explicado, como chegar no mercadão.

Precisou andar um bom pedaço, quando, teve oportunidade de ver que tinha muito mais gente, ônibus e automóveis que podia imaginar que houvessem na vida.

Teve hora, que precisou parar, encostar em um canto, vencer o medo e a insegurança e seguir em frente. Umas duas ou três vezes quase foi pego por veículos. Por sorte, as pessoas quando perguntavam davam indicação de como chegar.

Aprendeu logo que tinha que andar na calçada e para atravessar a rua tomar cuidado. Caso tivesse um luminoso, sabia que quando estava verde podia seguir em frente, como alguém gritou, quando tentou passar com ele vermelho. Após umas duas horas chegou. Foi o pior pedaço da viagem.

Informaram que seu primo saíra para fazer uma entrega, e que ele deveria aguardar um pouco. Lá ficou sentado observando o movimento. O lugar tinha uma grande quantidade de sacos de batata, arroz, caixas com legumes, sendo que alguns não conhecia.

Pôde ver o trabalho dos carregadores, que usavam um carrinho de mão comprido, com duas rodas de borracha, tendo na ponta uma tábua de quase dois metros, na perpendicular. Empilhavam as caixas no carrinho. Contou um com 30 caixas, passavam uma corda nas caixas e amarravam. Depois na hora de transportar, levantavam o carrinho e as caixas se escoravam umas nas outras na ponta, na madeira que estava na perpendicular do carrinho, com isso não caíam. Precisava de força e habilidade.

A alegria de Armindo quando o viu foi enorme. Adão contou as notícias que trazia da cidade, de seus pais, falou da viagem. Como era hora do almoço, foram comer em um boteco próximo.

- Adão, eu já falei pro meu chefe de você. Vai te arrumar uma vaga de carregador como eu. Pelo menos você começa trabalhando e depois vê se acha algo melhor. Ser carregador por sua conta precisa de licença e é uma máfia. Aí pode pegar serviço de qualquer das lojas ou boxes do Mercadão. Muito difícil. Você vai trabalhar pro armazém. Vai ganhar quase dois salários mínimo. Tendo licença de autônomo, dá pra ganhar o dobro ou até o triplo, mas, como disse, não é fácil conseguir a licença, ainda mais pra “paraíba”, como a gente, que acabou de chegar.

- Paraíba, mas sou mineiro!

- É como o pessoal chama a gente por aqui.

- O trampo é das 6:00 h da manhã às 6:00 h da noite. Para uma hora pra almoço. Descansa no domingo. Tenho que continuar agora à tarde. Vou te apresentar ao chefe. Depois, fica por perto e no final do dia vamos embora juntos. Sei que tem lugar na pensão que moro e você pode ficar lá, consigo com a mulher uns dias para esperar você receber.

Foram, no fim do dia, para a pensão. Ficava no Brás, a meia hora dali. O quarto em que seu primo estava não tinha lugar. Ele ficou em um maior, onde havia seis pessoas. Logo percebeu, que o pessoal era boa gente. Alguns tinham histórias parecidas com a sua.

Começou no dia seguinte a trabalhar. Os comerciantes compravam mercadoria e eles tinham que colocar no carrinho e levar até onde estava a condução do cliente. Em alguns casos, os clientes deixavam uma lista para entrega em seus estabelecimentos.

No começo o trabalho se apresentou bem pesado, pois, seu corpo não estava acostumado. Não era fácil, levar um carrinho com trinta engradados de verdura. O tempo que os mais antigos levavam, ele levava o triplo. Chegou a carregar, em uma viagem, 10 sacos de arroz de 40 kg. Ficou arriado. O patrão notou e lhe deu no resto do dia trabalho leve. O pessoal entendia pelo que ele passava e o ajudavam. Mas, debaixo de muita gozação.

Um dia foi chamado para ajudar o Caneta, que assim se chamava por ter as pernas mais fina do pessoal, mas mesmo assim eram as mais fortes. Tinham que levar vários sacos e embalagens no Hospital das Clínicas, que ficava no alto, próximo à Avenida Paulista a 6 km.

Passaram pela Rua 25 Março, Vale do Anhangabaú, Avenida São João, Ipiranga e depois, eram 40 minutos em um ladeirão de 3 km, pela rua da Consolação. O calçamento era de paralelepípedos e ainda tinha trilhos dos bondes no chão. Eles encaixavam uma roda em um dos trilhos para facilitar a subida. Foram duas horas, se revezando, uma canseira. Na volta era só farra. Um ia em cima do carrinho e o outro empurrava correndo, ladeira abaixo.

A vida era dura, de segunda a sábado, levantando cedo, dando um duro até a noite. O que amenizava, era o clima de amizade que havia entre os funcionários. Algumas vezes parava para uma talagada, com eles, antes de ir para casa, não podendo ficar até muito tarde, para não perder a janta da pensão.

Havia clientes que tinham uma conversa agradável com ele e alguns davam gorjetas, o que ajudava nas farras de fim de semana.

Sábado à noite, com os amigos, ia a algum forró na redondeza de onde viviam. Muitas vezes, no arrasta-pé, se enganchava com uma mulher e terminavam a noite em uma das ruelas do bairro. Conforme a liberdade da companheira o final de noite era mais prazeroso ou não.

Sr. Severino era um dos clientes que apareciam semanalmente e no final dava uma gorjeta. Um alagoano, forte, simpático, negro, baixo e atarracado. Vivia brincando com todo mundo. No começo eu o chamava de senhor até que pediu:

- Para de moléstia, com “senhor” pra cá e “senhor” pra lá. Me chama de Severino.

Normalmente solicitava por mim, para carregar suas compras e depois pedia para recolher outras mercadorias em lojas nas ruas laterais do mercado. No final uma gorjeta:

- Pra cervejinha.

De repente, ele começou aparecer com uma negra linda. Tinha um olhar brilhante e um sorriso que iluminava em volta. Um pouco mais baixa que eu. Tenho 1,69, ela devia ter 1,65 m Ela chamava a atenção, pois, tinha o cabelo cortado baixinho, parecia um menino, mas, não dava para enganar, com uma voz doce e um jeito delicado. Todo mundo ficou ouriçado.

- É minha filha. Quem botá graça, vai se vê comigo.

Olhava feio e depois soltava uma risada.

Após umas quatro vezes atendendo o Severino e a filha, contei para meu primo que não conseguia tirar ela da cabeça.

- Olha só, o nome dela é Eva. Eu e ela, Adão e Eva. É destino.

- Para de caraminholá. O Severino pode notá e reclamar com o patrão e você perde o emprego.

Eu ficava ansioso esperando por ela. Quando eu ia pegar mercadoria nas lojas fora do Mercadão, enquanto seu pai conversava com o pessoal, nós batíamos um papo. Era uma delícia, pois, era agradável de conversar. Soube que tinha dois anos menos que eu, ou seja, 16 anos e estudava à tarde, em um colégio perto de sua casa e queria ser professora. Adorava lidar com crianças.

3 – ADÃO E EVA

Meu Deus, eu estava caído pelas graças da menina. Uma vez tocou meu braço, senti como um choque em meu corpo. Eu notava, que ela, também, cada vez mais simpatizava comigo. Um dia tremendo e com gagueira na voz, perguntei se topava tomar um sorvete comigo, domingo à tarde. Meio encabulada, ela concordou!

- Não deixa meu pai saber!

Passei uns dias, que só de pensar no encontro me dava dor de barriga. Comprei até uma camisa nova.

Marcamos na esquina da Av. Rangel Pestana, com sua rua, a Carneiro Leão. Era um pouquinho longe de sua casa, que fica depois da linha do trem, e a 20 minutos da pensão, com isso esperava não encontrar nenhum conhecido.

A espera foi angustiante. Temia que não viesse.

Ela veio acompanhada da amiga Marta e do namorado Romualdo. Segundo me contou, uma cobria a outra quando tinham que sair, para os pais permitirem.

Fomos conversando em direção ao Parque D. Pedro II, até o Parque Shangai, que possui montanha-russa, carrossel, autopista e várias barracas, onde se pode comprar sorvete, pipoca, algodão-doce e maçã do amor. Dizem ser um dos maiores de São Paulo.

Foram uns 20 ou 30 minutos de caminhada, mas nem notamos. Ela me contando da escola, das amigas, como auxiliava o pai no seu empório. E eu contando da minha cidade, da família que perdi e da falta que sinto deles.

Como era domingo e o tempo estava bom, o parque estava cheio. Comemos algodão-doce, tomamos sorvete e fomos no carrossel, onde o riso dela era contagiante.

Quando começou a escurecer, resolvemos voltar. No caminho de volta, nossas mãos se tocaram e ela segurou a minha. Quase perdi o ritmo da caminhada. Meu coração disparou e eu não conseguia pensar em nada para falar. Olhei para ela que me retribuiu com um sorriso. Naquele momento e eu era o cara mais feliz do mundo!

Na esquina de sua rua, nos despedimos. Como havia muitas pessoas passando, não tivemos coragem de um beijinho, por pequeno que fosse. Ela seguiu com a Marta. Romualdo também ficou e passamos a conversar. Ele contou que os pais das duas eram bravos. Tinham receio que descobrissem o namoro. Trabalhava em um escritório no centro e morava com os pais em um dos cortiços da redondeza. Nos demos bem, ficamos amigos.

Aquela semana eu parecia andar nas nuvens. O pessoal até me gozou, dizendo que eu parecia estar voando, com os pés fora do chão.

Ela veio com o pai. Permaneceu séria, mal me olhando. Será que o pai soube da nossa saída? Pensei, terá desistido de mim? Depois, quando estávamos recolhendo mercadorias nas lojas fora do mercadão, durante a espera, colocou sua mão sobre a minha e sorriu. Falou baixinho:

- Adorei o domingo.

Logo perguntei:

- Podemos nos encontrar no próximo?

- Naquele lugar, na mesma hora. Respondeu.

Até então, não contara nada para meu primo.

- Tu tá louco, se o Sr. Severino descobre, te dá uns cascudos e o patrão ainda te manda embora.

- Quem não belisca, não petisca.

- Tu é sortudo, a menina é uma beleza.

Meu primo falou para tomar cuidado com o entorno do Parque D. Pedro, ouvira histórias de malandragem.

Como eu também já tinha ouvido conversas sobre o parque, em uma das tardes que estava tranquila, resolvi perguntar para o Sr. Soares, nosso patrão.

- Levei uma garota pra passear no Parque Shangai, mas ouvi que o Parque D. Pedro não anda seguro. Como sou novo por aqui, podia me esclarecer?

- O paraíba, arrumou um rabo de saia? Rapidinho.

- Sabe como é - comecei a gaguejar.

- Calma, é natural. Depois que o rio Tamanduateí, que era todo tortuoso, foi alinhado, surgiu o Parque D. Pedro II, onde fica o Parque Shangai, um dos maiores parques da cidade. No início o D. Pedro, com 450.000 m2, era cheio de belas alamedas arborizadas com inúmeras espécies e quiosques. Tinha apresentações musicais, mágicos, bailarinos, festa de carnaval e juninas. As festas, adentravam a noite, alegrando o povo.

Nele está o Palácio 9 de Julho, onde ficam os deputados estaduais, que agora estão mudando. Inclusive, vão trocar o nome para Palácio das Indústrias, porque no passado, ocorreram várias exposições. Também, tem um quartel no meio do parque. Em 1954, São Paulo fez 400 anos, na ocasião, o parque foi muito falado com admiração. Diziam, os barões do café, com maledicência, que o parque separava a cidade dos bairros industriais.

Vale a pena levar sua garota para passear e ir no Shangai, mas quando começar a escurecer saia de lá, a região está se transformando em uma área de jogatina, bebida e arruaças. Aqui perto da gente, quase em frente ao mercado, do outro lado do rio Tamanduateí, temos dois grandes edifícios com 27 andares, o São Vito e o Mercúrio (obs. Foram demolidos no início dos anos 2000), em volta tem muito vagabundo. Agora, querem construir pontes e viadutos que devem cortar o parque. Não sei como vai ficar.

No próximo domingo, voltamos ao Shangai, com Marta e Romualdo. Fomos à montanha-russa. Ela foi meio temerosa, digo que eu também, mas como macho, fiquei firme. Quando o carrinho fez a volta lá no alto para começar a descer, deu um frio no estômago de todo mundo, fora a gritaria, Eva segurou em meu braço e se encostou em mim. Foi uma sensação maravilhosa. Me senti protetor. Ao longe avistamos o centro da cidade com a Catedral da Sé e o Edifício do Banco do Estado. O sol se pondo em um lindo alaranjado, que refletiu em seus cabelos e na pele. Parecia uma deusa.

Depois, pipoca, maçã do amor, refrigerante e o retorno de mãos dadas, só que a trouxe um pouco mais perto. Passei minha mão por sua cintura e puxei seu corpo para junto do meu. Às vezes sua cabeça se encostava em meu ombro. Eu me sentia o máximo, envolvido por um desejo que aquele momento não acabasse. Marta e Romualdo riram, quando nos viram abraçados.

No outro domingo, pediu que não fossemos ao Shangai.

- Há uma pracinha um pouco distante aqui de casa, mas bem sossegada e é um lugar seguro. Vou falar com a Marta. Vamos até lá. Podemos sentar em um banco.

A pracinha passou a ser o local de passarmos a tarde. Ficávamos em um banco e a Marta com o namorado em outro, um pouco distante. Conversávamos de mãos dadas, trocávamos pequenos beijos. Soube que seu verdadeiro nome era Evanilda. Nome que não gostava, porém, todos a chamavam de Eva.

Aguardávamos que escurecesse e no caminho de volta, descobrimos alguns cantos em que podíamos nos esconder. Ali abraços e beijos mais quentes, se desenvolviam. Alguns gemidos ouvíamos da Marta e do Romualdo. Certa ocasião, principiei a desabotoar sua blusa e ela parou minha investida dizendo:

- Não quero ser como a Eva da história, levando o Adão ao pecado.

Minha relação com seu pai, andava muito bem. Em um dos dias, ele me disse:

- Quero falar contigo.

2 – ADÃO E EVA

Quase caguei nas calças. Já me vi virado do avesso, com um supetão me jogando longe.

- O movimento tá aumentando no Empório e tou precisando de um ajudante. Não vou pode paga o que ganha por aqui, mas, com o crescimento posso melhorá. Você é uma pessoa séria e trabalhadora. Fora o salário, arrumo uma pensão pra morá e pago o aluguel. Almoço e a janta tem lá em casa. O que ganhá é livre.

Após a tremedeira, aquela proposta era uma benção, pois estava cansado da vida que levava, fora que não via nenhuma possibilidade de crescimento, além do que, estaria perto da Eva.

Depois da despedida dos companheiros e do Sr. Soares que foi um ótimo patrão e não ficou muito contente de perder um funcionário para um cliente, me despedi de meu primo, agradecendo a ajuda que me deu, pois tive que mudar para uma pensão próxima da casa do Severino.

O novo trabalho era bem mais suave do anterior. Fiquei com a arrumação do estoque, tendo que colocar tudo o que chegava no lugar. Comecei a atender a freguesia, no que me dei muito bem, pois pela experiência e como um sujeito alegre, consegui passar isso no meu trato com eles. Diariamente tinha que fazer entrega de encomendas de clientes na redondeza. Poucas vezes fui com o Sr. Severino ao Mercadão. Ele preferia que ficasse atendendo a clientela com sua mulher. Eu torcia para ir, pois, encontraria os velhos colegas. Dona Enestina, sua esposa, era da altura do marido, 1,65, negra como ele e com um olhar e um falar enternecedor, ao contrário dele, alto e ríspido.

Na maioria das vezes só via a Eva no jantar. No café da manhã já tinha saído para a escola. No almoço não havia chegado. Uma vez ou outra aparecia no Empório, pois o pai disse que com minha contratação ela tinha que estudar e ajudar a mãe.

- Estude minha filha, não quero que case com um sujeito sem estudo como eu, e passar tudo que sua mãe e eu passamos.

Aquelas palavras me transmitiam medo de ser descoberto como namorado, um zé-ninguém, além de perder o trabalho e pior perder a namorada.

Em alguns sábados, com muita relutância, o pai deixava que fosse à casa de amiga.  Quando era um baile eu dizia poder levar e trazer, pois também aproveitava para dançar. Acabava concordando, mas alertando:

- Cuidado com os gaviões.

Mal sabia ele que o gavião era eu.

 De vez em quando, pegávamos o trem, cuja estação era próxima e íamos até estações mais adiante, como Patriarca, Carlos Campos, Carrão. Por ser mais longe, andávamos tranquilos pelas ruas e praças. Passeamos pela Vila Matilde, atravessando a linha do trem, chegando até a Vila Esperança e Dalila. Na época, estavam construindo um viaduto, que tiraria a graça de se ver a cancela abaixando, o sinal fechando fazendo barulho e o trem apitando quando passava.

O programa que começamos a fazer com frequência era ir ao cinema. Havia inúmeros na região. As amigas combinavam, irem juntas, e levavam os namorados. No escurinho da sala, quantos beijos e amassos. Era um programão, tinha um documentário no começo, trailer e dois filmes, na maioria das vezes. Na saída, tínhamos que tomar cuidado para não esbarrarmos com algum conhecido.

Para o Sr. Severino toda vez que Eva pedia para ir, ele resmungava:

- Eu não gosto de ver essa menina saindo com quem não conheço.

- Deixa marido, ela vai com as amigas. Conheço várias delas – dizia Dona Ernestina.

- Mulher, cê tem que ficar de olho nessa menina. Cê sabe os perigos que uma moça passa.

- Severino, tua filha é uma menina ajuizada. Pode confiá.

Às vezes eu dizia:

- Fica tranquilo que vou junto, quero assistir ao filme que tá passando.

- Tá vendo Severino. O menino vai junto.

Ela simpatizava comigo. Chegou a me dizer que eu era o filho que não tivera e me tratava como tal. Eu gostava muito dela. O Sr. Severino era mais fechado comigo, mas, me tratava bem.

Haviam dois cinemas enormes próximos, o Universo na Celso Garcia, onde cabiam mais de 4.500 pessoas e que tinha um teto que se abria nas sessões de final de tarde e o Piratininga na Rangel Pestana, com capacidade para 5.000 pessoas. Quando eu trabalhava no Mercadão soube que em abril de 1966 o cantor Roberto Carlos, que eu ouvira algumas músicas pelo rádio, fez um programa de televisão comemorando 24 anos no Cine Universo, porque cabia muita gente.

Próximos havia a estação de trem Roosevelt (nome de um presidente americano), que muitos chamavam de Estação do Norte e o Largo da Concórdia, onde havia muitos bares, marreteiros, produtos nordestinos e uma quantidade grande de pessoas. No largo havia um posto de correio informal, onde muitas pessoas recebiam e enviavam cartas e pacotes, principalmente para o norte.

3 – ADÃO, EVA E O INFERNO

Comecei a conhecer a região quando das entregas e em alguns dos passeios. O Brás era uma região tomada por nordestinos, assim como a Mooca, onde havia muitos italianos.

O que chamava a atenção era a quantidade de cortiços nesses bairros. Muitos, eram casas voltadas para uma área apertada, onde o esgoto corria pelo meio do terreno, tanques e banheiros comunitários. Cheguei a ver uma placa, em um deles: “No máximo 5 minutos”. Em muitos lugares, o banheiro era uma simples latrina ou uma fossa com um buraco no chão. Galinhas e crianças descalças, em quantidade, pisando na água suja e no lixo que tinha por todo lado. De vez em quando um rato correndo.

Havia casarões, onde em cada cômodo vivia uma família, tanque, banheiro e uma cozinha para todos. Nesses terrenos e casarões o ar era pesado, quase não havia circulação, pouco cuidado com a limpeza, principalmente nos banheiros. Constantemente ouvia-se falar de doenças que se espalhavam pelo bairro. Eu pensava comigo, lá no sertão se não fosse a falta de água, vivíamos melhor.

O Sr. Juvenildo, um aposentado negro de cabelo branco, dizia com sabedoria:

- Os políticos e os homes com dinheiro só embeleza o centro, as família operária não recebe as melhoria da modernização. Isto aqui é a periferia da cidade. Pra cá é bom vir os nordestino que não para de chegá.

Em muitos cortiços, como as mães trabalhavam, uma mulher, normalmente a dona do cortiço, cuidava das crianças, que ficavam largadas, preocupando-se somente com a comida ou se alguma delas tinha que atender o horário da escola.

Lá encontrava-se de tudo: quituteira, lavadeira, doméstica, vendedora, arrumadeira, puta e o que se possa imaginar. Os homens, na grande maioria, trabalhavam nas indústrias e estabelecimentos que se espalhavam pelas margens do Rio Tamanduateí ou próximos à linha do trem.

A miséria nesses cortiços era grande. Toda hora se ouvia falar de brigas por fuxicos  de mulher olhando o marido da outra, briga de crianças. Mas, quando um deles precisava de ajuda, muitos acorriam. Houve chuvas e a água entrou em muitas dessas casas. Os vizinhos tratavam de se ajudar. As brigas ficavam de lado.

Comecei a conhecer muitas pessoas desses lugares. Saber de suas vidas, seus sonhos, suas dores e o pior, a falta de esperança de poder mudar para algo melhor. Todos chegaram esperando um futuro de qualidade, se não para eles, para seus filhos.

- Estude minha filha, não quero que você case com um sujeito sem estudo como eu e passar tudo que sua mãe e eu passamos.

Aquelas palavras do Sr. Severino não me saiam da cabeça. Eu não queria ser um qualquer que gostava de sua filha.

Decidi, voltar a estudar. Fui atrás com ajuda da Eva e acabei sabendo, que no início do ano, que não estava longe, poderia começar a fazer o curso médio, à noite, graças aos estudos que fiz lá no Norte.

Em um dos meus passeios com Eva lhe disse:

- Você já percebeu quanta miséria vive em torno da gente. Moram pior que ratos. Não saem para outros lugares porque fica próximo do trabalho. Passam necessidades, doenças, chega a faltar comida, fora os problemas que a vida colocou nas costas de cada um.

Veja a Dona Liza, mora debaixo de uma escada, o marido, perdeu a mão em uma prensa. Deram uma miséria de indenização, não era registrado, conseguiu através de um político, que teve pena dela depois que o marido morreu, uma pequena pensão. Ele fazia uns bicos de guarda-noturno. Agora mal tem para comer.

O Sr. Heitor, que tem dois filhos e a mulher doente do peito, sendo que paga uma vizinha para cuidar dela, fora o que gasta com remédios. Trabalha em dois empregos. Chega a faltar comida no final do mês.

- Adão, vejo eles comprarem toda semana no Empório e a conta deles, pelas conversas do pai, estão mais ou menos em dia.

- Eva, pelo amor de Deus, não fale para o teu pai. Eu pago parte das contas da Dona Liza e do Sr. Heitor.

- Adão, você já não ganha muito e ainda faz isso.

- Ando por esses cortiços, vejo o que passam. Não aguento. Lá no norte o problema é falta de chuva, de água, mas vivemos melhor que eles.

- Adão, tem umas meninas na minha escola que vão ajudar na Igreja de São Vito, aquela das festas italianas. Vão sábado de tarde e domingo de manhã. Podíamos ir no domingo conhecer o que fazem.

Com a desculpa de ir à missa fomos. Era uma turma bacana. Tinha um pessoal de nossa idade e uns mais velhos. Naquela manhã, estavam separando roupas e alimentos que tiveram de doação. Chegamos a ir com o pessoal fazer entrega por perto.

Eu e Eva ficamos felizes. No almoço, só falávamos do grupo e do trabalho que fazem. Vi a Dona Ernestina ficar emocionada com o que falávamos. O Sr. Severino ficou mais fechado.

Eva passou a ir aos sábados à tarde e nos domingos de manhã íamos os dois.

No serviço eu ia bem. Sr. Severino cada vez mais deixava as coisas nas minhas mãos. A clientela vivia aumentando, tanto que contratamos o Bolacha, um guri de uns 16 anos, que estudava de manhã e trabalhava fazendo entregas à tarde. A clientela gostava de mim, eu levava o estoque na ponta do lápis e as contas na ponta da calculadora.

Sr. Severino começou a ficar mais aberto comigo. Falava do seu passado, dos amigos e contava piadas. Tinha uma risada gostosa quando as contava e se estava perto de mim, dava uns tapinhas nas minhas costas e uns pequenos apertos nos ombros. Eu ficava feliz. Pensava, o sogrão tá gostando de mim.

Mal sabia que a tempestade estava para chegar. Mentira tem perna curta.

A noite ia para a escola e nos finais de semana, de manhã a Igreja e a tarde passear com Eva, quando não, algum trabalho com o pessoal da igreja.

Um dia em que eu não estava o Sr. Severino falou com a filha e a mulher:

- Eva, não tô gostando dessas tuas saídas. Com a história da Igreja tu não para mais aqui nos final de semana.

- Pai, fica tranquilo, o pessoal é bacana, o Senhor deveria aparecer um dia para ver. No domingo o Adão também vai ajudar. Ele pode te contar.

- Não sei não, você e esse moleque não param de estar juntos. Eu já falei pra ele te respeitá e não começá com lero-lero pro teu lado.

- Severino, esse garoto é um bom menino. Trabalhador, respeitador, decente. Todo mundo gosta dele. O Empório tá crescendo, daqui há pouco, vai ter que arranjá um canto pra guardá as mercadorias.

- Ele é decente de mais. Muito estranho hoje em dia. Parece que tá sempre sem dinheiro. Não sei se manda lá pro Norte.

- Pai, vou te contar, mas, não deixa ele saber. Ele paga contas da Dona Liza, algumas do Sr. Heitor e de outras pessoas.

- Como é que é?

- Ele diz que o pessoal é muito necessitado. Como andou pelos cortiços e ainda vai por lá, ele vê a miséria das pessoas. Algumas que ele conhece melhor, ele ajuda.

Quando a Eva me contou a conversa fiquei chateado com ela. Era um segredo.

- Eu quis te defender, mostrar quem tu és.

Passei uns dias trabalhando, com a pulga atrás da orelha, não sabia como o Sr. Severino iria reagir. Ele fez de conta que nada aconteceu.

Fiquei muito aborrecida pela Eva ter contado para o pai. Lembrei que agora somos um casal, e o que conversarmos entre nós, se for só assunto nosso, tem que ficar entre nós. Isso tem que valer para toda a vida. Temos que confiar um no outro.

- Eva.

- Fala mãe.

- Teu pai anda desconfiado de você e do Adão. Diz que não vai aceitá se ele se embestá contigo. E não vem me dize que não tem nada entre vocês, que eu sei que tem.

- Alguém falou alguma coisa?

- Filha, é só oiá, o jeito que vocês se oia. Como se tratam. Eu vejo que um tá gostando do outro. Eu gosto do Adão, mas teu pai é birrento. Ele até fala em manda ele embora se souber de alguma coisa entre vocês.

Eva acabou me contando a conversa com a mãe, pois está com medo do pai descobrir nosso namoro. Ficamos, um mal olhando para o outro, durante a semana. Quando íamos ao cinema, não saíamos de mãos dadas. Vivíamos tensos.

No sábado a Eva chegou agitada da Igreja.

- Estão falando que vão desapropriar todos os cortiços, do Braz até a Bresser. Vão construir uma linha do metrô.

Eu e o Sr. Severino subimos para ouvirmos a notícia. Deixamos o Bolacha no balcão.

- Quem falou, isso?

- Foi o Monsenhor Vitorino.

- Aquele baixinho e gordinho?

- Ele mesmo.

- Ele é ligado a Cúria e sabe das coisas. Então é verdade.

Aquela notícia correu como rastilho de pólvora pelo bairro. Só se falava do assunto no Empório, na escola, na Igreja. Dizem que saiu nos jornais.

 O Monsenhor Vitorino chamou as pessoas para uma reunião, domingo à tarde na Igreja. O salão estava lotado. Até o Sr. Severino foi.

- Pessoal temos que nos organizar. As desapropriações vão acontecer. É o progresso. O metrô vai ajudar no crescimento da zona leste. Não temos como lutar contra. O que temos que fazer é lutar para as desapropriações serem pagas a um preço justo e o pagamento ser rápido. Quem tiver a casa desapropriada, se não receber o justo, quando for comprar outra casa não consegue. No fim vai ter que buscar um terreno lá nos confins da zona leste.

Foi um festival de comentários. Virou uma balbúrdia.

- E quem mora nos cortiços e que não são donos, o que acontece? – alguém perguntou.

- Esse pessoal, também, precisa de um apoio muito grande, senão, vão ficar no meio da rua.

Ai, o falatório ficou mais forte. Ouviam-se comentários de indignação e de receio.

- Calma pessoal, calma. O pessoal da Pastoral da Sé irá participar conosco e nos ajudar. Vamos nos reunir com eles, elaborar um plano de trabalho e chamamos vocês para conversar.

Na saída, formaram-se grupos, conversando, discutindo. As pessoas ficaram com receio das notícias. Os donos de imóveis e os que moravam de aluguel. Vários clientes do Empório estavam em volta do Senhor Severino, outros vieram conversar comigo e com a Eva. Não sabíamos direito o que iria acontecer e muito menos o que fazer. Tinha gente falando em revolver, espingarda, em resistir.

Quando estávamos nos retirando, o Sr. Evaristo, o sacristão da Igreja e nosso cliente cumprimentou o Sr. Severino:

- Que bom que o Senhor veio. Muita gente lhe tem respeito. A Eva e o namorado têm ajudado muito nos trabalhos com as famílias. Eles formam um casalzinho bonito.

Fiquei gelado. Olhei para a Eva que ficou pálida. O Sr. Severino não moveu um músculo. Só se despediu dizendo poderem contar com ele. Virou para nós e numa frase curta e ríspida:

- Vamos para casa?

Eu me senti como se estivesse seguindo o meu velório. Andava um pouco atrás dele, que tinha Eva ao seu lado de cabeça baixa, olhando para o chão. Em casa chamou sua mulher e perguntou a filha:

- Que história é essa de casal bonitinho que o Sr. Evaristo me falou?

- Pai, eu e o Adão estamos namorando.

- Há quanto tempo.

- Faz tempo.

- Mulher, você sabia disso?

- Eu suspeitava.

- Quer dizer que o único idiota que não sabia de nada sou eu.

- Sr. Severino gosto de sua filha e sempre a respeitei.

- Só faltava. Caso, eu venha sabê que não respeitou minha filha, se considere um homem morto. A partir de amanhã, não precisa vir trabalhá, só passa pra receber. Não ponha mais o pé na minha casa e não fale mais com minha filha e minha mulhé.

Apesar do choro da filha e dos apelos da esposa, ele não arredou pé. Tive que sair como cachorro com o rabo entre as pernas. Arriado, desanimado e com um choro preso na garganta e lágrimas nos olhos. Não estava perdendo só a namorada, estava perdendo uma família.

 

4 – ADÃO, EVA E O PURGATÓRIO

Perambulei como um perdido, sentindo dor no peito, um buraco no coração. Andei sem saber para onde ir. As ruas que àquela hora estavam vazias e escuras, pareciam-me sombrias, sem vida. Os poucos que me cumprimentaram, nem os olhei.

Naquela noite e no dia seguinte, não saí do quarto. Só fui ao banheiro, não quis comer. Fiquei no escuro, lembrando as feições de Eva, sua mãe. A postura dura e enérgica do Senhor Severino. Lembrei dos meus pais, da tia, da minha vida no sertão. A dificuldade de chegar até São Paulo. A vida sem sentido enquanto não a conheci. Seus primeiros sorrisos, sua mão na minha, os beijos, seu olhar. Deus, eu estava ficando louco!

No terceiro dia levantei tarde. Tomei um banho. Consegui um pouco de café e um pedaço de pão na cozinha da casa e sai, com dois pensamentos. Procurar emprego, por perto, encontrar a Eva na saída da escola. O velho podia descobrir e me matar. Melhor morto do que sem ela.

Fui no “Mocó do Grilo” uma vendinha que fica duas ruas de distância do Sr. Severino. O Grilo um rapaz de pouco mais de 30 anos, quando pedi para trabalhar, imediatamente aceitou. Pagava menos que o Sr. Severino, me dava dinheiro para uma refeição e ficou de pagar a pensão. Como ele fecha às 20:00 h, tive que fazer um acerto, devido a escola, pois preciso sair às 18:00 h.  Ele abre às 7:30 h da manhã, fiquei de abrir às 7:00 h, só meia hora de almoço e trabalhar no sábado até o fechamento.

- Adão, tu buliu com a filha dele, não foi? Aquela menina é ouro pra ele. Ela é um rabo de saia que vale a pena – e riu gostoso.

À tarde, passei no Sr. Severino, que pagou o que me devia, mal olhando na minha cara.

- Não esquece, a pensão este mês é por minha conta. No próximo se vira.

No dia seguinte comecei o trabalho. Algumas pessoas que me conheciam do Sr. Severino estranharam. Tive que enrolar, dizendo que ele tinha os planos dele e eu não fazia parte.

A notícia da minha mudança correu o bairro. Logo surgiram pessoas dizendo já esperar por isso, pois tinham me visto com a Eva e previam que o pai não aceitaria.

Como queria encontra a Eva na saída da escola e o tempo que eu tinha de almoço era curto, comprei um lanche para comer enquanto conversássemos.

Ela estava chorosa, falava de sair de casa. A mãe está do seu lado, mas nada adianta. O pai não quer conversa sobre o assunto. Nem ir à Igreja está permitindo.

Passamos a nos encontrar todos os dias nesse horário. Comprava uma marmita e comia, enquanto conversávamos numa das pequenas travessas que havia perto da escola.

- Daqui a uns meses, faço dezoito anos e podemos fugir. Ir para um lugar que o pai não nos encontre e começarmos uma vida juntos.

A ideia de Eva não me agradava. Eu dizia acreditar que seu pai ainda mudaria de ideia. Tínhamos que ter paciência. Ela precisava continuar com os estudos.

Minha vida passou a ser trabalho, escola e os momentos em que nos encontrávamos. Neles ganhava força para a vida. Cada momento, cada toque e cada pequeno beijo passaram a ter um valor imenso. O medo de sermos descobertos pairava e nos angustiava.

Um dos muitos clientes que apareceram no “Mocó do Grilo” foi o Sr. Juventino para quem eu fornecia uma dose ou duas da branquinha, mais um cafezinho e pagava do meu bolso.

Gostava de sua conversa e dos conselhos, dizia que ele era um segundo pai para mim. Sentia o quanto me queria bem. Às vezes, pressentia lágrimas em seus olhos quando de nossos bate-papos. Por muitos anos, trabalhara nas indústrias à beira do Rio Tamanduateí e da linha do trem, até se aposentar. Vivia em um cortiço próximo. A mulher morrera dois anos atrás e os filhos estavam espalhados pelo país.

Fora sindicalista e participara dos movimentos em busca de melhorias trabalhistas, há uns bons anos. Por sua sabedoria muita gente procurava seus conselhos. Eu era um deles.

- Adão, estude e trabalhe direito. O Severino é um bom sujeito, uma hora qualqué, vai acabá vendo a besteira que tá fazendo separando vocês. Não desanima. Tenho conversado com ele. É um bom sujeito, mas, teimoso como um jumento.

O Sr. Jacinto contou, que no tempo em que não apareci na Igreja, as coisas esquentaram. Como o governo é militar e as pessoas têm medo de se manifestarem, estão sendo removidas sem nenhuma negociação, e pior, sem nenhuma solução habitacional. O pessoal está se vendo obrigado a ir para as favelas ou para os bairros no fundão da Zona Leste.

- Adão, tem uns padres que estão ajudando na paróquia. O pessoá diz que eles são de umas tais de Comunidade Eclesiais de Base, que estão se formando pela Zona Leste. Tem um tal de Padre Chico, rapazinho novo, batalhador. Tu vai gostá dele. Vai por lá, tem muita gente perguntando por você.

Conversando com Eva, soube de clientes do Empório que estavam tendo quem se mudar para favelas do Canindé, Belenzinho, Vila Prudente, Sapopemba e para loteamentos irregulares na periferia, em São Mateus, Itaquera, Guaianazes.

Dava para notar que pequenas favelas estavam surgindo ou se expandindo nos espaços próximos à linha do trem.

Resolvi aparecer no domingo. Fui bem recebido pelos amigos. Abraços e muitos sabendo o que acontecera comigo disseram palavras de apoio e consolo.

Sr. Jacinto, tão logo me viu, veio falar comigo e me levou para conhecer o Padre Francisco. Era um rapaz de 30 anos, barbudo, com um comportamento simples e aparentemente acanhado. Morava em uma das paróquias da zona leste. Notava-se que tinha uma boa cultura. Apesar de eu ser cinco anos mais jovem e não ter o mesmo preparo que ele, a nossa conversa correu bem. Simpatizamos, logo, um com o outro.

Ali começou uma amizade que foi se solidificando, principalmente nas visitas às famílias em risco de despejo. Tinha o apoio de outros padres, que faziam parte da Pastoral da Sé. Dizia defender a Teologia da Libertação.

- O que é isso?

- Entendemos que o homem necessita da palavra de Deus para fortalecer a fé na sua batalha, mas necessita, além do apoio espiritual, de apoio jurídico, político e financeiro. Temos compromisso com os pobres no enfrentamento das injustiças sociais.

Aí comecei a entender porque havia tanta crítica ao trabalho que faziam. Incomodavam a muitos interesses financeiros e políticos, que defendiam a reurbanização da cidade, com a remoção da população pobre visando a transformação do espaço urbano, sem nenhuma preocupação com o ser humano.

Padre Chico dizia:

- É uma política de higienização urbana e social, atrás das bandeiras de combate da pobreza e término das moradias insalubres impróprias para as pessoas e a imagem da cidade. Só estão buscando a valorização, o crescimento urbano e a modernização do centro expandido. Áreas residenciais estão sendo substituídas por indústrias e pela especulação imobiliária. Só não estão preocupados com os moradores da região. Quem tem imóvel é desapropriado por um valor subvalorizado, tem dificuldade para receber e quando tenta comprar algo, a valorização e a especulação advinda da implantação do metrô, fazem com que os imóveis se tornem inacessíveis para o valor que irão receber. Para onde essas pessoas terão que se mudar? Para locais distantes, Guaianazes, São Miguel e outros bairros periféricos. Quando pequenas favelas começam a surgir nesta região elas são fiscalizadas e ameaçadas de remoção. As existentes estão inchando.

Observávamos, na nossa região, que a maioria dos afetados são, principalmente, nordestinos e famílias de baixa renda. Com essas mudanças, distanciam-se do trabalho. O que faziam a pé ou de bicicleta, agora levam horas, muitas vezes pendurados em transportes precários e esparsos, obrigando-os a perderem horários de descanso.

 Muitos nos procuram desorientados, pois, as redes sociais e comunitárias que existem nos cortiços e nas vilas operárias estão se fragmentando e com isso, perdem parte da sua identidade.

Em uma das nossas reuniões, o Monsenhor Vitorino alertou:

- Com o avanço do metrô estão surgindo viadutos, avenidas, alargamentos viários, drenagens. Com a construção das Estações, como a do Brás, que está para ser inaugurada, grandes áreas foram desapropriadas e passam por um processo de reconfiguração urbanística, não envolvendo nenhum plano habitacional, o que só agrava a questão. Estamos tendo um centro modernizado e uma periferia pobre.

- Eva, o pessoal está começando a fazer manifestações nas áreas a serem desapropriadas, criar piquetes que obstruam o trabalho de demolição, reuniões de conscientização nas paróquias. Além do Brás, tem gente se reorganizando em outras paróquias como a do Belém, da Mooca e do Tatuapé. O Monsenhor Vitorino nos informou que Dom Paulo, Arcebispo de São Paulo, tem dado apoio a esse trabalho. As desapropriações estão correndo a todo vapor

- Adão, estou com receio, pois, algumas das manifestações foram dispersadas na base da força. Pessoas foram presas. Na escola, uma freira contou, com muito medo, que algumas pessoas foram torturadas, querendo saber de um plano terrorista visando derrubar o governo. Uma das meninas, falou que o pai soube que estão vigiando pessoas envolvidas, como o Monsenhor Vitorino e o Padre Chico.

- Aliás o Padre Chico me avisou desses fatos. O que vamos fazer, parar? E o povo como fica?

Em um dos dias, próximo do horário do almoço, o Sr. Jacinto apareceu na venda nervoso.

- Adão, estão despejando o cortiço onde mora a Dona Lisa. O Padre Chico disse que apareceram de surpresa, e pediu para espalhar a notícia para as pessoas correrem para lá e tentar impedir.

O Grilo ouviu a conversa e autorizou que corresse para o local que ele cuidava da venda.

Quando cheguei, havia gritos e choradeira. Algumas pessoas, já haviam sido retiradas dos cômodos e estavam na rua com seus pertences entulhados. Policiais brandiam seus cassetetes, cães raivosos latindo sem parar, ameaças, empurra-empurra, gritos e choros. Um veículo de bombeiro apagava uma fogueira iniciada pelos moradores. Parecia um campo de batalha. Avistei o Padre Chico.

- Adão, vieram no meio da manhã sem avisar. Estávamos negociando a retirada, não esperaram. Estão agindo em um horário em que os chefes de família não estão. Quando tento argumentar me batem com os cassetetes. Só consigo, que não batam em mulheres e crianças, no mais, estão descendo o cacete se não fazem o que mandam.

- Chico, para onde vão levar as pessoas?

- Vão largar aqui na rua e vigiar o cortiço para não retornarem. Estou negociando para levá-los para o salão paroquial e depois vermos o que podemos fazer.

Encontrei Dona Lisa, no meio da balbúrdia, entre mulheres, abraçada a um cobertor e tendo ao seu lado seus poucos pertences. Tinha os cabelos desgrenhados pelo suor da adrenalina e olhos avermelhados, do muito que deve ter chorado. Era a imagem do desespero. A abracei, chorou no meu ombro. Sentir seu corpo frágil, leve, dando a impressão de que se apertasse um pouco mais poderia se fragmentar em meus braços, me deu a sensação de vazio, de um buraco debaixo dos pés, de desesperança. Sem muito o que saber para dizer, solicitei que ficasse calma, iriam para o salão paroquial e encontraríamos uma solução para ela.

O pessoal da prefeitura, com a maior displicência, esquecendo estarem tratando com iguais, mas empoderados e cobrados por chefias, mostravam um comportamento bestial, retirando o que encontravam nos cômodos, esquecendo serem pedaços de vidas e tratando como lixo, amontoando-os no meio da rua.

 A caneca de porcelana do café da manhã, a roupa ganha já costurada e novamente costurada, o velho cobertor, o porta-retrato contendo instantâneos de felicidade, o bibelô lembrança de um momento, todos jogados como entulho.

Ao ver aquilo, um grito saiu de dentro de mim, como manifestação da dor e da tristeza que sentia, e corri em direção tentando intervir no que ocorria.

De repente, uma forte pancada nas costas, caindo no chão, tendo a visão turva, enxergando botas e um cão com os dentes raivosos latindo próximo de mim. Gritos, choros, palavras e alguém me arrastando pela terra úmida.

Quando voltei ao “Moco do Grilo” havia muitas pessoas na porta, trocando informações e alguns aguardando que eu voltasse com notícias novas. Todo dolorido, contei o que vi e passei, e manifestando a necessidade de se unirem nos movimentos de resistência, pois, amanhã será com eles.

 Sai um pouco mais cedo e fui até o salão paroquial. Chegando o pessoal estava alvoroçado, pois, aparecera uma perua Veraneio, comumente usada pelo pessoal da repressão e dois mastodontes pegaram o Padre Chico, que estava na porta e o levaram.

O Monsenhor Vitorino estava falando ao telefone com os padres da Catedral da Sé em busca de ajuda. Era voz corrente, que quando alguém caia na malha desse pessoal desaparecia, às vezes em definitivo em outras, após um bom tempo, apareciam machucados e traumatizados.

Graças a Deus, o Padre Chico apareceu logo após a minha chegada. Disse estar tudo bem e seguiu para uma sala em separado para conversar com o Monsenhor Vitorino e outros padres, me arrastando pelo braço.

- Fui levado para um local que não sei dizer onde fica. Queriam saber quem estava organizando os movimentos de resistência. Expus que era o povo. Perguntaram até onde a Igreja estava influenciando e se o Dom Paulo estava envolvido. Esclareci que, somente, acolhíamos os paroquianos que nos procuravam e não sabia de nada envolvendo Dom Paulo. Após uma hora me apertando, resolveram me soltar. Tive que ficar agachado na perua, não podendo ver por onde andavam e me soltaram a uns quarteirões daqui. No caminho, disseram que continuariam de olho em mim, no padreco velho e da turma que andava conosco.

Aquilo me deu uma dor na espinhela.

No dia seguinte, no horário habitual, me encontrei com Eva preocupadíssima, pois, ouvira falar da agressão que eu sofrera. Contei o ocorrido com o Padre Francisco, não mencionei, a referência ao grupo que o apoiava, para não a preocupar.

- Adão, o pai disse para a mãe, procurar alguém para informar você, do que precisasse para ajudar Dona Lisa, podia contar com ele.

Sorri por dentro. Aquele homem do sertão, duro nos seus conceitos, por dentro era uma pessoa boa, a qual, vinha se abrindo comigo, mostrando seu lado humano, no dia a dia, antes de descobrir meu namoro. Fiquei feliz, era a esperança que no futuro nosso relacionamento e meu namoro poderiam mudar.

Eva, ficou com lagrimas nos olhos quando contei este pensamento e minha esperança de mudança. Terminamos o encontro com um abraço, que continha receio do que estávamos vivendo, mas, uma alegria de um possível futuro juntos.

Minha vida ficou muito agitada. O trabalho durante o dia, à noite o estudo e no sábado à noite e nos domingos a igreja e meu envolvimento no apoio aos desalojados. Meu pequeno oásis, a meia hora que passava por dia com Eva, no horário do almoço.

Copiando a ideia da paróquia em abrir um espaço para doações de alimentos, bens e roupas, propus ao Grilo e pedi a Eva que falasse com seu pai, para fazer o mesmo no empório.

- Eva, se teu pai fizer, o Grilo vai acompanhar. Sei que o pessoal é pobre, mas, quem for fazer uma compra e possa doar meio quilo de arroz, feijão, quatro batatas, uma pedra de sabão ou o que for possível, ajuntando tudo forma algumas cestas.

O Sr. Severino comprou a ideia, inclusive com ele colaborando, e o Grilo foi atrás. Por pouco que fosse a ajuda, as pessoas sentiam-se envolvidas no apoio ao movimento e sem saber fortaleciam o trabalho do grupo.

Entretanto, as desapropriações seguiam. Os movimentos foram se ampliando, pois, os planos, segundo as informações era o metrô ir além da Penha.

- Adão – dizia Padre Chico – o povo tem que continuar com a pressão por novas moradias. Terrenos foram comprados há anos em Itaquera, pela COHAB (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo), com o BNH (Banco Nacional de Habitação), visando atacar esses problemas, porém, está ocorrendo com muita morosidade.

São moradias longe do centro, com um péssimo sistema de transporte e sem equipamentos públicos em volta, como escolas, saúde, lazer, fora problemas documentais. Visam atender famílias de baixa renda. A oferta e menor que a procura. Temos que participar dos processos de cadastramento para não haver maracutaia. Falam em outras COHAB no Belém, Bresser, Vila Matilde e até em São Miguel. Temos que nos organizar para colocar o pessoal despejado nesses locais.

- Chico, com toda essa morosidade, algumas famílias estão criando novas pequenas favelas, outras estão indo para as grandes, já conhecidas. Todos querem ficar por perto do trabalho, da escola, dos seus grupos sociais. Essas COHAB nem começaram a existir, fora que muitas são longe daqui. Alguns que receberam indenizações estão comprando terreno para construir em Itaquera. Veja a lonjura.

- Eu soube que um grupo, que você está encabeçando, conseguiu comprar um barraco, na favela à beira da linha do trem, próxima daqui, para a Dona Lisa.

- E verdade. E você não sabe quem mais colaborou. O Sr. Severino!

Ele começou a rir, e se despediu com tapinhas nas minhas costas.

- Adão, sábado é aniversário da Marta – contou Eva.  Ela veio em casa para me convidar e falar com o pai para me autorizar ir. O velho na hora não respondeu, ficou de pensar. A mãe me avisou que convenceu o pai e posso ir, só que acompanhada dela.

- Aí, não adianta nada.

- Você se engana. A mãe falou para eu te chamar, sem que o pai saiba. Ela te adora. Diz que é o filho que gostaria de ter.

Começamos a rir, lágrimas vieram aos olhos. Era demais![MM1] 

No dia do aniversário, cheguei, todo ressabiado, sem jeito. A Marta quando me viu correu para me abraçar. Dei uma caixa de bombons de presente. Levou-me na cozinha, onde estava Eva e Dona Ernestina, que ao me ver me abraçou e me deu um beijo.

- Nossa você está muito magro! Precisa voltar a comer lá em casa. Precisa se cuidar.

Ela estava com um vestido tubinho branco, acima do joelho, tinha um cinto dourado na cintura, uma mini botinha branca e maquiada. Ela vinha deixando o cabelo em estilo afro mais cheio. Usava um colar com contas coloridas e brincos de aro dourados. Parecia uma hippie que vira em uma revista. Fiquei boquiaberto. Dona Ernestina falou:

- Para de ficar de boca aberta e dá um beijo na menina.

Sem jeito dei um beijo no rosto de Eva. Os dois sorrimos. Peguei-a pela mão e fomos para sala dançar. Meu Deus, há quanto tempo não sentia o calor do seu corpo tão perto do meu. Eu estava nas nuvens, não parava de manter meus olhos nos seus, querendo através deles dizer o quanto a amava. Ela passava sua mão no meu rosto. Estava me sentindo o dono do mundo.

Pelo canto dos olhos vi Dona Ernestina conversando com a mãe de Marta e nos observando dançando. Seus olhos transmitiam carinho. Era mais do que concordância, era alegria.

Ao fim da música, encontramos um lugar sossegado no terraço da casa, onde pudemos sentar próximos. Falamos dos nossos bem-querer, do dia a dia, dos nossos planos e sem dúvida, o momento que o bairro vivia e no meu envolvimento.

Ela manifestava preocupação, pois, ouvira sobre a ação brutal da polícia, de pessoas e padres presos nas manifestações. Falava-se a voz pequena, de pessoas que desapareciam por razões políticas. Diziam que os militares não estavam dando nenhuma possibilidade de contestação ao que faziam e queriam. Contou que na sua escola o assunto virou tabu, não sendo comentado por ninguém.

- Eva, estou querendo procurar teu pai e pedir desculpas por quebrar a sua confiança. Mostrar que o coração manda mais que a razão e é difícil se contrapor a ele.

- Não vai, não. A mãe acha que o pai está perto de ceder. Ele ouve muitos comentários a seu respeito, e ela nota, que ele fica satisfeito com o que ouve. A mãe pede para a gente esperar um pouquinho mais.

Com o trabalho e a escola a minha vida estava bem atribulada. Incluindo os compromissos do domingo, pouco ou nada sobrava de tempo. A angústia de me encontrar com a Eva as escondidas e por pouco tempo, cada vez mais me angustiava.

O filme “Love Story” começou a ser exibido no Cine Piratininga. Virou uma febre. Havia filas nas sessões. Era o assunto predileto das mulheres e meninas que apareciam no “Mocó do Grilo”. Diziam que até cabra macho chorava. Era para torcer o lenço de tanto enxugar lágrimas.

Eva contou que na escola era o assunto do momento. Pedira para o pai deixar que fosse ao cinema, mas não concordou. Pediu para a mãe ir com ela, assim o pai deixava.

- Eu não vou ao cinema se teu pai não for.

E ele não queria assistir ao filme. Dizia ser dramalhão para fazer a mulherada chorar.

Finalmente Eva e Marta ajuntaram umas amigas, que os pais autorizaram ir ao cinema, e formaram um grupo. No final os pais de ambas acabaram autorizando, pois, os comentários no Empório aguçavam cada vez mais a bicha de Eva. No dia, sua mãe lhe disse:

- Eu sei que você vai acabá indo com o Adão. No fundo, eu acredito que teu pai também pensa o mesmo. Ele tá afrouxando. Não dá muita bandeira quando saí do cinema. Sabe como é. Tem muito fuxiqueiro, que logo na segunda, vai buziná no ouvido do teu pai.

O filme foi um mar de lágrimas. Só ouve beijos no começo da sessão, depois, ficamos amarrados na história. Na saída, todos estavam com os olhos vermelhos. Não parávamos de comentar o filme, com algumas gozações, pois alguns dos “machões” tentaram disfarçar que também deixaram rolar lágrimas. Com toda essa a animação seguimos andando até a Sorveteria do Italiano, na esquina da Bresser. Foi uma tarde e um começo de noite maravilhoso. Depois deixei a Eva perto de casa, com beijos e abraços já marcados de saudade.

Depois, Eva comentou que teve que contar o filme, tim-tim por tim-tim para sua mãe, que fez inúmeras perguntas e algumas vezes chorou. Seu pai ficou escutando e não reagia, mas, Eva notava, que alguns momentos ele se emocionava. Depois falou que foram a sorveteria.

O pai logo perguntou com que dinheiro pagou o sorvete, pois, vai normalmente com o justo para o cinema. A mãe, pronto respondeu:

- Eu dei a mais, pois sabia que queriam tomá um sorvete depois.

O que animavam os meus dias eram meus pequenos encontros com Eva e os domingos, nos quais, com o Padre Francisco trabalhávamos junto as famílias. Entrega de alimentos, reuniões, comissões de moradores, associações de bairros, abaixo assinados.

Manifestações ocorriam em várias paróquias da região, algumas junto a prédios públicos. Em poucas se conseguiu repercussão junto à imprensa. Uma ou outra com a cobertura da televisão. Tudo era muito dificultoso em função do momento político. Entretanto, graças a elas, o governo se movimentou e ampliou a oferta de moradias através da COHAB, apesar que insuficientes para a quantidade de famílias que necessitavam ser atendidas.

Foi proposta uma manifestação a ocorrer, em um sábado pela manhã no Largo da Concórdia, parando a Rangel Pestana e impactando no principal fluxo de acesso ao centro. Toda a preparação foi feita em sigilo, em reuniões cheias de cuidados, para que não vazasse a informação até o momento adequado. No tempo que me foi possível participei da organização. No dia anterior ao evento, pedi ao Grilo que me liberasse do trabalho no período da manhã. Como ele era favorável a causa concordou.

No dia, pessoas começaram a se agrupar no largo. Na sua maioria mulheres, muitas com os filhos, pois os homens trabalhavam. Eu ajudava, para manter as pessoas no largo e só quando houvesse um número suficiente fechar a avenida. O comércio do local ao saber do que iria ocorrer começaram a fechar as portas. A notícia começou a correr pelo bairro e mais pessoas vieram.

Alguns órgãos de imprensa, chamados pelos organizadores apareceram, o que significava que o evento seria noticiado. Logo rádiopatrulhas começaram a surgir, com o pessoal do trânsito. Era soar de sirenes ecoando das diversas ruas entorno. Quando a multidão se dirigiu para a avenida e o trânsito parou nos dois sentidos, buzinaços principiou a ocorrer. O clima, gradualmente, foi se tornando tenso.

Após uma meia hora, mais sirenas de veículos vindos da região central da cidade. Eram caminhões transportando tropas de choque, municiados de escudos e cassetetes, e policiais com cães. Logo, era a multidão de um lado e eles de outro. Chegaram notícias de alguns ônibus parados nas ruas laterais, o que demonstrava desejo de levarem presos.

O barulho era ensurdecedor, sirenes, cães latindo, policiais batendo seus cassetetes nos escudos, um carro de bombeiros jogando águas nas pessoas, a multidão gritando. A tensão estava espelhada no rosto de todos.

Eu estava junto a linha de frente gritando palavras de ordem. Ao meu lado o padre Francisco e vários padres da região, líderes de associações, donas de casa e moradores.

Gritávamos:

- Moradia! Casa para a família!

Uma autoridade do lado policial se aproximou e tentava nos convencer a liberamos a avenida. Não tendo sucesso, entraram em formação e principiaram a avançar em nossa direção batendo os cassetetes nos escudos, criando um barulho assustador e lançando granadas de fumaça. Logo atrás policiais com cães, que não paravam de latir.

Da nossa parte começamos a solicitar que as mulheres com crianças ficassem mais ao fundo para não serem agredidas. O suor escorria pelo meu rosto, não era de calor, era de tensão, e como não, de medo. Nos demos os braços. E o pelotão avançava lentamente. Vi muitas mulheres na linha de frente, inclusive idosas, com coragem, tão ou mais que muitos homens.

De braços dados mantínhamos a linha de frente, incitando as pessoas.  A poucos passos de mim o rosto crispado de um policial, suando como eu, o olhar enfurecido, a boca torcida, com um cassetete que não parava de bater no escudo. Só aguardava a ordem para soltar todo o sentimento que estava preso dentro de si.

- Avançar!

Quando algumas pessoas começaram a se dispersar com medo, eles vieram com tudo para cima de nós, descendo o cacete.

 

Durante a ocorrência destes fatos, as pessoas se agrupavam no Mocó do Grilo e no Empório do Severino em busca de notícias. Comentários desencontrados, muito diz que diz e só alguns fatos concretos. Ouvia-se ao longe o ecoar das sirenes, o bradar da multidão. De repente, tudo se ampliou, com o ruído dos cassetetes contra os escudos, o estourar de bombas, o latir de cães e gritos de pessoas.

Eva e sua mãe estavam com seu pai no empório ouvindo os diversos comentários. Ao sair a calçada ouviu o ruído que vinha de longe. Seu coração disparou, pensou no Adão, teve vontade de correr para lá, mas sua mãe pressentindo o que a filha faria a segurou. Ela encostou o rosto no ombro da mãe e principiou a chorar dizendo:

- Mãe ele está lá. Mãe estou com medo do que possa acontecer.

Sua mãe a acalmava, mas, o choro em convulsão tomou seu corpo. Ernestina abraçava a filha e olhando para o marido viu em seu semblante o temor estampado. Seus olhos brilhavam e havia lágrimas vendo o estado da filha.

Algumas pessoas que estavam na manifestação chegavam correndo ou apressadas. Diziam:

- Vieram vários batalhões e eles estão dispersando as pessoas com cassetete. Até bombas de gás soltaram. Pessoas estavam sendo presas, debaixo de pancadaria. Não estão respeitando nem as mulheres.

- Não são bandidos. Só querem moradia!

Manifestações de revolta surgiram entre o pessoal.

Passado uns vinte minutos os ruídos começaram a diminuir até cessar. Pessoas não paravam de voltar do local contando o que ocorria, algumas feridas das pancadas que receberam. Nisso alguém chegou e gritou:

- Prenderam muitas pessoas. Parece que não estavam prendendo mulheres, mas, levaram moradores, vários padres, inclusive, o padre Francisco e o Adão.

Aquilo caiu como um raio sobre Eva, que sentiu as pernas bambearem. Só não caiu ao chão porque sua mãe a segurava.

Severino pegou a suas coisas e disse a esposa:

- Cuida do empório que já volto – e saiu.

Ernestina teve a ajuda de sua comadre Olívia e do ajudante, ao subir com Eva para a moradia e retornar para cuidar do empório. Constantemente ia ver a filha. Vizinhos trouxeram comida, pois, sabia que não estariam com cabeça para cozinhar. Porém, ela e a filha mal tocaram na comida. Marta veio para ficar com a amiga.

A tarde avançou. Elas só ficaram um pouco mais tranquilas quando souberam que o Severino esteve na igreja, conversando com o Monsenhor Vitorino e com ele e outras pessoas saindo em um automóvel, segundo informaram para irem à polícia tentar soltar os presos. Diziam haver um advogado da Cúria junto.

Foi uma tarde de desassossego, muitas informações vagas. O Grilo saiu de sua venda e foi até lá para saber se havia notícias. A noite começou a se aproximar. Fecharam o empório mais cedo.

 

Severino saiu apressadamente do empório e seguiu em direção à igreja. Muita gente na porta, dentro, pelos corredores. Ele seguiu direto para a sacristia, onde, encontrou o Monsenhor Vitorino em sua mesa com inúmeras pessoas sentadas em volta e em pé. Por não ser comum vê-lo por lá exclamou:

- O que houve Sr. Severino?

- Fiquei sabendo que várias pessoa foram presa, inclusive o Adão. Queria ajudá pra ele podê volta.

Monsenhor Vitorino confirmou as prisões, entre elas o Adão que estava com o padre Francisco defendendo algumas mulheres.

- Sr. Severino, os dois apanharam bastante. Estamos com receio do estado deles. Estávamos aguardando este senhor, Dr. Ives, advogado enviado pela cúria para nos dirigirmos a polícia.

Em dois veículos, Sr. Severino e algumas das pessoas que lá estavam saíram. Foram à delegacia do bairro, onde informaram que as pessoas que para lá foram levadas haviam sido fichadas e liberadas. Souberam que a maioria tinha sido levada para o famigerado Presídio do Hipódromo. Notícia que não agradou ao grupo.

No local, tiveram dificuldades para serem atendidos. Ao final, Monsenhor Vitorino mais o Dr. Ives e dois representantes da cúria conseguiram entrar. Após hora e meia retornaram. Monsenhor Vitorino explicou.

- Estão sendo fichados e serão liberados. Vamos aguardar a liberação de todos. O problema está com o padre Francisco e o Adão. O Dr. Ives esteve com eles, acredita que por estarem bem machucados queiram segurá-los por mais tempo, para que se recuperem, alegando terem sido incitadores da manifestação. Explicamos que não houve incitadores, que o movimento surgiu nas paróquias e junto aos moradores que estão sendo desalojados. A Igreja só deu abrigo aos pleitos deles. Os dois apanharam e foram presos por estarem protegendo mulheres e idosos.

- Monsenhor, não vão soltá-los? – perguntou Severino.

- Está difícil. Mas vamos insistir.

 

Em casa Eva chorava, Ernestina consolava e rezava, a comadre acalmava ambas e também rezava. Acenderam velas junto a imagem de Nossa Senhora e até promessa fizeram. Já era noite e não tiveram nenhuma notícia do Severino e da soltura do Adão. Um clima de angústia foi tomando as mulheres.

O compadre Bonifácio, marido da Olívia, com o Juvenildo e mais um amigo do Severino, apareceram por lá. Ouviram muitas conversas, inclusive de terem sido levados para o presídio da rua do Hipódromo, cuja fama não era boa. A tensão aumentava junto com o receio de como estaria o Adão e se seria solto.

Eram quase oito horas da noite, quando um carro parou em frente. Correram para a janela. Severino desceu do veículo agradecendo. Mais uma pessoa desceu. Nada do Adão. Abriram a outra porta traseira e em dois o tiraram do automóvel. Via-se que mal conseguia andar. O carregaram escada acima.

- Mulher, prepara a cama do quarto de dispensa e vamos colocá ele lá – murmurou Severino ao entrar em casa.

Eva chorando correu para abraçá-lo. Tinha uma faixa enrolada na cabeça, um braço em uma tipoia, escoriações no rosto e mancava de uma perna. Ao ser deitado na cama demonstrou dores nas costas e no peito.

Bonifácio foi incumbido de trazer o Vaz proprietário de uma pequena farmácia no bairro. Fora enfermeiro no pronto-socorro do Hospital das Clínicas, onde se aposentou. Servia de médico para a comunidade, pois não tinham acesso a médico e se fossem a um pronto socorro seriam horas de espera para serem atendidos. O doutor Vaz, como alguns o chamavam, prescrevia medicamentos, suturava feridas, cuidava de contusões e o que aparecesse.

Após examinar o Adão, tranquilizou a todos:

- Ele só tem um raspão na cabeça que deve ter sangrado muito, não tendo levado pancada, o que poderia ser preocupante. Não tem costelas quebradas nem ossos. Suas dores são das pancadas que recebeu. Vou prescrever analgésico, porém, peço que ele fique em observação. Caso tenha algum sintoma diferente me chamem e se for o caso teremos que levar para um pronto-socorro. Cama por uns dois ou três dias e poderá se movimentar melhor.

Quando todos foram embora, as mulheres estavam no quarto cuidando do jovem, ficaram na sala Severino e o Juvenildo, que lhe perguntou:

- Severino, você colocou esse garoto pra fora da tua casa e agora correu pra socorrer. Este preto velho qué entendê o que aconteceu.

- Juvenildo, eu errei. O amor desses dois é verdadeiro e tem mais, esse garoto é gente boa, decente e honesto. Já me arrependi e muito. Já tava querendo falá com ele. Quando aconteceu isso tudo me deu uma dor no coração, tinha que fazê alguma coisa. Tinha que corrigi um erro. Eu devia tê te escutado lá atrás.

- Fico feliz, ele é um menino muto bão. Cê não vai se arrependê – deu um tapinha na perna do Severino, levantou e se despediu.

Os dias seguintes, foi uma romaria de gente visitando Adão. O velho Juvenildo foi todos os dias. Até o Grilo e vários clientes vieram visitá-lo. Amigos da escola, da igreja e de outras comunidades. Era comentário geral que ele e o Padre Francisco, levado para um seminário onde estava se recuperando, trataram de proteger um grupo de mulheres e idosos da sanha dos policiais.

Os três dias que ficou de cama, para Adão, apesar das dores, foi um paraíso. Teve Eva ao seu lado, no tempo que tinha livre, os carinhos da Dona Ernestina e atenção do Sr. Severino. Notava que ele esperava um bom momento para conversarem.

No terceiro dia, quando levantou da cama, Sr. Severino disse querer conversar com ele. Todo o desassossego que sentiu nos dias que estava de cama se avolumou. O que estaria por vir? Pensou: resolveu recebê-lo como uma atitude humana e agora dirá para voltar a sua vida, longe de sua filha. Estava receoso.

- Adão, errei proibindo o namoro de vocês. Vi que na verdade vocês se gostam. Você é um garoto bão, trabalhadô e respeitadô. Quero pedi para você voltá a trabalhá comigo. Vou pagá tua pensão, mas você voltá a comê aqui em casa, inclusive no domingo. E autorizo namorá com minha filha, mas com respeito.

 

5 – ADÃO, EVA E O PARAÍSO

Aquilo foi como música aos meus ouvidos. Eu parecia estar saindo do inferno e entrando no paraíso. Agradeci, é claro, ressaltando que sempre respeitaria sua filha.

Quando contei a Eva, ela chorou de alegria.  Depois, eu soube, que beijou e abraçou os pais agradecendo. Disse que o pai e a mãe tinham lágrimas nos olhos.

Tão logo eu pude, fui até o Grilo e pedi a conta agradecendo o tempo que estive por lá. Contrariado por me perder, comentou:

- Eu sabia que isso ia acontecer. Aquele alagoano gosta de você.

Minha vida voltou a deliciosa rotina de trabalhar na Mercearia do Sr. Severino, onde a clientela, na sua maioria, me conhecia, fora alguns, que infelizmente, o Grilo perdeu.

Almoçar em casa com o Sr. Severino e Dona Ernestina, jantar com a Eva presente, fora que nos víamos em alguns momentos durante o dia. Após voltar da escola e almoçar, descia na mercearia por uma meia hora, quando conversávamos, enquanto eu atendia alguns clientes.  Algumas bitocas, quando os pais estavam presentes, e beijos mais molhados, quando não.

Nos domingos, ia com Eva a igreja para a missa e depois ajudar o pessoal no trabalho com as famílias. Almoçávamos em casa e voltávamos a igreja. Uma semana após o meu retorno o padre Francisco também retornou. Estivera em um seminário onde fora acolhida para se recuperar. Voltamos a atuar junto às comunidades.

O metrô foi avançando, entretanto, os problemas com os moradores continuavam. As desapropriações a valores inferiores à possibilidade de compra de um novo imóvel. O desalojamento da população que morava nos cortiços e nas pequenas casas, sem opções, empurrando-os para a periferia.

A especulação imobiliária ocorrendo e mudando o perfil da região com alargamento de avenidas como a Radial Leste, tuneis, viadutos e o surgimento de grandes prédios. As indústrias ao longo do rio Tamanduateí e próximas à linha do trem, gradualmente saindo da região.

Em começo de 1979 foi inaugurado o primeiro trecho do metrô para a zona leste: Sé, D. Pedro, Brás e Bresser. Depois de quase um ano e meio, Belém e Tatuapé. Em setembro de 1981 o metrô chega a Penha, tendo antes a estação Carrão.

Sr. Severino possuía um terreno comprado na Vila Esperança, adquirido no período em que era um bairro operário com loteamentos populares, muitas ruas de terra e casas simples, resolveu iniciar a construção de um mercado, maior que o atual, tendo a casa na parte de cima.

Essa decisão se deu, logo após a minha soltura em 1974, pois gradualmente vinha perdendo clientela pelas mudanças que ocorria no entorno. Notava a Vila Esperança estar tendo um forte crescimento pela proximidade de futuras estações do metrô e da grande avenida radial leste, que principiava no Parque D. Pedro e adentrava até os fundos da Zona Leste.  Fora, cada vez mais, estar recebendo propostas melhores pelo seu imóvel. Durante a construção, muitas tardes, após o almoço dava uma passada na obra para administrar o andamento.

Adão, passou a ir no mercadão em algumas manhãs, fora novos fornecedores que fora abrindo. Com autorização do Sr. Severino, refez inúmeras prateleiras, alugou um espaço próximo maior do que possuíam, onde melhor organizou o estoque. Pelo aumento das vendas, conseguiu com fornecedores novas geladeiras para bebidas e produtos perecíveis.

Além do Bolacha, teve que contratar o Barnabé, que assim era chamado, pois era um capiau de 18 anos que chegara do interior de São Paulo com a família e que tinha o falar calmo e cantado da região. Trabalhara com o pai na venda que possuíram na cidade em que moravam. Era experto e pau para toda obra. Quando necessário recebia produtos no depósito, conferia, guardava, levava e trazia o que era necessário de um lado para o outro. O pai falecera e a família se mudara para a capital, morando com um irmão solteiro de sua mãe. Era animado e caiu na graça de todos.

Diariamente, exceto se tivesse um imprevisto, eu esperava Eva na saída da escola e voltava de mãos dadas e beijinhos, sendo um momento só nosso. No final do ano, ela se formou como normalista. No próximo iria para a faculdade fazer pedagogia.

Sr. Severino e a esposa com muita alegria deram uma festa, convidando os amigos deles e da filha. Dona Ernestina com ajuda de amigas e comadres fizeram os doces e salgados: sanduíche de carne louca e salsicha, batatinha no molho, petiscos de salsicha, conservas e queijo no palito espetados em um repolho, brigadeiro, olho de sogra e queijadinha. Adão e o Sr. Severino empurraram os móveis da sala para os cantos para poderem dançar. Uma pequena vitrola e os discos que cada um levou.

Durante a festa Eva falou para Adão:

- Foi a melhor festa que eu já estive, te amo - e lhe deu um beijo daqueles, pouco se importando quem estivesse olhando.

Ela o amava com uma intensidade que nem imaginava que pudesse existir. Adão ficou encantado com o olhar e o beijo, mas preocupado que os sogros pudessem ter visto.

Durante esse período, trabalhava, estudava e quando dava, namorava, continuou trabalhando, com Eva, no apoio, conscientização e nos pleitos sobre moradias. Na expansão os problemas sofriam pequenas melhoras, mas, continuavam.

Nos finais de semana podiam sair, desde que, estivessem em casa as dez ou excepcionalmente as onze horas. Iam ao cinema, onde muitas vezes mal viam o filme. Festas em casa de amigos, na paróquia e na comunidade. Lugares ermos que passaram a frequentar e onde encontravam outros casais de namorados, inclusive amigos. O namoro estava cada mais quente. As mãos corriam por lugares que traziam prazeres e gozos, mas se mantinham na moral vigente. A mulher tinha que casar virgem.

Ocasionalmente, quando os pais de Eva visitavam alguns amigos, conseguiam se livrar do compromisso e não irem. A sós eram momentos maravilhosos. Numa dessas vezes Adão falou:

- Quero te ver nua. Não preciso te tocar, só ver.

- Eu também quero– sussurrou Eva.

A abraçou e beijou levemente seus lábios. Correu sua mão pela face de Eva, como querendo memorizar cada detalhe, não tirando seus olhos dos delas. Era como uma corrente os prendendo pelo olhar. Principiou a desabotoar sua blusa, após, lentamente baixar sua calça. O rosto de Eva tinha um que de vergonha, mas, também, um olhar de desejo. Seus mamilos rígidos sobre aureolas escuras queriam transpassar o sutiã branco, na calcinha da mesma cor, pressentia-se a negritude dos pelos, formando uma pequena onda.

Ela retirou a blusa dele pela cabeça e tratou de soltar o cinto e baixar sua bermuda. Estava com uma sunga preta. Ela via e sentia ao apalpar seu sexo em riste, preso na cueca.

- Quero ver – e baixou sua cueca – é lindo.

Adão encostou-se a ela por trás, fazendo com que sentisse a pressão do seu membro. Desabotoou o sutiã, segurou seus seios. Eram um pouco maiores que a concha das mãos e sentiu os mamilos rígidos. Voltou-se de frente e se distanciou um pouco para vê-la.

A primeira reação de Eva foi cobrir os seios. Se deu conta que devia se mostrar, sorriu e se mostrou. Seu púbis aparado com pelos negros encrespados, como seus cabelos. Suas formas ondeadas, suaves. Os seios com auréolas negras e mamilos rígidos.

Adão sentiu um forte desejo envolvido de amor e a abraçou. Beijou sua boca, os olhos, o rosto, a orelha, o queixo e acabou descendo para os seios.

Eva, sentiu um calor percorrendo seu corpo e se concentrando em seu sexo. Sentia-se úmida. Uma grande ternura a envolvia. Correu sua mão pelo seu peito, acariciou os pelos e sentiu o membro pulsante que havia entre eles.

Deitaram-se na cama de Eva e ficaram se acariciando e se olhando. O mundo, naquele momento, eram seus corpos, cada reentrância, cada saliência. O horizonte era a amplitude de seus olhares. A cada toque eletricidade corria por eles. Ambos confidenciaram, um ao outro, o grande desejo, que há tempo, tinham de se verem nus.

- Quando você está para vir, só de pensar em você, eu fico molhada – Contou Eva um pouco envergonhada.

- Sonhei muitas vezes com este momento.

Envolvidos no enlevo, nos toques, nos desejos, perderam-se nos segundos, nos minutos e quando se deram conta as horas tinham passado.

O desejo era enorme, mas, o temor da volta dos pais e pela ousadia do primeiro momento, trataram de se recompor. Entretanto, aquele instante, abriu uma grande porta no amor e no prazer dentro do relacionamento.

Como um estalo, planos de casamentos surgiram para quando se mudassem para a casa nova. Ela estaria terminando a faculdade de pedagogia e ele estaria no segundo ano na de administração, faltando mais dois. Eva contou aos país a ideia, o que trouxe alegria. Com a mãe começou a providenciar o enxoval, enquanto, ele só teria que se preocupar, quando chegasse a hora, com a compra do quarto do casal, pois, morariam no início, com os pais dela.

Para a alegria do casal, Sr. Severino, por necessitar ir constantemente à obra, com isso atrapalhando o uso do caminhão, acabou comprando um fusca. Nos finais de semana, pela grande confiança que tinha em Adão, permitia que o usasse nas saídas com Eva.

- Severino, você tá soltando muito

- Mulher, esses dois se gostam. Se fizer besteira vão tê que casá antes. Espero que tenham juízo.

 

Em muitos domingos, quando eu e Eva não tínhamos compromissos na Igreja, aproveitávamos e íamos todos ver o andamento da obra do novo supermercado. Depois, pelos bairros da região, procurávamos um lugar tranquilo com árvores e fazíamos um piquenique. Estendíamos uma toalha e usufruíamos do que Eva e sua mãe haviam preparado. Sanduíches, frango assado, batatinhas no molho, arroz, carne seca. Às vezes pamonha doce e pedaços de bolo.

Com o Sr. Severino, algumas manhãs de domingo, fomos assistir partidas de futebol no estádio do Juventus e da Portuguesa, quando não, em algum campo de várzea.

Também fizemos pequenas viagens para cidades próximas. Uma das primeiras foi para Aparecida para cumprir as promessas. Em outra fomos a Praia Grande. Eva depois me contou o comentário de sua mãe ao seu pai, quando a vi saindo do carro, onde se trocara, e minha reação de fascinação, com os olhos arregalados. 

- Olha a cara do teu genro vendo tua filha de maiô. Ficou enfeitiçado.

Pelo visto o pai não gostou muito da observação da esposa. Claro, era sua filha querida.

Para nós, o momento especial de uso do veículo, era sábado à noite. Quando não tínhamos compromissos sociais e aproveitávamos para ir a um drive-in, indicado por amigos, na Marginal do Tiete, perto da ponte da Vila Maria.

Era um amplo estacionamento, escuro, com baias nas laterais, onde cabia um veículo. Ao chegar pedíamos uma cuba livre para cada um, uma porção de fritas e depois era namorar tranquilamente. O rádio com uma musiquinha ao fundo, enquanto com beijos e abraços usufruíamos das intimidades.

O tempo estava passando rápido para Adão, em razão do trabalho, escola e atividade na igreja. O metrô avançava, mas os problemas, na sua maioria, se mantinham. A vantagem era que os movimentos se ampliaram e criaram bases em outras comunidades, com isso, o trabalho se distribuiu.

Em 1982 o Sr. Severino e família se mudaram para a Vila Esperança. Adão estava começando a faculdade de Administração. Alugou um quarto, em uma casa de família, próximo do novo “Supermercado Futuro”, que era o melhor da redondeza, onde com a presteza e cordialidade na atenção a clientela só aumentava.

Com a mudança, Adão e Eva passaram a trabalhar na paróquia local. Havia muito serviço, desde atendimento a famílias necessitadas, cursos, festas, apoio aos desalojados, ajuda a outras paróquias que viviam o impacto das mudanças urbanas. Eva estava terminando a faculdade e Adão continuava na dele.

No segundo semestre o casal e a família se viram envolvidos com os preparativos do casamento, previsto para ocorrer no início do próximo ano. Em novembro comemoraram a formatura de Eva com a entrega dos diplomas e o baile. Sr. Severino e a esposa eram só sorrisos de alegria.

Ela estava lindíssima, como uma princesa usando um vestido tubo rosa-claro até o tornozelo, cravejado de pedras transparentes, feito por sua mãe. Uma leva tiara sob o cabelo, também enfeitada com as mesmas pedras. Ele usando pela primeira vez um terno cinza, feito sob encomenda, que serviria para o casamento e uma gravata borboleta preta, pareciam saídos de um conto de fadas.

A foto reunindo todos na formatura foi para uma moldura na sala, pois, era o sinônimo de realização e felicidade. A mãe, a irmã, a cunhada e a sogra de Sr. Severino também estavam na foto. Vieram em dezembro, passar as festas juntos e o casamento no início do ano.

Em janeiro de 1983, finalmente, se casaram. Houve uma festança em um salão alugado. Adão, como parente, só teve o primo que inicialmente o recebeu.

Convidaram os amigos e vizinhos, que a esta altura estavam dispersos pelos diversos bairros da região. Além dos comes e bebes, com muita comida nordestina, foi contratado um conjunto, com um casal de cantores, que animou a festa a noite toda. Sr. Juvenal, junto com a Marta, foram seus padrinhos.

Adão quando viu Eva, toda de branco com véu e grinalda, contrastando com o moreno de sua pele, trazida pelos braços de seu pai, começou a chorar. Sr. Juvenal cedeu um lenço para ele. Estava maravilhosa, seu rosto resplandecia alegria e emoção. Ele usando o terno da formatura, camisa branca e gravata borboleta vermelha-carmim.

- Você está lindo – quando foi recebida por Adão.

- Você está maravilhosa – as palavras mal saindo da boca.

Os noivos no meio da festa se retiraram para um hotel no centro de São Paulo, onde usufruíram da noite de núpcias. No dia seguinte seguiriam para Serra Negra. Eva finalmente pode se entregar, por inteiro, sem medos e ressalvas. Confidenciou, depois, a amigas íntimas, que apesar de já terem estado juntos nus, sentiu-se como se fosse a primeira vez, tendo um pouco de receio, que logo foi afugentado pelos enlaces, beijos, abraços, ou seja, desejos realizados.

No segundo ano do casamento a família cresceu com a vinda de Dora que trouxe alegria a família. Os avós, praticamente, viviam pela neta, enquanto os pais trabalhavam. Adão tinha ideia de abrir outro supermercado em um bairro próximo e Eva estava lhe auxiliando nos planos. Sr. Severino entrava com a experiência. Chamou o primo para trabalhar com ele. Pensava em colocá-lo como responsável na nova filial a ser aberta.

 

Viveram felizes para sempre?

Na vida há momentos de percalços com sofrimentos e dor, porém com amor, confiança e companheirismo torna-se mais fácil passar por eles.

Pode-se dizer que se amaram com intensidade e parceria.

 

6 - EPÍLOGO

O metrô se dirigiu cada vez mais para a Zona Leste. O impacto da sua chegada levava a uma constante melhora urbana, com o surgimento de grandes avenidas, e é claro especulação imobiliária frenética.

Graças as pressões populares pequenos conjuntos habitacionais surgiram na década de 1970. Depois, nos inícios da década de 80, começaram os grandes conjuntos, como Cidade Tiradentes. Um projeto com 40.000 habitações.

No seu início, os conjuntos, eram totalmente carentes de estruturas sociais. Não havia escolas, posto de saúde, hospitais e creches. No Cidade Tiradentes, havia, inclusive, um comércio escasso e incipiente gerando dificuldades para a compra de alimentos e medicamentos. O transporte público era quase inexistente. Os moradores levavam horas para chegarem ao trabalho.

Situações similares ocorriam em outros conjuntos, em que forneceram as moradias, mas a infraestrutura e os equipamentos públicos não acompanharam o crescimento populacional. Portanto, o trabalho dos movimentos sociais se fez necessário e constante.

A população pobre, cada vez mais, tinha que se mudar distante do centro da cidade, para bairros como São Mateus, Itaquera, São Miguel Paulista, Arthur Alvim e outros.

Favelas surgiam e outras inchavam em inúmeros bairros como Vila Prudente, Sapopemba e até hoje a famosa e constantemente inundável nos períodos das chuvas, Pantanal.

No meio de todo assentamento urbano, na zona leste vários bairros cresceram, outros surgiram com uma qualidade e um custo de moradia similar a muitos bairros nobres da cidade. Exemplos: Carrão e Jardim Anália Franco.

Na outra ponta o metro também foi se expandindo, indo do centro para a zona oeste, onde a sua construção se fez subterrânea, com muito menos impacto nas desapropriações.

Ao final, a linha vermelha, zona leste a zona oeste, tendo no seu percurso duas estações de interligação, possuindo uma extensão de 22 quilômetros e 18 estações. Abaixo as estações e os anos de inauguração.

Linha 3–Vermelha

1.     Corinthians–Itaquera – 1988

2.     Artur Alvim – 1988

3.     Patriarca – 1988

4.     Guilhermina–Esperança – 1988

5.     Vila Matilde – 1988

6.     Penha – 1986

7.     Carrão–Assaí Atacadista (ex-Vila Carrão) – 1986

8.     Tatuapé – 1981

9.     Belém – 1981

10.Bresser–Mooca (antes só “Bresser”) – 1980

11.Brás – 1979

12.Pedro II – 1979

13. – 1978 (integração com Linha 1–Azul)

14.Anhangabaú – 1983

15.República – 1982 (integração com Linha 4 a partir de 2010)

16.Santa Cecília – 1982

17.Marechal Deodoro – 1982

18.Palmeiras–Barra Funda – 1988 (integração com CPTM e rodoviária)

Quando da linha vermelha, já havia a linha 1 azul, da zona norte até a zona sul, tendo hoje, 23 estações e pouco mais de 20 km.

Hoje temos 105 km de metrô com 91 estações, o que é muito pouco para uma cidade como São Paulo. O trem metropolitano que se interliga ao metro atinge 380 km com 187 estações. É uma grande malha em expansão, tanto que várias linhas e estações estão em construção.

Cada nova linha e etapa possuem história que aos poucos são trazidas à tona.

“PRÓXIMA ESTAÇÃO .............


nhai



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