12/01/25

A LINHA DA MÃO


 

A boca desdentada,

de pouca farinha,

vida dura como facada,

desdiz a linha da mão.

 

Onde, entre tragadas,

previu a cigana o futuro:

dinheiro, saúde e mulher,

augúrio de vida feliz.                                                     

 

Mas o gibão surrado,

queimado de sol,

não diz ser esse homem                                       

de mão afortunada.


A linha da cigana

que corria reta na mão,

na vida se mostrou

distante do apregoado.

 

Mulher não teve, não.

Dinheiro se esfarelou.

E de tudo dito da vida,

pedaço escarrado sobrou.

 

Faltou colo para dormir,

amor chamado de seu.

Faltou o que defender

que não fosse o sobreviver.

 

Foi pau-mandado

para cobrar e infligir.

Matar de tocaia,

sem saber o porvir.

 

Caído, com bala no peito,

sangue escorrendo,

lembra da cigana que previa               

na linha marcada da mão.

 

 Sua morte será matada

no meio do sertão,

por coisas que não são suas,

por briga encomendada.

 

Agora, decerto, o sol a pino,

os pedregulhos da estrada,

o chão nu como túmulo

e a poeira como mortalha.



ahnao // mmaai

11/09/25

DEUS É ATEU




Pois é, Deus é Ateu.

Vocês estão rindo, mas foi ele mesmo quem me disse.

Como eu sabia que era Deus?

Bem, é melhor eu contar essa estória direito.

 Era um dia de forte calor e eu desejando me refrescar entrei em um bar, desses que têm banquetas altas próximas ao balcão e pedi um chope.

Ao meu lado, um sujeito estava lá pela sua segunda ou terceira caneca.

Puxando conversa, dessas de boteco em que após certo tempo, só bêbado aguenta ouvir, a pessoa me disse estar cansada e desacreditada.

Mostrava um rosto calmo, mas desgastado, por trás da barba e do cabelo compridos.

Contou ser Deus e não acreditava mais em si mesmo, e agora resolvia ser ateu. 

Claro, que não acreditei em nada e concluí ser efeito do número de chopes que havia tomado. Comecei a rir e disse que ele bebera demais e estava ficando meio chapado, achando-se Deus.

Pagou as bebidas e me convidou para acompanhá-lo. Fomos para a rua.

 O dia principiava a escurecer, pois uma bela chuva se encaminhava, o que amenizaria o calor.

- Vamos fazer com que o dia seja novamente claro e ensolarado. E num estalar de dedo as nuvens principiaram a se abrir, um belo sol surgiu e o dia novamente ficou ensolarado e quente.

- Você deve ter ouvido a previsão do tempo enquanto estava no bar.

Continuamos a caminhar. Encontramos um cego com sua bengala e alguém lhe oferecendo o ombro para caminhar.

- Pergunte-lhe há quanto tempo não enxerga.

- Desde o nascimento, respondeu.

E quando principiava a nos afastar, Deus tocou levemente em sua cabeça, sem que percebesse e ele começou repentinamente a gritar que estava enxergando.

- Um milagre, milagre!

Muitos se aproximaram enquanto nos afastávamos.

Mais adiante, o vendedor de bilhetes, que há anos está no mesmo ponto, em sua cadeira de rodas por ter as pernas atrofiadas.

Um novo milagre. Levantou da cadeira, caminhando e chorando.

- Obrigado, meu bom Deus – gritando e levantando as mãos aos céus.

Basta ou necessitas de mais sinais para acreditar em quem sou?

Eu trêmulo, mal podendo falar, por tudo que presenciei, me dei por satisfeito. Puxando pelo braço, lhe disse:

- Venha, ali adiante há um bar onde podemos voltar a tomar uma cerveja e conversar.

 - Não acredito em mim. Dizem que estou em todo lugar, que até o fio de cabelo que cai é do meu conhecimento, que sou onipotente e onipresente. Quando um bebê nasce com alegria é colocado nos braços dos pais, que manifestam graças a Deus por tudo correr bem, mas eu nem estava lá. Meus olhos e ouvidos estavam voltados para a mãe que perdia seu bebê, em meio à miséria total, sendo que quando cheguei tudo estava consumado. Que Deus eu sou? Da alegria ou da tristeza?

- Você o é do riso e do choro – retorqui.

Após um gole, continuou:

- E as guerras com suas barbáries: degolas, estupros, fuzilamentos, torturas. Que fiz?

O pobre coitado que pisa na mina e perde as pernas.  “Graças a Deus que não morreu!” Graças a mim que não morreu? Graças a mim, que passará a vida numa cadeira de rodas, em meio a um país na miséria e em guerra, esmolando para não morrer de fome?

Enquanto isso, alguém na sua fausta residência está bebendo, comendo, rindo e comemorando a maravilhosa vida que suas armas e brutalidades lhe oferecem. Como Deus, não estive antes para evitar e muitas vezes nem depois, para me horrorizar e me envergonhar. Tudo aconteceu sem o meu consentimento.

 Tentei me encontrar lá pelas terras ditas Santas, onde a religião é pano de fundo para as guerras. Não consegui; cada um me entendia de um jeito diferente e com isso gerava conflitos com as outras partes. Alguns, nem levantaram a cabeça dos seus antigos escritos e tradições. Nações se trucidam nessa região. Aumentou minha crise de identidade.

 Para os lados de cá do mundo, entrei numa dessas Igrejas, cujas torres devem fazer cócegas às nuvens.

Procurei o padre. Estava no confessionário. Para lá me dirigi.

- Filho, no que pecastes? - me perguntou.

- Não pequei. Eu errei.

- Sim, filho, o erro é intrínseco à vida. Todos estamos sujeitos a erro e ele nem sempre representa um pecado.

- Eu errei. Errei em criar o homem, que, desde Abel e Caim, vive se matando.

- Filho, quem criou o homem foi Deus.

- Eu sou Deus e errei nessa criação.

Gritando, me pôs para fora, ameaçando chamar a polícia, pois a casa de Deus não era lugar de bêbado ou de quem não tem respeito por ele.

Casa de Deus! Eu não me vi naquela casa. Havia muito luxo, riqueza e pompa.

 - Veja na televisão, estão noticiando sobre a possível aprovação de alguma lei. Ali está um grupo reunido em oração. Devem estar orando para você visando a aprovação de algo importante - exclamei.

 - Este é outro ponto que me incomoda. Quantos políticos se escoram em meu nome e em verdade, não agem em prol do próximo. Usam-me como garoto propaganda.

 Numa das minhas andanças encontrei um grande templo. Lembrei dos tempos de Salomão.

Havia uma pessoa parecendo um rabino. Falava de uma forma calma e doce. O semblante com os cabelos e a barba brancos e com poucos paramentos, ao contrário de outras em que fui, me deu esperança com uma conversa simples e direta.

Tive dificuldades de me aproximar. Havia muitos, como o protegendo. Observei ao fundo sacos de dinheiro, que vi sair de bolsos de pessoas com expressões de dor, outras de esperança e muitas com olhos de avareza.

Gritava o velho rabino a seus arautos e seguidores:

- Como queres receber de Deus se não dás nada ao Pai?

- Não é a mim que dais e sim a ele – gritei e fui expulso com agressão.

 Fiquei atordoado. Que Deus é esse que quer receber bens materiais para dar? Não sou eu. O máximo que quero está na mensagem que fiz chegar à terra, há um bom tempo: 

“Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”.

As religiões são importantes. Agregam pessoas que têm o amor e a fé no coração, mas escondem, por trás, muitos interesses criados pelo homem, que fogem aos meus desígnios.

Quantos mensageiros vieram, visando a melhoria do homem, alguns mais iluminados que outros, trazendo mensagens e caminhos diferentes: Cristo, Maomé, Buda, Gandhi, Chico Xavier, Madre Tereza, Luther King, além de muitos mal conhecidos. Poucos foram escutados.

 Contrariado, com um olhar de profunda tristeza me disse:

- Quando criei a terra, tudo era perfeito e equilibrado. Havia tempestades, ciclones e secas. Era a natureza reagindo dentro de suas forças naturais.

O homem devia respeitá-la. Foi se instalar onde não podia, abriu espaços em áreas a serem preservadas, construiu bens, pensando principalmente no ganho, não se preocupando com a natureza. Não sou eu que gero os cataclismos. É ela, muitas vezes reagindo à ação do homem. Tudo é equilibrado: a lua girando em torno da terra, esta em torno do sol e ele por si da galáxia que se mantém equilibrada no universo.

 “Dizem: o homem é um bom sujeito, queira que Deus crie muitos iguais a ele.” Se é bom, é porque evoluiu, pois, dei a ele o livre arbítrio. Muitos o usam para o mal, ocasionando dores, nas quais não tive nenhuma interferência.

O Deus está dentro de cada homem. Fica claro que não existo. Meu nome sim, mas, eu não. Não creio nesse Deus presente em cada fato, em cada momento. Considero-me ateu.

 - Como já criei o céu e a terra e tudo está dentro do seu equilíbrio possível para os dias de hoje, vou tirar umas semanas de férias. Vou buscar uma dessas praias paradisíacas que criei e descansar. Tudo vai acontecer conforme seu ordenamento. Não serei e nem deixarei de ser o causador. Será o homem colhendo o que plantou. Enquanto isso, muitos homens de bem, pensando em meu nome, trabalharão pela melhora da humanidade. Se o número deles aumentar, isto será possível. 

 Depois do terceiro copo, levantou e saiu, não se despedindo e resmungando que não acreditava mais em si mesmo. Era ateu. Atravessou a rua e se perdeu no meio da multidão. Não sei se antes, pegou uma bíblia que estava sendo distribuída por alguns.

Essa é a estória. Deus é ateu.

Noutro dia no meio das minhas desesperanças, clamei por sua ajuda. Entretanto pensei: Estará de bermuda sentado à sombra de uma palmeira, bebendo uma água de coco? Estará ainda de folga?

Será que continua ateu? 


10/06/25

NEGRO

 




Sou o negro irmão que a sociedade liberou.

Não levei pancada, nem puseram a mão.

Na quebrada, no escuro, a toada foi outra.

Levei uma truncada, cuidado negão.

 

Sou negro raiz, das origens tenho paixão.

Não nego, não temo, é minha luta e razão.

Se tiver medo da vida, não vivo, só cedo.

Olhar forte e raça curtida no tempo.

 

Hoje sofro, luto e grito, quero meu filho feliz.

E que não seja um dito se perdendo ao vento.

Demos sangue na mistura de muitos.

Com almas, dores e risos, somos Brasil.

 

Ser um igual é o que queremos,

Nas lutas, nas vitórias e perdas.

Ser fruto de nossas batalhas,

Sem sombras e medos, nem balas de fuzil.


mmoai

 

9/25/25

POEMA DE VINÍCIUS

 



Conto emoldurado pelo poema do Poetinha Vinícius de Moraes: "PARA VIVER UM GRANDE AMOR".

 Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor”.

 Eram 7:30 da manhã, Sílvio e Rosa se preparavam para tomar o café da manhã. Estavam juntos há 14 anos e viviam o desencanto de uma vida familiar se apagando. Seria mais um dia rotineiro correndo atrás de compromissos. O filho, de dez anos, chega e senta em seu lugar, onde havia um achocolatado pronto com bolachas. O rádio, ligado no noticiário, inibia a conversa. Nisso, toca a campainha.

- Deixa que eu vou, diz Rosa.

Retorna com um lindo buquê de rosas. Olha o buquê com olhos brilhantes.

- Tem um bilhete! Rosas para a Rosa mais linda.

Sílvio, observa o que ocorre, estupefato.

- Oi, amor, obrigada. Você sabe como gosto de flores, principalmente rosas. Deixa o buquê sobre a mesa, senta em seu colo e lhe enche de beijos. Te amo, te amo. Mas, não temos nada a comemorar ou estou enganada. Adorei vou colocar em um vaso.

Silvio, sem nada dizer e perdido em relação ao que está ocorrendo, olha o cartão é lê da “Floricultura Estação das Flores”, localizada em um bairro distante do deles. Toma rápido seu café e pede ao filho para se apressar, estará no automóvel aguardando.

- Desculpe amor, preciso ir, tenho uma reunião cedo.

- Amor, você fez o meu dia feliz. Obrigada.

Novos beijos, aos quais corresponde, um tanto desconfortado.

A caminho do trabalho, após deixar o filho na escola, vai pensando:

- Deve ter sido engano. A floricultura é de um bairro distante. Mas, estava com o nome dela. Deve ser coincidência. Durante a viagem foi esquentando o assunto.

Ao chegar ao serviço, o dia foi corrido, e crente de ter sido um engano, acabou esquecendo a surpresa da manhã.

Passaram-se dias. Novamente no horário do café, toca a campainha. Um calafrio percorre a espinha de Sílvio, ao vir a memória o que ocorrera e tudo o que abafara de pensamentos a respeito.

Rosa retorna trazendo um vaso de Girassóis. Está feliz, ri e abre um lindo sorriso.

Lê o cartão que acompanha, o faz levantar da cadeira e o abraça com carinho, estreitando seu rosto em seu corpo. Deposita sua boca sobre a dele com suavidade e ternura.

Ele estremece com a maciez e a umidade dos lábios. Um grande sentimento de querer invade seu coração. Pensa:

- Meu Deus, como a quero! Mas, que loucura o que está acontecendo.

Rapidamente se recompõem, visto não ter sido quem enviara o vaso. O cartão e da mesma floricultura e diz: “Girassóis buscam o sol como vida, eu busco você”.

 

Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor”.

 

Após deixar o filho na escola, segue para o escritório. Fecha-se em sua sala e diz a secretária que não atenderá ninguém. Sua cabeça está um turbilhão. Alguém está flertando sua esposa, pelo visto, ela não percebeu, pensa que as flores são dele. Liga para floricultura dando o endereço de sua casa, dizendo terem recebidos as flores, porém não sabem de quem se trata e solicita informações.

- Desculpe, não posso informar. É regra da casa.

- Sabe me dizer se é homem ou mulher.

- O máximo que posso dizer, a encomenda é feita por telefone e o dinheiro depositado em conta.

Perpassa por sua cabeça a figura de cada amigo, casado ou não. Amigos anteriores à época de estarem juntos. O personal trainer é homossexual. Três vezes por semana vai à aula de artes, mas, conhece o grupo e somente há mulheres. MULHER. Pode ser uma mulher! Não, não é o jeito dela.

Pensando em esclarecer o assunto, resolve convidá-la para jantar.

- Oi, amor, gostaria sair para jantar, hoje à noite. Poderemos ir ao Pátio, que tal? Fala com teus pais para ficarem com o Enzo.

Como as noites têm sido quentes, liguei para o restaurante e reservei uma mesa na área externa, onde há uma fonte tendo em volta vasos, flores e pedaços de lua se infiltrando entre as árvores. Um pequeno conjunto toca ao fundo, havendo pistas de dança dispersas pelo jardim. É um lugar simples, mas que encanta Rosa e onde trocamos muitas juras de amor.

Preciso saber, quem é o filho da p... que está se engraçando com minha mulher e o mais importante, o que sente ela em relação ao possível flerte. Tenho que proteger meu casamento e não posso perder a mulher que amo. Sinto-me um cavalheiro defendendo sua dama.

Ao chegar em casa, ela está se arrumando. Tomo banho e me troco, colocando uma roupa própria para uma noite de verão. A espero na sala, cercado de vasos de rosas e de girassóis, apreensivo.

Recordo-me do primeiro beijo, roubado de relance, ao nos despedirmos em uma conversa entre amigos. Do coração disparado pela ousadia, inicialmente mal recebida, pois, por sua cabeça não passava o meu interesse. Ela tinha pretendentes em volta e eu nunca estive no radar. Ela foi sempre firme, elegante e alegre. Eu, sorumbático, rodando amores e sonhando quereres.

Quando ela apareceu, fiquei enfeitiçado. Linda em uma blusa branca com desenhos em preto, uma leve saia plissada preta até o joelho, suave ao toque. Porém, o que mais chamava a atenção, era o sorriso e o olhar que trazia nos olhos. Caramba, como estou apaixonado.

 

Para viver um grande amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.”

 

No automóvel, pensava ser descabida a ideia de ela estar interessada em alguém, pela forma como me olhou ao estar pronta, como afagou meu rosto, como se encostou levemente em meu ombro para não estragar a maquiagem, era puro sentimento.

Comemos, bebemos, rimos, dançamos. Não, era momento de discutir suspeitas. Era uma noite de pura magia. O clima continuou em nossa cama, com roupas tiradas pelo corredor e lançadas ao chão. Na nudez de nossos corpos é quando mais me senti vestido de nós dois. Dormimos na exaustão do prazer.

O amor por essa mulher me envolve totalmente, não aceito que ele seja dividido.

Ou se ama ou não se ama; o meio caminho é conveniência.

Passaram-se duas semanas maravilhosas, regadas a conversas, beijos e momentos íntimos. Algumas dúvidas, de vez em quando surgem: “Será que está tão amorosa por estar com culpa no cartório?”

 

É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...

 

Numa manhã, mesmo horário, o tocar da campainha.

- Não é possível – gelei.

Lá veio ela com um lindo buquê de flores primaveris.

- Não acredito, você leu meus pensamentos. Eu vi um vaso destes esta semana em uma loja e me encantei.

Espero que ela não tenha percebido o choque que tive. A mesma floricultura. Fechei a cara e resolvi sair rapidamente.

- Leve o Enzo na escola, preciso sair.

- O que houve? Você não está passando bem?

- Tenho uma reunião e estou atrasado.

É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor”.

Minha cabeça latejava, minha vista doía, meu estomago parecia um vazio dolorido. A força se esvaia pelas pernas, pelos braços, pelos dedos. Entrei no automóvel e mal conseguia dirigir. Andei a esmo pela cidade. Quem seria o filho da p...? Estava emaranhando nosso amor. Interpondo-se nos nossos sentimentos, ou seria só o meu?

Pedaços de filmes passavam pela minha cabeça, homens sorrindo, abraçando, sussurrando próximos aos seus ouvidos. Ela rindo, confidenciando, trazendo para próximo de si os amigos, as esposas e todos em volta, numa relação de amizade. Nada, ninguém, nenhum olhar suspeito por parte dela, nenhum desquerer. Pelo contrário, dez anos de casados e parece que foi ontem. Mais carinho, mais achego, mais calor no corpo, nos olhos, nas palavras e nos cuidados. Estou ficando louco.

Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer “baixo” seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor”.

Seu sócio tinha falado em uma pousada em São Francisco Xavier. Após se informar, passou a sonhar com o local. Bangalôs dispersos pela serra no meio da mata, uma enorme banheira com uma grande janela para o vale, o quarto todo em madeira, uma enorme cama de casal e uma lareira, para se aquecerem e fazer amor sobre um cobertor estendido no chão.

Planejou e reservou para um final de semana de quinta a domingo. Seu filho viajaria com os avós, visitando uns parentes no interior. Ela achou estranho, mas, ele alegou cansaço. Ao final, se empolgou.

- Amor, deixa que cuido de tudo. Veja só nossa roupa e de preferência para momentos íntimos. Como tem uma banheira, leva xampus e perfumes. – falou Sílvio.

Desenvolve, em sua cabeça, a ideia de um fim de semana romântico, como há muito tempo não tinham, para defrontá-la com o que estava acontecendo. Caso a resposta não fosse favorável, seria o enterro do seu casamento. Não aguentava mais aquela situação.

Na viagem foram ouvindo música, cantando, relembrando momentos passados, muitos deles hilários. Petisquinhos na boca, passada de mãos, excitamentos. Foi uma viagem prazerosa.

A pousada era tudo o que podia esperar de melhor, simples, mas, de muito bom gosto. Tinha um bangalô maior, onde serviam o café da manhã, que também podia ser no quarto, um fogão de lenha constantemente aceso, com um café e cestas com pão de queijo, pequenos salgados e doces. Na maioria das vezes recém-feitos.

Tudo era produzido no local. O ambiente era acolhedor, estimulava a permanência e a conversa, entre os hóspedes e os donos do local, um casal de goianos, que ao final da vida resolveram realizar um sonho: ter uma pousada. Eram cultos, viajados e com uma conversa muito agradável.

Recomendaram aos hóspedes, que aproveitassem as manhãs e as tardes para visitar a cidade e o entorno, com seus inúmeros restaurantes e pequenas lojas, pois a tarde costumava cair a temperatura, com possível chuva. À tardinha, o pôr de sol de fronte as janelas dos bangalôs, estimularia o aconchego de seus quartos. Caso quisessem, teriam caldos no jantar, doces, chás, chocolate, leite e café, que poderiam ser servidos nos quartos.  Os restaurantes da cidade à noite, também, era uma ótima pedida.

Com outro casal, que conheceram no hotel, correram a cidade, tomaram chocolate quente, comeram alguns pães e doces e às 17:00 h resolveram voltar, pois, o tempo mudara radicalmente. Fazia frio e havia uma garoa insistente.

“Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffe – comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir para a cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?

Sílvio encheu a banheira, pedindo a Rosa diluir perfumes na água. Manteve à mão xampus para os cabelos e óleos para a pele que pedira a ela que levara. Acendeu velas perfumadas em torno da banheira e pelo ambiente. Próximo à banheira colocou uma pequena mesa, com queijos diversos, frutas secas, torradas, patês e frios cortados. Para beber, Proseco, em um balde com gelo. Solicitara a recepção taças altas e finas. Pensou, não sabia cozinhar, mas daria a ela o prazer de ser servida pelo seu amor (assim esperava ser).

Antes de entrarem na banheira, acendeu a lareira e colocou um cobertor felpudo no chão, com lençóis e travesseiros espalhados em volta. A luz era a das velas, no ar uma música baixa e envolvente.

Despiram-se e entraram cada um dos lados da banheira. A janela ampla permitia ver o pôr do sol amarelado, as copas das árvores balançando em compasso de dança, pássaros em voos rápidos buscando abrigo para a noite. Fora, o barulho do vento entre as copas e pelos vãos dos beirais. Pouco a pouco o ambiente foi sendo tomado por uma penumbra agradável.

Depositou em uma pequena torrada um pedaço de queijo brie com damasco seco e a ofereceu. Ela comeu, sorriu e devolveu a gentileza. Serviu um pouco do Proseco nas taças, brindaram e beberam. Comentários gentis e sensuais, gracejos, risos, lembranças íntimas. Perderam-se no tempo servindo um ao outro. Por vezes um massageando ao outro e brincando com suas intimidades.

Sílvio a fez escorregar e deitar encostada em seu peito. Colheu os seios em suas mãos, sentiu o quanto ela gostara. Correu sua mão até atingir seu sexo, brincando com ele. Rosa puxou a boca de Silvio para a sua e elas se transformaram em uma só, em lábios, línguas, salivas, desejos, gemidos, anseios. Trocaram goles de vinho boca a boca. Rosa sentiu a rigidez de seu sexo. Ondas de desejo corriam seus corpos.

Levantaram-se da banheira, mal se enxugando, deitaram em frente a lareira sob os tecidos. Foram momentos em que se saborearam. Ele escorreu o vinho no meio de seus seios e sorveu o líquido no correr do seu corpo. Ela repetiu com ele o mesmo gesto.

Não houve canto, nem recanto que não se tocassem, nem desejos que reprimissem. O mundo, com todos os seus horizontes, estava centrado naquelas quatro paredes. Não aguentando mais os prazeres do momento, fundiram-se em um só e no ápice dos sentimentos, liberaram seus gozos, envolvidos de amor e carinho.

Nos dias seguintes, com o casal companheiro de hotel, alugaram um bugue e correram os caminhos pelas montanhas onde encontraram cachoeiras com águas gélidas, criatórios de tilápias e seus diversos produtos, vistas esplendorosas, alambiques com suas bebidas e licores de embebedar, artesanatos, pequenos restaurantes com seus salgados ou comidas típicas.

Com eles, se divertiram pela cidade, mas a noite preferiram o aconchego de seu quarto. Ali estava o que necessitavam: um ambiente só deles. Traziam alguma comidinha para consumirem, reforçaram a bebida, mas o enredo era feito na hora, elaborado toque a toque. Passaram o óleo que trouxeram em seus corpos, cada um curtindo pedaço a pedaço o companheiro. Se abraçaram, se apalparam, se esfregaram, escorregaram e se amaram intensamente.

Devido ao prazer de estarem juntos, curtindo, Sílvio não encontrou como abordá-la em relação ao que desejava. No último dia da estada, aquilo o agoniou, mas, não conseguiu conversar a respeito. Tudo estava maravilhoso. Tinha receio de perder o que estava ocorrendo.

Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto – para não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois, qualquer “baixo” seu, a amada sente – e esfria, um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia – para viver um grande amor”.

Nos dias seguintes ao retorno, Silvio ponderou: “Alguém apaixonado por ela deseja chamar sua atenção, enviando flores”. Entretanto, minha mulher está tão envolvida comigo, que não consegue perceber que alguém se aproxima. A melhor forma de a proteger e estar presente, amá-la e manter meus pensamentos no fortalecimento do nosso amor. Saborear com ela e com meu filho a felicidade de uma família. Manter-me firme na defesa de minha Dulcineia. Tenho notado, nestes dias que estamos mais juntos, o valor das pequenas alegrias preenche mais do que a busca de grandes momentos, que muitas vezes são efêmeros.

Sílvio recordou-se do final do poema musicalizado:

Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor

Sorriu e sentiu-se feliz, ele tinha um grande amor.

Assim pensava, enquanto voltava para casa, feliz com a surpresa que daria à Rosa ao retornar mais cedo, para buscarem juntos o Enzo na saída da escola e depois, um sorvete com muitos risos e felicidade.

Chegou em casa sem ser notado.

Rosa estava no viva-voz do telefone, aguardando que a chamada fosse atendida:

- Floricultura Estação das Flores, pois não?

- Boa tarde, Juvenal. É a Rosa, necessito de um buquê de rosas-brancas.

- É para o endereço de sempre?

- Não, é para uma amiga, vou te passar o endereço.

Sílvio parou ao ouvir a conversa. Ficou chocado. Sua mulher o estava manipulando, seguindo as etapas de como viver um grande amor?

Teve o impulso primeiro de desmascarar a situação, deixar a verdade submergir, escancarar a manipulação ou deveria sair, sem se fazer notar, e permitir que uma mentira envolta em encanto continuasse? Estava confuso. O que fazer?

 

O que diria o Poetinha?

“A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida. Há sempre uma mulher à sua espera com os olhos cheios de carinho e as mãos cheias de perdão.”